Novos RumoS
Marius Romme e Sandra Escher
a Companhia das Vozes demonstra que uma boa parte de nós tem experiências auditivas estranhas; que muitos de nós não precisam de recorrer à Psiquiatria por isso; e que alguns de nós acabam por descobrir formas de lidar com essa experiência auditiva sem que ela inter fira com a sua vida social ou com as suas activi dades quotidianas. O núcleo essencial deste livro é constituído por I í depoimentos íntimos de pessoas que, ouvindo vozes, acabaram por estabelecer, de uma forma ou de outra, um modus vivendi com as suas próprias experiências, integrando-as nas suas vidas. Estes depoimentos encontram-se entremeados por uma vasta gama de formulações teóricas, algumas das quais abordam o fenómeno à margem do modelo medico, enquanto outras representam as linhas de referência que se podem encontrar no interior da própria Psiquiatria. Os organizadores deste livro estão duplamente de parabéns, não apenas por terem produzido um excelente exemplo de investigação original, para o qual contribuíram muitos ouvidores de vozes holan deses e britânicos, mas ainda pelos seus incansáveis esforços, por essa Europa fora, no sentido de ultra passar os tabus sociais que rodeiam o assunto.»
N
organizadores
Zagalo-Cardoso e Cunha-Oliveira coordenadores da edição portuguesa
NA COMPANHIA DAS VOZES Para uma análise da experiência de ouvir vozes
Lord Ennals (Presidente da Associação MINI)) 003516 1 /
NAC0I1PANHIA DAS UOZES ISBN 972-33-1272-7 9 789723 312720
ed it o r ia l
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Marius Romme e Sandra Escher organizadores
Zagalo-Cardoso e Cunha-Oliveira
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coordenadores da edição portuguesa
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NA COMPANHIA DAS V02XS Para uma análise da experiência de ouvir vozes
“As ilusões e alucinações explicam-se, em grande parte, pela afectividade.” P r o f e s s o r D o u to r H e r m é n io C a r d o s o ( A u la s T e ó r ic a s d c P s iq u ia tr ia : Dementia Praecox , 1 9 4 4 )
F IC H A T É C N IC A O rig in a l h o lan d ês: Stemmen Horen Accepteren '•** R ijk s u n iv e rsite it L im b u rg . V a k g ro e p S o c ia le P s y c h ia fria S iso • 86 U D C 6 1 6 .8 9 -0 5 2 E d ito re s: Prol'. D r. M .A .J. R o m m e ; M w A .D .M .A .C . E sc h c r C ap a: Jo sé A n tu n e s l .a e d iç ã o : M aio d e 1997 F o to c o m p o siç ã o : B y b lo s - F o to c o m p o siç ã o , L da. Im p re ss ã o e A ca b a m e n to : R o lo & F ilh o s - A r te s G rá fic a s, L da. D e p ó sito L eg al n.° 11138 5 /9 7 IS B N 9 7 2 -3 3 -1 2 7 2 -7 C o p y rig h t: © P ro f. D r. M .A .J. R o m m e ; A .D .M .A .C . E sc h c r © E d ito ria l E sta m p a , L da., L isb o a , 1997 p ara a lín g u a p o rtu g u e sa
Os organizadores Marius ROMME
Professor Catedrático de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo (Maastricht, Holanda), desde 1974. Director do Centro de Saúde Mental Comu nitário de Maastricht. Foi discípulo do Professor Querido, psiquiatra e político holandês de origem judaico-portuguesa, que exerceu cargos de primeiro plano na Organização Mun dial de Saúde e se notabilizou por ter criado, no ano de 1934, em Amesterdão, o primeiro serviço comunitário de ajuda para prevenir a hospitalização de pacien tes psiquiátricos. O Professor Romme tem aliado a investigação científica à organização social da ajuda. A sua área principal de investigação e de intervenção vem-se centrando nos cuidados comunitários de longo-prazo a pacientes psiquiátricos. Tem já uma vasta obra escrita, nos campos da Psiquiatria Social, Etnopsiquiatria, Reabilitação Psiquiátrica, Política de Saúde Mental e Ética. É colaborador assíduo de revistas internacionais da especialidade, nomeadamente Schizophrenia Bulletin, British Journal o f Psychiatry, Mental Health and Society, The International Journal o f Social Psychiatry , e em fóruns internacionais de
debate da Questão Psiquiátrica. É autor de trabalhos originais importantes para a compreensão do fenómeno de escuta de vozes e pioneiro de intervenções inovadoras para ajudar os ouvidores a lidar com as vozes - o que o tornou uma autoridade incontestada nesta área, na Europa c nos Estados Unidos. Sandra ESCHER
Jornalista de ciência e investigadora do Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo (Maastricht, Holanda) e do Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht.
Depois de se graduar em Enfermagem, estudou Jornalismo em Utreque. No Departamento de Psiquiatria Social da Universidade dc Limburgo, come çou por trabalhar no ensino da elaboração dc artigos científicos a jovens cien tistas. Participa, desde 1987, no Projecto “Ouvir Vozes”, onde: é auxiliar dos ouvidores dc vozes na elaboração dc “ego-documentos” e dc comunicações para congressos; é delegada para a comunicação social, na promoção da aceitação social da experiência de ouvir vozes; e é investigadora sénior do projecto sobre a escuta de vozes em crianças. Os coordenadores da edição portuguesa Foram co-autores, juntamente com os Professores F. A. Jcnncr e A. C. D. Monteiro, do livro “Esquizofrenia”: Uma Doença ou Alguns Modos de Se Ser Humano?, que foi publicado no Brasil (Editora Científica Nacional), em Portugal (Editorial Caminho), no Reino Unido (Sheffield Academic Press) e na Itália (Edizione Trieste), pelo qual receberam do Governo português uma Menção Honrosa do Prémio da Boa Esperança de Ciência e Tecnologia - 1993. São membros fundadores da SIRIS - Associação de Solidariedade, Investi gação, Reabilitação e Intervenção Social, que, cm 1990, visou a articulação dc eforços entre profissionais e utentes de cuidados de Saúde Mental. Foram delegados portugueses ao Congress on Hearing Voices: Developing Partnership between Professionals and Users, realizado em Maastricht, Holanda, de 28 a 31 de Agosto de 1995.
ÍNDICE A P R E S E N T A Ç Ã O - O U V IR V O Z E S : A P R E N D E R E E N S IN A R A L ID A R C O M A E X P E R IÊ N C IA ........................................................................
In tr o d u ç ã o ............................................................................................................. D ar v o z aos q u e o u v em v o z e s .............................................................. A n trop o lo g ia e H istó ria ............................................................................... Patsy H age e a exp eriên cia h o la n d e sa ............................................. N otas sob re a ed içã o p o rtu g u e sa ..........................................................
J. A. CUNHA-OLIVEIRA Médico. Mestre em Psiquiatria. Chefe de Serviço Hospitalar. Director de Serviço do Hospital Psiquiátrico do Lorvâo (Coimbra). Representante de Portugal, cm nome da SIRIS, no grupo dc organização da Rede Europeia de Utentes de Saúde Mental (Londres, 1990). J. A. ZAGALO-CARDOSO Médico. Mestre em Psiquiatria. Doutor cm Psicologia. Professor da Faculdade de Psicologia c dc Ciências da Educação da Univer sidade dc Coimbra. Coordenador Nacional do INFORUM - International Forum of MentaI Health and Social Sciences. Desde 1988, mantém intercâmbio académico c científico regular tanto com o Professor Marins Rommc e sua equipa como com a Hearing Voices NetWork do Reino Unido.
17 17
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P R Ó L O G O D A V E R S Ã O I N G L E S A .............................................................................
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1. I N T R O D U Ç Ã O ........................................................................................................................
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2.
O s p r im ó r d io s.................................................................................................... O Q u e stio n á rio ...........................................................................................
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A s três fa ses da ex p eriên cia d e ou vir v o z e s ............................... F ase de s u rp re sa ...................................................................................... A con tecim entos a n te rio re s .................................................................
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A N O V A A B O R D A G E M - U M A E X P E R IÊ N C IA H O L A N D E S A
C om paração entre os que conseguiam e os que não conseguiam entender-se com as v o z e s .............................. O C o n g re sso ................................................................................................
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O im pacto das v o z e s .............................................................................. F ase d e organização: entender-se com as v o ze s .............. F ase de e sta b iliza ç ã o ............................................................................
A b ord agen s p e sso a is à c o m p r e e n s ã o ................................................ P erspectivas p s ic o ló g ic a s ................................................................... P erspectivas não p sic o ló g ic a s ......................................................... C o n seq u ên cias para a p rofissã o p siq u iá tr ic a ...............................
3. A EXPERIÊNCIA BRITÂNICA................................................................ E m bu sca d e n o v a s e x p lic a ç õ e s ........................................................... B reve história d o d e se n v o lv im en to da rede b r itâ n ic a .......... O P rim eiro C ongresso B r itâ n ic o .................................................. O C ongresso de L ondres d e 1991 ............................................... O Terceiro C ongresso N a c io n a l ...................................................
O C ongresso de M an chester sob re E scuta de Vozes, 1 9 9 2 ............................................................................................................. D a im portância de um a diversida de de explicações - O C ongresso de M a n chester sobre E scuta de Vozes, 1993 ................................................................................... A criação da R ede B ritânica d e O uvidores d e V ozes... O G rupo de A juda M útua d e M a n c h e s te r ............................ D esenvolvim ento da R e d e ...................................................................
4. PSI, PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA......................................................
A s v o z e s de W a lte r ........................................................................................ A s antigas c r e n ç a s .......................................................................................... O despertar das hum anidades: o m a g n e tis m o ............................ A separação d os cam in h os ( 1 8 3 0 - 1 9 0 0 ) ......................................... R ein o s separados (1 9 0 0 - 1 9 5 0 )................................................................ A integração: o d esa fio a c tu a l..............................................................
5. DISCORRENDO SOBRE VOZES...........................................................
A d iscu ssã o n e c e ssá r ia ................................................................................. Identificar pa d rõ es de com portam ento das v o ze s ............. E sba ter a a n sie d a d e ...............................................................................
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D esco brir persp ectiva s teóricas a lte rn a tiv a s ....................... A u m entar a a c e ita ç ã o ........................................................................... R econ hecer o sig nificado das v o z e s ........................................... V alorizar os aspectos p o s itiv o s ...................................................... E strutura r o contacto com as v o z e s .......................................... U tilizar m ais eficazm ente a m e d ic a ç ã o .................................... O bter a com preensão dos fa m ilia r e s ......................................... C rescim ento p e s s o a l ...............................................................................
D esv an ta g en s da d is c u s s ã o ....................................................................... C o n c lu sã o ..............................................................................................................
96 98 98 99 99 100 100 101 103 104
6 . O U V IR V O Z E S : A E X P E R IÊ N C IA D O S Q U E N U N C A R E C O R R E R A M À P S I Q U I A T R I A ..........................................................................
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I n tr o d u ç ã o ............................................................................................................. C ontributos p e s s o a is ...................................................................................... P rim eiro contributo p e s s o a l ............................................................. Segundo contributo p e s s o a l .............................................................. Terceiro contributo p e s s o a l .............................................................. Q uarto contributo p e s s o a l ................................................................. Q uinto contributo p e s s o a l .................................................................. Sexto contributo p e s s o a l ..................................................................... Sétim o contributo p e s s o a l ..................................................................
106 107 107 H2 H6 121 126 132 138
7. O U V IR V O Z E S : P E R S P E C T IV A S N Ã O P S IQ U IÁ T R IC A S ........... I n tr o d u ç ã o ............................................................................................................. E x p eriên cias d e v o z e s interiores: um estu d o d e trinta c a s o s ............................................................................................................. Três reacções ao d esp erta r e sp iritu a l ...................................... Um curriculum in te r io r ........................................................................ B ases pa ra um a fu tu ra in vestig a çã o .......................................... V o z e s, relig iã o e m is t ic is m o ................................................. U m a p ersp ectiva m e ta fís ic a ............................................................. A escu ta d e v o z e s e a p a r a p sic o lo g ia ............................................... P ercepção extra -sen so ria l .................................................................. T elepatia e c la r iv id ê n c ia ....................................................................
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C lassificação da p ercep çã o extra -sen so ria l....................... C ondições fa v o r á v e is ...................................................................... A escuta de vozes e O C am inho.................................................... Um a perspectiva kárm ica....................................................................
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8. CRESCER À MARGEM DA PSIQUIATRIA...................................... Introdução.................................................................................................... Contributos p e sso a is............................................................................... O itavo contributo p e s s o a l............................................................. Melhorar o controle...................................................................... N ono contributo p e s s o a l............................................................... Melhorar o controle...................................................................... D écim o contributo p e s s o a l.......................................................... Ouvir v o z e s...................................................................................... A lucinações...................................................................................... Delírios e ideias paranóides .................................... Fenómenos físicos.......................................................................... Medo e vulnerabilidade............................................................... Melhorar o controle...................................................................... D écim o p rim eiro contributo p e s s o a l....................................... A Psiquiatria.................................................................................... Melhorar o controle...................................................................... D écim o segu nd o contributo p e s s o a l....................................... Quebrar o silêncio.......................................................................... Vozes: sobreviver e lidar com elas......................................... Aqui vão as minhas vozes... e os seus desencadeantes .. Treinar as vozes: pô-las em equilíbrio com a minha vida D écim o terceiro contributo p e s s o a l.......................................
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9. OUVIR VOZES: A PERSPECTIVA DA PSIQUIATRIA E DA PSICOLOGIA.................................................................................... Introdução...................... A Psiquiatria C lá ssic a ........................................................................... A nálise fu n cion al......................................................................................
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A p e r so n a lid a d e d is s o c ia d a ....................................................................... T rau m as: u m estu d o sob re ab u so d e crianças e a lu c in a ç õ e s ........................................................................................... M o d e lo s c o g n it iv o s ........................................................................................ P siq u iatria S o c i a l .............................................................................................. In tera cçõ es fa m ilia res e p s ic o s e ............................................................ P s ic o s e ..................................................................................................................... Cari Ju n g e a p e rcep çã o e x tr a -se n so r ia l........................................ Jayn es e a c o n s c iê n c ia .................................................................................
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10. A S S U M I R O C O N T R O L E D A S I T U A Ç Ã O ......................................... I n tr o d u ç ã o ........................................................................................................... E scr ev er um d iá r io ....................................................................................... Interajud a e aju d a m ú t u a ........................................................................ O rg a n iza ç õ e s d e u te n te s ................................................................... A F u n d a çã o R esson ância (W e e rk la n k ) .................................. G ru p o s d e a ju d a m ú tu a .................................................................... C o n cen tra r-se n as v o z e s ........................................................................... T é c n ic a s d e co n tro le da a n sie d a d e ................................................... P ro v o ca r o D iá lo g o en tre V o z e s ....................................................... R e a b ilita ç ã o ........................................................................................................ M e d ic a ç ã o e esc u ta d e v o z e s ..............................................................
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11. C O M P R E E N D E R A S V O Z E S ....................................................................... Para q u e é p r e c isa um a lin g u a g e m ? ............................................... O b je c tiv o s e estru tu ração da E n trev ista ........................................ E n trev ista e r e s u lta d o s .............................................................................. A p e r c e p ç ã o ....................................................................................................... V o z e s e ou tras p e rcep çõ es ex tr a -se n so r ia is................................ C a ra cterística s d as v o z e s ........................................................................ O r g a n iz a ç ã o d a s v o z e s ............................................................ In flu ê n c ia d as v o z e s e su as c o n s e q u ê n c ia s ................................ H istó ria da e s c u ta d e v o z e s e circu n stân cias relacion ad as c o m o seu in íc io ........................................................................ A lg u n s e x e m p lo s d e a co n tecim en to s tra u m á tico s.................
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O que in flu en cia o vir a ser-se p acien te ou n ã o .................. D esen cad ea n tes im e d ia to s ....................................................................... Identidade das v o z e s .................................................................................. A in ter p reta ç ã o ............................................................................................... L idar co m as v o z e s ..................................................................................... C o n c lu sã o ...........................................................................................................
12. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................
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Partilha d e e x p e r iê n c ia s ........................................................................... O prob lem a de lidar co m as v o z e s ................................................. D iversid ad e de o r ig e n s .............................................................................. D isp o n ib iliza r a in fo rm a çã o .................................................................. C o n c lu sã o ...........................................................................................................
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BIBLIOGRAFIA...................................................................................................
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APRESENTAÇÃO OUVIR VOZES: APRENDER E ENSINAR A LIDAR COM A EXPERIÊNCIA J . A . C unh a-O liveira e J . A . Z ag alo-C ardoso “Vocês sabem que as árvores falam? Sim, elas falam, elas falam umas com as outras. E também falarão convosco, se vos derdes ao trabalho de as escutar. O problema é que os Brancos nunca escutam.” (Búfalo, O Andarilho - Chefe índio)
Introdução E ste livro, q u e agora apresentam os aos leitores d e lín gua portuguesa, é fruto d e um a E sco la e d e um a Prática: a E sco la do D ep artam ento d e P siquiatria S o cia l da U n iv ersid a d e d e L im b u rgo e a Prática do C entro d e S aú d e M en tal C om u n itário d e M aastricht. E sco la e Prática q u e m ergu lh am as suas raízes no trabalho d o P rofessor A rie Q uerido, ju d eu h olan d ês d e o rigem p ortu gu esa, q u e rep resen tou o p on to de partida da in terven ção p siq u iátrica com u n itária. N o m ea d o resp on sáv el p ela o rg an ização d os S e rv iço s C om un itários d e Saú d e do M u n icíp io d e A m esterd ão em 19 31 , o P ro fessor Q uerido
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fundava, em 1934, o prim eiro S erv iço D o m iciliá rio , 2 4 /2 4 horas, de ajuda (in terven ção em crise) a p acien tes p siq u iátricos, co m o p rop ó sito de prevenir a sua h o sp ita liza çã o - facto qu e o n otab ilizou no m un do da P siquiatria. E m 1 9 5 2 , A . Q uerido era nom ead o p rofessor de M ed icin a S o cia l da U n iv ersid a d e de A m esterd ão, passando a d e sen v o lv er um a esp ecia l a ctiv id a d e na área da P siquiatria S o cia l. A n tes da sua ju b ila çã o , o P ro fessor Q u erido to m ar-se-ia perito da O rgani zaçã o M undial de Saú de, na área da Saú de C om unitária. N o seu co n h ecid o trabalho M últipla E quilibria (1958), pod e ler-se:
“Ao reunir os recursos individuais, o homem pode contra-actuar e modificar as forças do ambiente; as suas acções podem, então, tornars e infinitamente mais eficazes. A estabilidade do sistema pode ser am plamente conseguida se as forças individuais partilharem um objectivo comum. Quando os indivíduos conseguem congregar-se com vista a um objectivo comum, cria-se uma estrutura supra-individual, nomeadamente a sociedade.” E ste é o fu nd am en to d o s m o v im en to s de em an cip ação e de ajuda m útua na área da Saú de M en tal e d o d esen v o lv im en to da parceria. Seria p recisa m en te c o m o P ro fessor A rie Q u erido que M arius R o m m e haveria de fazer, d e 1965 a 1967, a sua form ação pós-graduada em P siquiatria S o cia l e a resp ectiva tese d e doutoram ento. A P siquiatria S o cia l é o ca m p o p riv ilegia d o de ap licação do m o d elo In v estig a çã o -A cçã o . E ste m o d elo , criado por Kurt L ew in , caracteriza-se p ela produção d e co n h ecim en to s através da m o d ifica çã o de um a dada realidade so cia l, co m a participação activa dos interessad os. T rata-se de um a in v estig a çã o om bro a om bro, d e um a acção de par ceria, de um trabalho feito com as p essoas e não sobre as p esso a s. E ste m o d elo p erm ite o a c e sso d o s utentes à d efin içã o de m atérias tão im portantes co m o a id en tifica çã o dos prob lem as em presença, das q u estõ es a levantar e dos p r o c esso s de lh es dar resp osta e da interpre tação e ap licação d os resu ltad os ob tid os. E ste p roced im en to perm ite m od ificar as práticas à m ed id a das n ecessid a d es d os utentes. A teoria v a i-se fa zen d o a partir da prática. O saber do p rofission al ap ren d e-se e a p erfeiço a-se tam b ém co m o saber dos utentes e in teres sad os. P ro fissio n a is e u ten tes b en eficia m do d iá lo g o m útuo e do 18
d e se n v o lv im en to da parceria, isto é , da prática do d iá lo g o em p é de igu ald ad e. D e acord o c o m esta p ersp ectiva, um sistem a m oderno d e cu id a d o s d e saúd e já n ão d ep en d e só d o s aportes c ien tífico s e té c n ic o s d os p ro fissio n a is d e saú d e, m as tam bém das asp irações e d o grau d e sa tisfação das n e c e ssid a d e s d o s seu s utentes. E ste tip o d e id eia s e in iciativ a s, qu e realçam o in d iv íd u o , a sua su b jectivid ad e e in tera cçõ es, perante o estereótip o so cia l d om in an te, ten de a ser p o u co co m p reen d id o , a ceite e estim u lad o em so cie d a d e s de raiz id e o ló g ic a ca tó lica , ortod oxa, islâ m ica e co m u n ista e ten d em , p elo contrário, a m edrar e flo rescer em so cied a d es d e raiz id e o ló g ic a oriunda da R eform a p rotestan te, nas q u ais, ao contrário das an teriores, o papel do in d iv íd u o n o seu próprio d estin o e sa lvação p rev a lece sob re a estrutura d e d o g m a s, in stitu içõ es e hierarquias da so cie d a d e orga nizada. Por outro lad o, e ste aparente in d ivid u alism o p rop icia form as de organ ização da ajuda q u e partem da in iciativa, da v o n ta d e e da intersolid aried ad e a ctiva d os in d iv íd u o s, en qu an to qu e nas so cie d a d e s ca tó lica s, o rto d o x a s, islâ m ica s e com u n istas o in d ivíd u o ten d e a e s perar qu e q u em lh e g ere o s d ogm as e a eco n o m ia da sa lv a çã o lh e prop orcion e tam b ém as form as de organ ização da ajuda (ou d e seg re g a çã o) - q u e e le , sem v o z activa, con su m irá p a ssiva m en te e sem crítica. D e facto, a m aior parte das in iciativas e m ovim en to s d e u ten tes de Saú de M ental e a m aioria d o s esfo rço s qu e têm sid o feito s para rever e reform ular as c o n c e p ç õ e s e as práticas p siqu iátricas su b sid iárias da R ev o lu çã o F ran cesa têm tid o lugar em p a íses co m o a H olan d a, a B é lg ica F lam en ga, a D in am arca, a E scó cia , a Inglaterra, a A lem a n h a e o N ord este d e Itália, para n ão falar d o s E stad os U n id os da A m érica. C o m p reen d e-se, a ssim , por qu e con tin u am os n ós in flu en cia d o s e refén s d e um a prática q u e p rod u z “d o en tes cró n ico s” , isto é , q u e reduz a su b jectivid ad e ao silê n c io e qu e lan ça o utente para as m argen s do sistem a, n ão lh e d an d o e sp a ç o próprio d e d esen v o lv im en to das suas p oten cia lid ad es. A própria R eab ilitação P siq uiátrica é en ten d id a m ais co m o um a form a d e tom ar o “d oen te m en tal” m en os “d o en te” d o qu e 19
um p rocesso de tirar partido das p o ten cialid ad es e da exp eriên cia do ind ivíd u o para o d e v o lv er ao c o n v ív io so cia l p len o , livre de qualquer estig m a ou q u a lifica tiv o degradante. S ão co n h ecid a s as in iciativ a s, de resto m uito m eritórias, q u e co n sistem em criar R esid ên cia s C om u n i tárias p a ra ... D o entes M e n ta is... N a ó p tica da P siquiatria S o cia l, a im portância d os utentes nos cu id ad os q u e lh es são prestados d everá ser crescen te. P rofissio n a is e utentes d everão p o is participar na avaliação d os S e rv iço s de P siq u ia tria e Saú de M en tal. N o ca so co n creto da escu ta d e v o z e s, a P siquiatria S o cia l con sid era-a um a ex p ressã o m etafórica das histórias e situ a çõ es b iográficas de quem a exp erim en ta. S egu n d o este m o d elo , as v o z e s reflectem as interacções d o in d iv íd u o n o âm bito das suas rela çõ es e d o con texto so cia l m ais a m p lo em que se en contra integrado. A m aior parte d o trabalho d e se n v o lv id o n o extrem o sul da H olanda, na região de L im b u rgo e na cid a d e de M aastricht, rela cion a -se, pre cisam en te, co m a P siquiatria S o cia l, tal co m o lá a en ten d em , e que im p lica o estu d o da vid a qu otidiana das p e sso a s c o m prob lem as de saúde m en tal. C o m o d iz M arius R o m m e n este livro,
“Para a Psiquiatria Social, os pensamentos, as emoções, as percepções e o comportamento dos indivíduos estão relacionados com as con dições em que as pessoas vivem e funcionam." E m M aastricht, as p e sso a s qu e ou v em v o z e s estã o , d esd e 1987, a trabalhar em parceria co m o s p rofissio n a is, co m a fin alid ad e de tom ar as suas ex p eriên cia s m ais co m p reen sív eis a si próprias e aos p rofis sion ais e n v o lv id o s, am plian do a co m p reen são das d iversas id eias que ex istem sobre a escu ta de v o z e s e aprendendo uns co m os outros. A ssim se fic o u a saber que as v o z e s são exp erim en tad as por 2 a 4% da p op u lação adulta e que não são, em si m esm a s, sinal de doen ça. D o ap reciável nú m ero de p e sso a s que ou v em v o z e s só cerca de um terço procura ajuda p rofissio n a l. E quando o fa z é por causa das co n seq u ên cia s d essa ex p eriên cia e não d evid o à ex p eriên cia em si. O s tratam entos m éd ico s habituais n ão parecem con stitu ir a resp osta n e
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cessá ria para q u e as p e sso a s se p ossam en ten d er co m as v o z e s qu e o u v em . A in v estig a çã o recen te n esta área v em d em on stran d o q u e as p e s soas q u e o u v em v o z e s p od em ch egar a um m odus vivendi co m elas e m esm o a aceitá -las co m o parte integrante da sua própria id en tid ad e. É e ssa , p e lo m en o s, a o p in iã o d os o u vid ores d e v o z e s qu e aprenderam a aceitar as su as v o z e s, a con trolá-las e a en ten d er-se co m ela s. N ã o p o d em o s deixar d e referir aqui o gritante p aralelism o desta ab ord agem da P siquiatria S o cia l h olan d esa co m o s d ad os an trop oló g ic o s reco lh id o s do estu d o d os xam ãs e p erson a g en s so cia is afin s, cu jas ex p e riê n cia s, nas so cie d a d e s tra d icio n a is, são con trolad as e integrad as na p erson alid ad e, para reverterem , d e p o is, nu m pap el de u tilid ad e e p restíg io so cia l in d esm en tív eis. P or essa razão, ach ám os por bem acrescentar um a abordagem tradicional do prob lem a na S ecçã o A ntropologia e H istória d esta A p resen tação à ed içã o p ortu gu esa.
Dar voz aos que ouvem vozes O prin cíp io fu nd am en tal d este livro é valid ar as exp eriên cia s e as p e rcep çõ es d os ou v id o res d e v o z e s e im p lic á -lo s na co n c ep çã o e na im p lem en tação d e estratégias d e interajuda. O prob lem a da v alid ação das ex p eriên cia s e das p ercep çõ es d os o u v id o res d e v o z e s resp eita não apen as às p e sso a s nesta situ ação m as tam b ém a toda a g en te q u e, por fo rm ação, cu riosid ad e ou a ctivid ad e p ro fissio n a l, n ecessita d e en co n trar ex p lica çõ es e enquadram entos teóricos q u e n ão se lim item a reduzir ao silê n c io e ao iso la m en to a escu ta d e v o z e s e as p e sso a s q u e a ex p erim en tam . O s tem as e o b jectiv o s cen trais d este liv ro p od erão, en tão, ordenar-se c o m o segue: - Falar da im portância histórica, cultural, an trop o ló g ica e so cia l da escu ta d e v o zes; - E xp or as m ú ltip las id eias e co n c e p ç õ e s acerca da escu ta d e v o zes; - L evar o s ou v id o res d e v o z e s a falar e a escrev er acerca da sua própria exp eriên cia;
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- Saber se ex istem so lu ç õ e s e co m o proporcionar a ajuda de que os ou v id o res de v o z e s n ecessitam ; - D ebater a ajuda m útua e as form as d e a consegu ir; -O r g a n iz a r e pôr em fu n cion am en to grupos de ouvidores de v ozes; - O que se p o d e esperar da parceria entre utentes e profission ais; - D iscu tir a utilidade e a valid a d e do d ia g n ó stico psiquiátrico; - D em onstrar q u e tanto as “n e u ro ses” c o m o as “p sic o se s” pod em ter origem em traum as, nas in teracções e na história de vid a dos p acien tes.
E ainda:
“Convirá lembrar que estamos completamente dependentes das nar rações dos pacientes, sempre que procuramos saber se estão ou não a ter ‘alucinações’. Em consequência da natureza totalmente subjectiva destas experiências, estamos desprovidos de qualquer critério objectivo que confirme ou refute as afirmações do paciente; temos de aceitar as suas palavras e tentar compreender o seu significado ‘real’ com a ajuda dos elementos clínicos e biográficos de que dispomos a respeito deles.’’
D ar v o z à q u eles que o u v em v o zes: um prop ósito aparentem ente estranho num cam p o co m o a P siq uiatria, em q u e o facto de se ouvir v o z e s tem hab itualm ente, ou tem tid o, um sig n ifica d o m órbido, p ejo rativo, sin ó n im o de an om alia ou p rod u ção espúria, sin tom a de um a d o en ça que é n ecessário in vestigar e tratar. É , no entanto, um sig n i fica d o an óm alo fruto de um co n tex to anóm alo: observar o h om em -o b jecto sem tom ar em con ta o h o m em -su jeito e o h o m em -so cia l, isto é , sem cuidar de saber do seu m u n d o interior, da sua história, das suas cren ças, das suas rela çõ es e in ter-relações e das suas n ecessid ad es. N a verdade, o s cu id ad os de saú d e, em particular o s cu id ad os p si qu iátricos, adoptam hab itualm ente co n c e p ç õ e s redutoras, segu n d o as q u ais a escu ta d e v o z e s é co n c eb id a e teorizada, g en ericam en te, co m o um a categoria d e d o en ça m en tal. D este m o d o , a exp eriên cia subjectiva é co n fisca d a por e sse tipo d e c iên c ia - cujas teorias se tom am , apesar d isso , a b ase do tratam ento. Para dar um ex em p lo , essa s teorias p recon izam q u e não se fa le das v o z e s nem do seu sig n ifica d o porque isso iria confun dir ainda m ais o p acien te co m “alu cin a çõ es au d itiv a s”. M as a m aioria das p esso a s que ou v em v o z e s não p en sa d e ssa m aneira. A liá s, co m o n ós próprios tiv em o s o ca siã o d e dizer anteriorm ente (Jenner et al., 1992),
E ste livro v em tom ar a c e ssív e l ao leitor a su b jectivid ad e, as d ifi cu ld ad es e as in teracções so c ia is d aq u eles q u e o u v em v o z e s e v e m perm itir qu e o operador d e S aú d e M en tal e o p rofission al d e P siq u ia tria p o ssa m dar m ais sen tid o às suas in terven ções. U m m érito su p lem en tar d este livro é ex p lica r d e q u e form a as ex p eriên cia s d e escu ta d e v o z e s p od em con d u zir a p esso a à co n d içã o de p acien te ou , p e lo con trário, proporcionar a transform ação da sua p erson alid ad e a um n ív el su p erior d e integração q u e se traduz nu m a m udança p o sitiva radical d o sig n ifica d o e estilo de vid a da p esso a . A ssim , d efin e co m o p a cien te o ou vid or d e v o z e s qu e n e cessita de recorrer aos cu id ad os p ro fissio n a is d e P siq uiatria e d e S aú d e M en tal, não porque seja n ecessaria m en te portador d e um a d o en ça m ais ou m en os e sp e c ífic a qu e é n e cessá r io tratar e debelar, m as por n ão ser ca p az d e lidar ad eq u ad am en te co m a ex p eriên cia d e ou vir v o z e s e su as co n seq u ên cia s. N a g é n e se d esta d ificu ld ad e ap on tam -se factores d e vuln erab ilid ad e ao stress, q u e, m ais d o qu e m eros factores d e n atu reza b io ló g ica , há b oas razões para adm itir qu e se trate sobretudo d e fa c tores d e natureza p sic o sso c ia l, o n d e pon tuam sen tim en tos d e in se g u rança e perturbações d o d e se n v o lv im en to da iden tidade durante o p eríod o d e crescen ça. E sta form u lação p od e, a liá s, ajudar a A n trop o lo g ia a com p reen d er e d esm istificar o s p a ra lelism o s q u e se v ê forçad a a esta b elecer entre a “loucura” xam ân ica e afin s, por um lad o, e a cham ada “esq u izo fren ia ” por outro. S egu n d o P iers V iteb sk y (1 9 9 5 ),
“O termo ‘alucinações auditivas’ não pode ser utilizado para desig nar todos os modos de encarar este fenóm eno, nem salienta suficiente mente a sua natureza complexa e as íntimas relações que tem com o pensamento do paciente”.
“o paralelismo mais gritante com a ‘loucura’ xamânica encontra-se, talvez, na esquizofrenia. A crise esquizofrénica é susceptível de mergu lhar o indivíduo em terrores e pânicos comparáveis às visões iniciáticas do xam ã siberiano. O que não impede que a diferença seja grande, tanto
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no plano social como no plano psicológico. Onde a concentração mental do xam ã está aumentada, dispersa-se a do esquizofrénico; o xamã man tém um poderoso controle do seu espírito, enquanto que a esquizofrenia ocasiona a perda desse controle; e enquanto que a experiência do xamã regressa à sociedade, onde reverte e é partilhada para o bem de todos, o esquizofrénico fica aprisionado numa experiência privada, próxima do autism o”. N ã o estará aqui, antes, um a ex c e le n te d escriçã o da d iferen ça atrás esta b elecid a entre p acien te (o “esq u iz o fr é n ic o ”) e não p acien te (o xam ã)? F in alm en te, o livro de M arius R o m m e e Sandra E scher v em d e m onstrar que, ao contrário das cren ças psiq u iátricas m ais co m u n s, os ch am ad os “sin tom as p sic ó tic o s” tam bém sã o o reflex o de problem as p e sso a is, tal co m o se adm itia para o s ch am a d o s “sin tom as neuró tic o s ”; isto é, q u e a cham ada “d o en ça ” em P siquiatria, seja ela “n eu ró tica ” ou “p sicó tica ”, p o d e ser seriam en te in flu en ciad a p ela seq u ên cia das exp eriên cia s de vid a, ou seja, p ela biografia do pacien te. A o valorizarem o m un do interior d o p a cien te, a sua história e su b jectivid ad e, e as in teracções so c ia is o n d e a escu ta de v o z e s se insinu a, M arius R o m m e e Sandra E sch er arrebatam o “d o en te” ao pap el subalterno, v a zio , p a ssiv o e m arginal q u e a P siquiatria trad icio nal* hab itualm ente lhe reserva. S e d ú vid as h o u v e sse bastaria a lista de colab oradores e protagon istas d este livro para as dissipar por co m pleto: Paul B aker, B rian D a v ey , P atsy H age, A nn a H ofk am p, A lan L eader, R esi M aleck i, A n se Strefland são p e sso a s que irradiam en er g ia , cord ialid ade e força interior e a q u em a escu ta de v o z e s, no c o n te x to d e sta n o v a a b o rd a g e m , c a ta p u lto u para um p a p e l de reform u lad ores d e id eias e práticas e para p rotag o n ism o s so cia is in su sp eitad os. A p esar das v o z e s q u e o u v em , d o s d ia g n ó stico s p siq u iá tricos que lhes foram atribuídos e até d os m ú ltip lo s internam entos que algu n s d eles tiveram , m an ifestam um a brilhante in telig ên cia , sen sib i lid ad e e capacid ad e de ex p ressã o e d e sín tese q u e o s torna líderes in con testad os d e M o v im en to s e A sso c ia ç õ e s d e d iversa natureza.
* A designação «Psiquiatria tradicional», presente ao longo deste livro, é um termo equívoco e refere-se à Psiquiatria Clínica nas suas diversas vertentes. 24
Antropologia e História A P siq uiatria tem andado arredada da A n trop o lo g ia e da H istória; p o d e m esm o d izer-se qu e n a sceu e cresceu d e costas voltad as para ela s, q u içá co m a m issã o p rofética d e as revogar e negar. H istoricam en te, a escu ta d e v o z e s era a ceite p ela so cied a d e co m o um a ex p eriên cia altam ente sig n ifica tiv a (e ainda o é em m uitas partes d o m un do). O seu co n tex to e sig n ifica d o n u m in o so ca sa -se m elh or co m um a co n c ep çã o e estilo an im ista da vid a e d o m un do do qu e co m a estrutura das relig iõ es m o n o teísta s e da filo so fia d e E stad o. A lv o prim eiro d o s p rocesso s e a u to s-d e-fé da In q u isição, só d esd e o s alvores do sécu lo XIX, co m o triunfo da R ev o lu çã o F rancesa, o s prim eiros p a sso s da S o cied a d e Industrial e a co n seq u en te a scen sã o so cia l da B u rgu esia (e do P roletariad o), é qu e as v o z e s com eçaram a ser en ca radas co m o elem en to s co n stitu in tes d e d oen ça s. R esta saber se en ca i xar as v o z e s n o co n tex to das d o en ça s terá sid o o m elh or cam in h o. H á, hoje em d ia, algu m a p reocu p ação co m o facto d e as ex p eriên cia s d os o u vid ores d e v o z e s terem sid o relegad as para o pap el d e sin tom as d esp ro v id o s d e sen tid o e co m o facto d e se pedir aos o u vid ores de v o z e s qu e p rescin d am da su a p erson alid ad e em troca d e p rotecção e de cu id ad os d e saúde. Ora, o s p rofissio n a is d e saú d e, en q u an to tal, não p od em dar res p osta a tod os o s prob lem as, n em isso p arece m in im am en te d esejável. P elo contrário, é até p o ssív e l q u e o s p ro fissio n a is d e saú d e tenham poder d em asiad o. A lin g u a g em qu otidiana está , ainda h o je, recheada d e referên cias residu ais a um a ex p eriên cia d e estar no m u n d o, porventura m uito d iferen te da q u e h oje n os é fam iliar, qu e in clu ía a p resen ça d e v o z e s e a c o n v iv ê n c ia co m ela s, n o co n tex to d o ex istir hu m ano norm al. P o d em o s d izer d e outro m odo: um a ex p eriên cia d e estar no m un do em que os h o m en s v iv e m , ou v iv ia m , na com panhia das vozes. D e algu m a form a, co m o se d iz n o “9.° C ontrib uto P e sso a l” d este livro (ver C a pítu lo 8), essa s v o z e s apareciam “com o se fo sse m pesso as na nossa cabeça a explicar-nos as co isa s”. “P e sso a s” e ssa s, dentro ou fora da cab eça, co m as q u ais, co m o a co n te ce em certas rela çõ es fam iliares e 25
a fectiv a s, se é forçad o o u lev a d o a m anter um a relação de c o n v iv ê n cia , por m uito boa, m á ou a m b ivalen te que e la seja. O u, co m o se d iz n o “ 13.° C ontributo P e sso a l” (ver C apítu lo 8 ), essa s v o z e s p od erão ser en tend idas co m o a m a n ifestação de “deuses om niscientes e o m n ip o tentes que tudo orientam e determ inam sobre a terra ” , aos q u ais é n e cessá rio e im p erio so o b ed ecer porque não p o d em ser d esau torizad os. O u, en tão, pod erão ser p erceb id o s co m o a m a n ifestação de um ou v á rios d os in u m eráveis esp írito s q u e reflectem , num a p ersp ectiv a anim ista, as qu alida des am bíguas de um m eio em que os anim ais,
a p a isa g em e o tem po p o dem , consoante os seus hum ores, alim entar-nos ou d estruir-no s” (V iteb sk y , 1995).
A “V o z da C o n sciên c ia ” , a “V o z da R a zã o ”, a “V o z do S a n g u e” (isto é, a co n sciên cia d e fa m ília , d e clã ou de tribo), a “V o c a ç ã o ” (isto é, “ch am am en to”), ser-se “ um a p e sso a avisa d a ”, “ou vir o que n o s d iz o co ra çã o ”, etc., etc., etc., são apenas algu m as das m uitas ex p r essõ es que a essa form a de estar n o m un do, a e s s e co n tex to cultural, se referem . C o n texto cultural, n o tem p o e no esp a ço , e form a d e estar n o m undo de o n d e em erg em , aqui e além , num a ou noutra ép oca, nesta ou naquela região, grandes vu ltos da H u m anidad e cu jo pap el cru cial na m o d ifica çã o ou reinterpretação de cren ças e de co stu m es, de m o d o s de pensar e d e agir, radicou, directa ou ind irectam ente, na escu ta de v o z e s e na ex p eriên cia a sso cia d a * . T em p o e e sp a ç o de m etáforas, tem p o e esp a ço , ta lv ez, “em que o s anim ais falavam ” e em que anjos, d em ó n io s, esp íritos e d eu ses ou sa v a m con d u zir e orientar o d estin o d os h om en s e d os p o v o s. V o z e s, an im ais, anjos, d e m ó n io s, esp íritos e d eu ses que sã o, afm al e tam bém , o s actores d os m ú ltip los dram as, co m éd ia s e tragédias do teatro su b jectiv o do H o m em e da H um anidade. Entre n ós, L u ís P olan ah (1 9 8 7 ) ch am ou a aten ção para as trad ições de certas so cied a d es qu e p revêem a atribuição de um pap el so cia l e sp e c ífic o e de p restígio aos in d iv íd u o s que p assam por ex p eriên cia s
* São habitualmente citadas as figuras de Pitágoras, Sócrates, Moisés, Jesus, São Paulo, Maomé, Mestre Eckhart, Santa Teresa d’Ávila, Santa Joana d’Arc, Giordano Bruno, Gichtel, Swedenborg, Fechner, Jung, etc. 26
que, em so cie d a d e s co m o a n o ssa , são con otad as co m a d o en ça m en tal. É o ca so d o nh am ussoro, o curandeiro da m en te, e m certas s o c ie dades m o ça m b ica n a s - e d o xam ã em geral*. N o te -se , a liá s, a própria am bivalên cia sem ân tica do term o nh am ussoro: “P ara nós, assim ,
nham ussoro será ‘aquele que exerce a pro fissã o do tratam ento dos m ales da ca b eça ’, ou é ‘aquele que p o ssu i na cabeça esses m a les’.” V a le a p en a citar um p o u co m ais d em orad am en te L u ís Polanah:
“Saibamos em primeiro lugar que em um certo número de tratamen tos desses doentes tropicais, segundo os métodos da moderna neuropsiquiatria, com grande surpresa do médico, alguns dos seus doentes não melhoravam quando submetidos a uma cura pelos processos da medicina ocidental, mas restituídos ao seu meio tribal, passado algum tempo, podiam regressar à sua actividade normal, verificando-se que podiam ser considerados clinicamente curados. Isto fe z os cientistas concluir que, diversamente do critério europeu, certas doenças incluídas no quadro das doenças mentais possuem nas sociedades iletradas um matiz fortemente cultural. Quer dizer: são ao mesmo tempo manifestações patológicas do espírito e sinais de eleição religiosa. De um lado, admitidas como doença as perturbações da razão e o comportamento, do outro, não a segregação imposta pelo grupo como indivíduos inúteis mas, pelo contrário, o sentimento e a crença colectivos de que tais manifestações se fazem acompanhar duma intensa carga epifânica. O tratamento do doente, por esta forma, operava-se no grupo respectivo para reintegração dele com uma outra personalidade, aquela que parecia impor-se durante o período de perturbações, como a nova personalidade de evasão ou sublimação. Ora isto parece que não é o que preocupa ao psiquiatra europeu, que atende ao paciente sem lhe garantir nenhum lugar ou posto de evasão dentro da sociedade a que ambos pertencem, sim, mas em que não cabe a ambos a mesma oportu nidade. M uito pior o problema quando o doente dum neurologista ou dum psiquiatra, em áreas tropicais, era apenas tratado ‘clinicamente sem qualquer acompanhamento ou consequência cultural, isto é, sem qualquer possibilidade de transformar a terapêutica do desarranjo men tal num contexto carregado de vocação sacral como o seu grupo estaria disposto a adm itir.”
* Como diz Piers Vitebsky, “os xamãs são ao mesmo tempo médicos, padres, trabalhadores sociais e místicos”. 27
E m ais adiante:
“...o que se assiste [...] é o reconhecimento colectivo de que a etiologia de tais anormalidades do comportamento goza duma origem numinosa e requer, por conseguinte, um tratamento que, mais do que simplesmente medicamentoso, é sobretudo espiritual e religioso, visto que põe o antigo padecente em ligação com o mundo invisível, panteão dos seres sagra dos. O doente emerge assim da doença para a sacralidade de um novo ministério: ele renasce com uma nova personalidade social. Sublima-se perante o seu grupo porque reaparece ‘eleito’ para uma nova e superior condição de vida, de maior responsabilidade social. Isto significa que, em face de casos clinicamente tratados como psi coses e neuroses, desencadeados por circunstâncias económicas e so ciais, ou por carências alimentares e estados de angústia, não chega para levar a cura e a tranquilidade a ciência médica do europeu. Alguma coisa mais existe que é imperativo tomar em consideração: são os dados da sua cultura, as raízes da sua mentalidade caracterizadamente emotivas e metafísicas.” E stas co n sid era çõ es são v álid as tam bém para o s xam ãs em geral, cuja ex p eriên cia “p sico p a to ló g ica ” o s torna aptos e o s cred en cia para cuidar d o s m a les d os seu s sem elh an tes. M as o p aralelism o entre a v isã o xam ân ica da realidade e a abor d agem tratada n este livro não fica por aqui. O xam ã, d iz P iers V iteb sk y (1 9 9 5 ) encara “os ‘m a les’ dos pa cien tes com o episódios do seu d e senvolvim ento p esso a l g e ra l”. E m ais adiante: “os p ro cesso s com o o
cham ado ‘teste da rea lid a d e’ não pro vam o real, apenas confrontam um m a teria l novo com um a ideia p reco nceb ida do re a l”. A própria
ideia de o b ten çã o do con trole sobre a ex p eriên cia de ouvir v o zes, várias v e z e s repetida n este livro, é , co m o se p o d e ver p elo que vem sen d o d ito até aqui, um a ideia profundam ente xam ân ica, isto é, tra d icio n a l. Por isso m esm o , é um tanto desconcertante a form u lação de V itebsk y sobre as rela çõ es entre o xam ã e o doen te m en tal esq u izo frén ico ou p sicó tico : 28
“O molde cultural form a a personalidade xamânica, e os xamãs são ‘loucos’ com a permissão de uma cultura e segundo a óptica dessa cultura. No fim de contas, é a sociedade que estabelece a distinção entre o comportamento dos xamãs e o do esquizofrénico ou do psicótico. Um torna-se um herói, enquanto o outro é bom para o asilo. O xamã vive à beira do abismo, mas dispõe dos meios necessários para não cair nele.” O q u e V iteb sk y n ão d iz é q u e a so cie d a d e q u e prod uz o xam ã e a so cied a d e q u e prod uz o e sq u izo frén ico o u o p sicó tico n ão sã o a m esm a so cied a d e, e q u e n ão há n o tícia d e h aver a silo s d e lo u co s nas so cied a d es on d e há xam ãs. D ito d e outra m aneira, é tão im p rovável encontrar esq u izo frén ico s ou p sic ó tic o s, tal c o m o n ós o s co n h ecem o s, num a so cied a d e q u e prod uz xam ãs c o m o encontrar xam ãs nu m a so cied a d e qu e prod uz os “n o sso s” e sq u izo frén ico s ou p sicó tico s. N a so cied a d e q u e prod uz xam ãs - o u n h am u ssoros, ou outra d e sig n a çã o q u a lq u e r -, o in d ivíd u o exp erim en ta a perturbação m ental m ergu lh ad o num sistem a d e referên cias e stá v el qu e o m antém em lig a çã o co m a u n idade e o eq u ilíb rio do c o sm o s, e , um a v e z superada a sua perturbação, a so cied a d e rein tegrá-lo-a co m o curador da m en te, um a v e z qu e sofreu e superou a sua própria perturbação. N o O cid en te, o in d ivíd u o qu e ex p erim en ta a perturbação m ental m ergu lh a n o v a zio e, se recu sa an iq u ilar-se, terá qu e descob rir por si m esm o o sistem a d e referên cias qu e d ê sen tid o e in telig ib ilid a d e ao que se p assa co n sig o . M as, ainda a ssim , n u n ca d escob rirá um sistem a de referên cias q u e seja partilhado por to d o s o s seu s sem elh an tes. N a m elh or das h ip ó teses, passará a integrar um p eq u en o grup o, um a seita, um a a sso cia çã o , um m o v im en to . E , u m a v e z recuperado da sua per turbação, n ão o esp era n enh um n o v o p ap el e sp e c ífic o na so cied a d e por virtud e da ex p eriên cia adquirida: tu do o q u e preten dem d ele é que reg resse o m ais d ep ressa p o ssív e l à p erson alid ad e qu e tinha antes da perturbação e qu e “esq u eça ” rapid am ente a sua n o v a iden tidade - se isso fo sse p o ssív e l. C o m o acab ám os d e ver, nas so cie d a d e s trad icion ais, o p ad ecen te p o d e to m ar-se so cia lm en te um e sp e cia lista “prático” e “teó rico ” do 29
seu p ad ecim en to. E o que e ste livro v em dem onstrar é que e sse papel pod e ser recuperado e u tilizad o tam bém na n o ssa so cied a d e, na m e dida em qu e, de acordo co m a ex p eriên cia h o lan d esa e britânica, há o u vid ores de v o z e s que ajudam outros ou v id o res de v o z e s a lidar co m a ex p eriên cia - e na m ed id a em qu e c o m eça a tom ar-se em linha de con ta o s quadros de referên cia teórica q u e e le s adoptam para exp licar as suas exp eriên cias. E m M aastricht, o s ou v id o res de v o z e s estão h oje a m inistrar cursos sobre escu ta de v o z e s aos p ro fissio n a is e a participar em grupos de ajuda m útua, em co n ferên cia s, em co n g re sso s, co m o trabalhadores na área de in iciativas com un itárias, etc.
Patsy Hage e a experiência holandesa A person alid ad e de P atsy H a g e m a n ifesta -se ao lo n g o de todo este livro co m o sua figura tutelar e inspiradora. O u vidora de v o zes d esd e o s 7 ou 8 anos de idade, P atsy fo i natu ralm ente levad a a co n clu ir que e ssa s v o z e s, sobretudo d ep o is d os 15 anos, quando passaram a com p ortar-se co m o figuras d em asiad o auto ritárias, austeras, restritivas e arbitrárias, ao p on to de a dom inarem e isolarem por co m p leto , eram a m an ifesta çã o de “deuses om niscientes e om nipotentes que tudo orientam e determ inam sobre a T erra ". E sta era, sim u ltan eam en te, um a e x c e le n te ex p lica çã o para o en ig m a de ter de obed ecer a essa s vozes; os deuses são obedecidos p o rq u e os
hum anos não estão pred ispo sto s a discorda r das ordens deles; os d eu ses, sendo om niscientes e om nipotentes, não p o dem ser desa utori za d o s”. A m aneira co m o o s d eu ses falam na Ilíada de H om ero e a form a co m o Patsy v iv ên cia as suas v o z e s têm para ela um paralelism o notável:
“Os deuses falam uns com os outros, ameaçam, troçam, dão ordens, vaticinam. Gritam, lamuriam-se e escarnecem. Sem motivo aparente passam do murmúrio à gritaria. Muitas vezes, exibem particularidades específicas, como falar muito devagar ou muito ritmicamente." 30
Para P atsy, as v o z e s têm um carácter d e realid ad e in so fism á v el. P assa o p rim eiro ano d e terapia co m o P ro fessor M arius R o m m e a tentar c o n v e n c ê -lo d e qu e o p rob lem a d ela n ão era “c lín ic o ” , na m ed id a em q u e as v o z e s eram exteriores a si m esm a:
“Se você acredita num Deus que ninguém pode ver, então por que não acredita nas vozes que, pelo menos eu, oiço nitidamente e tão reais são para mim?” Internada várias v e z e s, c o m o d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia , tarda em encontrar um a saída para a tirania das v o z e s. O s n eu rolép ticos reduziam a an sied ad e, m as afectavam o esta d o d e alerta p síq u ico e não tinh am q u alq uer acçã o sob re as v o z e s. P atsy c o m e ç a a falar cad a v ez m a is em su icíd io . A teoria q u e vin h a d e se n v o lv en d o sobre a natu reza das suas v o z e s b a sea v a -se nas id eias d o p sic ó lo g o am erican o Julian Jayn es, segu n d o o qual a escu ta d e v o z e s tinha sid o , nou tros tem p o s, um p rocesso norm al d e tom ar d e c isõ e s - m as qu e tem v in d o a ser, a p o u co e p ou co , sub stitu íd o por aq u ilo a qu e h oje ch am am os c o n sciên cia . A ssim , não sen d o h oje a escu ta d e v o z e s o fen ó m en o gen era liza d o e un iversal qu e noutros tem p os terá sid o , en tão, co m o d iz P atsy H age, “as p esso as
que continuam a ou vir vozes estão, a bem dizer, a viver no século erra d o ”.
E sta fo rm u la çã o teó rica — d ig a m o s a ssim — viria a rev ela r-se “o ú n ico a sp ecto p o sitiv o ” das en trevistas terap êu ticas, e M arius R o m m e p a sso u a encarar a p o ssib ilid a d e d e u m a alteração radical da sua abordagem :
“Para podermos compreender o outro, temos de fazer a transposição do sistema de crenças do ouvidor de vozes para o nosso próprio sistema de crenças. Ao contrário da Psiquiatria tradicional, nós não negamos liminarmente a experiência só porque a explicação que o ouvidor de vozes nos dá é inverosímil ou falsa aos nossos olhos. Ainda que essa explicação fosse completamente falsa no nosso sistema de crenças, a experiência, essa, está lá e pode fazer todo o sentido.”
A teoria ex p lica tiv a q u e P atsy ad op tou e a v iv a cid a d e e clareza co m q u e a exp u n h a tom a v am -n a um a p oten cia l líder d e co m u n ica çã o, o qu e fe z M arius R o m m e organizar en trevistas a d o is, entre ela e 31
outros ou v id o res d e v o z e s - en trevistas às qu ais e le próprio assistiu . V a le a p ena assin alar aqui a im p ressão qu e e sse s en con tros causaram em M arius R om m e:
"Eu, que estava presente assistindo às entrevistas, sentia-me perplexo diante da facilidade e da vivacidade com que todos eles identificavam e reconheciam as experiências uns dos outros. A princípio achava difícil seguir a conversa deles: para os meus ouvidos, os conteúdos dessas conversas eram bizarros e muito sui generis e, para cúmulo, discutiam tudo abertamente como se estivessem a fa la r de um mundo em si e para si mesmo.” E ainda: “Cada nova sessão que se fazia gerava uma iden tificação mútua ainda maior." Para o s in terven ien tes, esta v a quebrado o isolam en to. N o entanto, ao lo n g o d estes en con tros n enh um d o s p a cien tes se m ostrou capaz de lidar p o sitiv a m en te c o m as suas v o z e s, apesar do à-von tad e co m que to d o s falavam das su as ex p eriên cia s. Era ch eg ad o o m o m en to de im aginar um p r o c esso d e am pliar o m ais p o ssív e l o leq u e de con tactos co m o u v id o res d e v o z e s que p erm itisse encontrar p esso a s que não só não se sen tissem im p oten tes perante a ex p eriên cia de ou vir v o z e s c o m o fo sse m até ca p a zes d e se en ten d er co m ela s no d ia-a-d ia. A so lu çã o encontrada fo i o popular program a “Sonja op M aa n d a g ” (S ón ia à S egu n d a ), da T V h o la n d esa - em que P atsy e R o m m e seriam os en trev istad o s de um a das se ssõ e s. F alan do da sua própria exp eriên cia p e sso a l, P atsy co n fid en cia ria a S on ja, a apresentadora do program a:
"O mundo das vozes é mais real para mim do que o mundo que existe em volta delas, o mundo que todos nós percebemos. Por isso, eu não sei o que é viver sem vozes.” D urante o program a, P atsy e R o m m e con vid aram o s telesp ecta d o res o u v id o res de v o z e s a co n tactá -lo s telefo n ica m en te no fim . V eri ficaram q u e m u itas das p e sso a s q u e resp on deram eram ca p azes de se en ten d er co m as v o z e s , sem precisarem de recorrer à a ssistên cia p si qu iátrica. N a lg u n s c a so s até se sen tiam fe liz e s por as ouvirem . E sta d escob erta surpreendente levan tou um a q u estão fundam ental: até q u e p on to as estratégias u tilizad as p ela s p e sso a s q u e se en tend em b em c o m as v o z e s q u e o u v em p od eriam ser tam bém u tilizadas pelas p e sso a s co m d ificu ld a d e em lidar co m as suas? 32
F ace a toda esta n o v a realid ad e, M arius R o m m e in icio u o estu d o das ex p eriên cia s d os o u v id o res d e v o z e s (v er C ap ítu lo 2 d o presen te livro), estu d o e s s e qu e p ro sseg u e actu alm en te em n o v o s m o ld es (ver C apítu lo 11). E fe z ainda duas co isa s fu nd am en tais: apoiar a fu n d ação de um m o v im en to d e o u v id o res d e v o z e s e organ izar um C on gresso co m v ista a p rom over um a d iscu ssã o m ais alargada d o fen ó m en o , e, sim u ltan eam en te, m od ificar a atitud e da so cied a d e perante a escu ta de v o z e s e a m aneira co m o o s o u v id o res d e v o z e s são h ab itu alm en te encarados e tratados p elo s p ro fissio n a is d e saú d e, em esp e cia l os psiquiatras. A este p rop ósito, refira-se aqui o m od o c o m o p assam a ser en ca rados, n esta p ersp ectiva, o s sistem a s d e cren ças d o s ou v id o res de v ozes:
“Tal como os profissionais de Saúde Mental, também os ouvidores de vozes têm um sistema de crenças que lhes permite compreender as suas experiências. Por essa razão, tivemos que estabelecer um contacto muito estreito com os múltiplos e variados sistemas de referência que os ouvidores de vozes utilizam para as explicar” (Marius Rom m e - ver Capítulo 11).
R efira-se aqui o trabalho d e fa m iliarização co m e sse s v a riad íssim os sistem as d e cren ças qu e ao s C oord en ad ores da E d ição P ortu gu esa prop orcion ou e m ereceu o C ap ítu lo 7 d este livro. L o n g e d e con stitu ir um a tarefa ingrata, fa stid io sa e “ in ú til” , rev ela r-se-ia um estim u lan te d esa fio e um a inesp erada d escob erta. N u m certo sen tid o, e co m o tiv em o s já o ca siã o d e referir, e s s e s sistem a s d e cren ças porfiad am en te p rocu rad os p e lo s o u v id o res d e v o z e s - p e lo m e n o s, p e lo s m a is in con form ad os - v êm ocup ar o v a z io d eix a d o na estrutura p síq u ica e m ental da n o ssa so cied a d e p e lo s sistem a s d e cren ças trad icion ais, ca íd o s em d esgraça na seq u ên cia da In q u isição e da R ev o lu çã o U r bana e Industrial. A liá s, o s sistem a s d e cren ças e referên cias pro curados p elo s ou v id o res d e v o z e s n ão são característicos n em e x c lu siv o s d os o u v id o res d e v o z e s . T o d a s e ssa s teorias e p ersp ectivas ex istia m já antes d e ser procuradas por e le s e têm ad ep tos e segu id ores entre a p op u lação em geral. P o d e d izer-se q u e fa zem parte da verten te m eta física, m ística e relig io sa d o H om em . 33
P orém , co m o d iz M arius R om m e,
“nós não passámos a acreditar que Deus possa falar connosco da mesma maneira que as pessoas falam umas com as outras. M as ficám os, sem dúvida, a saber que captar a fala de Deus pode estar, de muitas manei ras, em relação com a história biográfica de quem a escuta. Pode repre sentar, por exemplo, a afirmação de determinados ideais, como na re ligião, ou representar a figura de educadores que se comportavam como deuses e em relação aos quais a pessoa se sentia impotente e obrigada a obedecer durante a infância, etc.” A história de P atsy H a g e é um bom ex em p lo de co m o a lg u ém que passa p ela ex p eriên cia de ou vir v o z e s na co n d içã o d e p a cien te, de que é testem u n h o o seu “C ontributo P esso a l” n este livro, a scen d e ao papel de teorizadora da exp eriên cia v iv id a (ver S e cçã o Ja yn es e a consciência, C ap ítu lo 9 ). E é tam bém um e x c e le n te ex em p lo de c o m o as prop ostas e in icia tivas resultantes d e fo rm u la çõ es co m o as da P siquiatria S o cia l da e sc o la h olan d esa n ão p reten dem d iglad iar-se inu tilm en te co m as for m u la çõ es e p rop ostas da P siquiatria C lín ica, de raiz b io ló g ic a ou p sico d in âm ica , antes v êm , sim p lesm en te, ocup ar um esp a ço d e c o n cep çã o e de in terven ção q u e, por este ou por aq u ele m o tiv o , a P si quiatria C lín ica d eix a em branco ou não tem v o ca çã o para preencher. A través desta ab ord agem ou de abordagens afin s, e sta b e lec e-se um a ponte entre a ex p eriên cia p esso a l d os o u vid ores d e v o z e s e as c o n c ep çõ es e so lu ç õ e s m a is ou m en os d ogm áticas dos p r o fissio n a is, estim u la n d o-se o d e se n v o lv im en to da parceria - em que am bas as partes p od em com partilhar os seu s co n h ecim en tos e sp e c ífic o s, a três níveis: a) E xperiência p esso a l C o m o é que as p e sso a s aprendem a lidar co m a ex p eriên cia de escu ta de v o z e s, c o m o pod erão apoiar-se um as às outras e qu e im por tância tem para o s terapeutas aprender co m a exp eriên cia p esso a l dos seu s utentes. 34
b) T ratam ento Q u e teorias e práticas d e tratam ento são relevan tes e a ceitá v eis para as p e sso a s q u e o u v em v o zes; até qu e p on to é relev a n te o d ia g nóstico p siq u iátrico para qu e as p esso a s que o u v em v o z e s aprendam a lidar co m ela s. c) A titud es sociais T anto a atitu d e d os p ro fissio n a is d e P siq uiatria e S aú d e M ental co m o a atitude so cia l em geral in flu en ciam a m aneira co m o as p e sso a s que o u v em v o z e s lid am co m as suas exp eriên cia s. M o d ifica r a im a gem so cia l da escu ta d e v o z e s e encorajar a organ ização d e m eca n is m os de ajuda m útua p arece estim u lar a co n fia n ça d o s o u v id o res de v o zes em si próp rios e a form a d e lidar co m a exp eriên cia .
Notas sobre a edição portuguesa R esp eitan d o o p rop ósito da versão origin al h o lan d esa e da versão in glesa qu e n o s serviu d e b ase, ao apresentarm os e ste liv ro ao leitor de lín gu a p o rtu g u esa ev itá m o s d elib erad am en te u tilizar q u aisq u er term os ou ex p r e ssõ e s que p u d essem , ainda qu e in d irectam en te, ter co n o ta çõ es d e tip o técn ico ou qu e fo sse m fa cilm en te tran sform áveis em tal, sob retu d o ten d o em lin h a d e con ta a lig eireza co m q u e ex p res sõ es corren tes e co lo q u ia is da lín gu a in g lesa são capturadas p e lo falar e escrev er d o s técn ico s d o s n o sso s p aíses. A lém d o m a is, é p reocu p ação do livro n ão utilizar term os p siq u iá tricos, m esm o a q u eles q u e porventura estejam tão co n sa g ra d o s p elo uso que já sã o largam en te u tiliza d o s p elo s próprios u ten tes, c o m o será o ca so d e “a n teced en tes p e sso a is”, “p recip itan tes”, “p erson alid ad e prévia”, “ a lu cin a çõ es a u d itivas”, etc. N o co n tex to da abord agem pro posta por este liv ro , e s s e s term os não d ign ificariam , n ão valorizariam nem reflectiriam a ex p eriên cia su b jectiva d os o u vid ores d e v o z e s nem o seu sig n ifica d o . 35
A versã o p ortu gu esa apresenta algu m as particularidades e sp e c ífi cas em relação às d em ais e d iç õ e s d este livro. A n tes d o m ais, apresenta um C apítu lo inteiram ente n o v o (C apítu lo 11 - C om preender as V o zes), q u e n o s dá con ta de um n o v o estu do d e M arius R om m e e Sandra E sch er (1 9 9 6 ) sobre o u vid ores de v o z e s, n om ea d a m en te a elaboração e m o d o d e a p licação de um a E ntrevista P adronizada. E ste capítu lo corresp on d e a um artigo q u e aguarda p u b lica çã o na literatura cien tí fica. A p resen ta ainda um conjun to de notas de rodapé, cuja fu n ção é situar o leitor n o prob lem a tratado, exp licar m elh or determ inado co n ce ito , traçar p aralelism os interessan tes, ch am ar a aten ção para deter m inado a sp ecto , etc. C om ex cep çã o de se is n otas d o C apítulo 4, d ev id am en te assin alad as co m o fa zen d o parte da ed içã o origin al in g le sa (E .I.), todas as restantes notas de rodap é são de n o ssa inteira resp on sab ilid ad e. A s ep íg ra fes que en cab eçam alguns ca p ítu lo s sã o tam bém da n ossa resp on sab ilid ad e. A b ib lio g ra fia fo i reunida num corp o ú n ico , em lugar d e estar d ispersa, e ev en tu alm en te repetida, p e lo s d iv erso s cap ítu lo s, e foi en riq u ecid a co m referên cias com p lem en tares por n ós acrescen tadas, b em co m o co m as referên cias b ib liográficas d o origin al h olan d ês que foram om itid as na versão in glesa. C rem os, assim , ter agu çad o o apetite d o leitor para um livro tão fascin an te c o m o inovador e que pod e alterar d ecisiv a m en te as ex p ectativas d os o u vid ores de v o z e s de lín gua p ortu gu esa e, qu em sabe, despertar in teresse entre algu n s d os trabalhadores de Saúde M ental d os n o sso s p aíses. C on virá aqui escla recer o s leitores que tenham tido oportunidade d e ler o n o sso livro “E squ izofrenia”: U m a D o ença ou A lg uns M odos de Se S er H um ano? e q u e se tenham interrogad o sobre a utilidade prática d o s co n c eito s n ele ex p resso s, que encontrarão em N a C om pa nhia das V ozes um d os cam in h os p o ssív e is d e ex p ressã o prática das id eias e d o paradigm a que en tão prop u sem os. E por isso , aliás, que esta m o s aqui. 36
PRÓLOGO DA VERSÃO INGLESA L o rd e E n n a ls (Presidente da Associação MIND) A fazer fé na im pren sa popular, ou vir v o z e s é um fen ó m en o que qu ase sem pre levaria as p e sso a s a co m eter a ctos v io len to s e destrui dores. E , a acreditar na P siquiatria ortod oxa, a ú n ica saída para as p esso a s que o u v em v o z e s é tom ar m ed ica m en to s, o s q u ais, se pod em efectiv a m en te elim in ar as v o z e s, p o d em tam bém levar as p e sso a s que os tom am a sen tir-se len tificad as ou irrequietas. M ed ica m en to s e sse s que p od em tam bém provocar, seg u n d o se d iz, le sõ e s cerebrais perm a n en tes, se tom ad os em d o ses elev a d a s e por lo n g o s p eríod os d e tem po. D iversam en te, N a C om panhia das V ozes destrói o estereótip o da im prensa popular quanto à propalada p erigosid ad e d os qu e ou vem v o z e s e ao su p osto con trole d estas p e sso a s por in v isív eis forças d e m oníacas; dem on stra q u e um a b o a parte d e n ó s tem exp eriên cias au d itivas estranhas; q u e m u itos d e n ó s n ão precisam d e recorrer à P siquiatria por isso; e q u e algu n s d e n ó s acab am por d escob rir form as de lidar co m essa ex p eriên cia au d itiva sem q u e ela interfira co m a sua vid a so cia l ou co m as su as activ id a d es q u otid ian as. N a m inha m aneira d e ver, o n ú cleo e ssen c ia l d este livro é co n s tituído por 13 d ep o im en to s ín tim os d e p e sso a s q u e, ou v in d o v o zes, acabaram por estab elecer, d e um a form a ou d e outra, um m odus 37
vivendi co m as suas próprias ex p eriên cia s, integran do-as nas suas vid as. E stes d ep o im en to s en co n tra m -se en trem ead os por um a vasta gam a de form u la çõ es teóricas, algu m as das quais abordam o fen ó m en o à m argem do m o d elo m éd ico , en qu an to outras representam as linhas d e referên cia que se p o d em encontrar no interior da própria P si quiatria. O antepen últim o cap ítu lo d o livro é ta lvez aq u ele que m ais útil poderá vir a ser para quem d e se je aprender a lidar co m as suas v o zes. A í se d escrev em d iversas técn ica s co n ceb id a s n o sen tid o de se obter um m aior con trole sobre a ex p eriên cia e, co m o diz o P rofessor R om m e, assegurar que o d e se n v o lv im en to da p e sso a em lugar de ser inibido seja estim u lad o. O P rofessor M arius R o m m e e Sandra E sch er (organizadores d este livro) estão du plam ente de parabéns, não apenas por terem prod uzid o um ex celen te ex em p lo de in v estig a ç ã o o rigin al, para o qual con trib u í ram m uitos ou vid ores de v o z e s h o la n d eses e britân icos, m as ainda p elo s seu s in ca n sá v eis e sfo rço s, por essa E uropa fora, no sen tid o de ultrapassar os tabus so cia is q u e rod eiam o assu nto.
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1 INTRODUÇÃO M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r A n tes d e m ais nada, e ste livro d estin a -se àq u eles q u e o u v e m v o z e s. O n o sso prin cipal o b je ctiv o é p ô -lo s ao corrente da ex p eriên cia d e outros co m o e le s, d e form a a aju d á-los a com p reen d er o p rob lem a e a lidar co m e le so zin h o s. T anto as p e sso a s q u e o u v em v o z e s c o m o toda a g en te q u e se interessa por este fen ó m en o sab em qu e n ão é fá cil trazer à b a ila e sse assu nto nas co n v ersa s d o dia-a-d ia; é , na verd ad e, um tem a virtu al m en te tabu. Por isso , esta m o s m u ito reco n h ecid o s a to d o s aq u eles qu e se prontificaram a d escrev er-n o s as suas ex p eriên cia s d e v o z e s, m esm o correndo co m isso algu m risco p esso a l. F oi con tu d o, p rov a v elm en te, a ún ica m aneira d e tom ar esta form a d e p ercep ção m ais am p lam en te com p reen d id a e aceite. A s p esso a s lid am co m as su as v o z e s das m ais d iversas m aneiras. A ssim , se se o u v e v o z e s , a form a co m o h o je se lid a co m ela s n ão é n ecessariam en te a ú n ica ou a m elhor. O s C ap ítu los 6 e 8 rep rodu zem as histórias d e vários o u v id o res d e v o z e s, tal co m o e le s as contaram . U m a leitura cu id ad a d e sse s d ep oim en tos m ostra qu e a ex p ressã o “ou vir v o z e s ” abrange um a va sta gam a d e ex p eriên cia s m u ito d iversas. 39
Q u em n ão c o n se g u e lidar co m as v o z e s q u e o u v e acaba, habitual m en te, por precisar de ajuda psiquiátrica. O tratam ento que lh e é o ferecid o assen ta m uito no p ressu p osto de que o m elh or para o pa cien te é elim in ar-lh e as v o z e s por com p leto . C ontu do, este p on to de vista tem v in d o a m udar a p o u co e p ou co. A s p e sso a s co m eça m agora a com p reen d er q u e o p rob lem a fundam ental não é tanto o fa cto de ou vir v o z e s m a s, antes, a incap acid ade de lidar co m ela s. E m vários p o n to s d este livro se poderá verificar q u e há p e sso a s que d e se n v o lv em um a relação m uito p o sitiva co m a ex p eriên cia d e ouvir v o z e s, lid an d o co m o prob lem a totalm ente à m argem de qualquer ap oio ou tratam ento psiquiátrico; qu e adoptaram um sistem a de refe rên cias teóricas (co m o a p arap sicologia, a teoria da reincarnação, a m etafísica, o in co n scien te c o le c tiv o , ou um a esp iritu alid ad e de n íveis m ais elev a d o s d e co n sciên cia ) que o s lig a aos outros, em v e z de os m anter iso la d o s, e lh es o ferece um a p ersp ectiva e um a lin gu agem que lh es perm ite com partilhar as suas exp eriên cias. D e sse m od o, sentem qu e são a ceites, qu e o s seu s d ireitos são recon h ecid o s e d ese n v o lv em um sen tid o d e iden tidade q u e o s p od e ajudar a fazer um u so constru tivo das suas ex p eriên cia s, em seu próprio b e n efício e em p roveito dos outros. A lg u m a s d essa s p esso a s d escrev em as suas ex p eriên cia s no C apítu lo 6. E ste livro co n ta tam bém a história de p esso a s q u e precisaram de cu id ad os p siq u iátricos por terem sid o incap azes de lidar co m o facto d e ouvir v o z e s ou co m o s prob lem as do d ia-a-d ia q u e habitualm ente lhe estão a sso cia d o s. O C apítulo 8 dá-n os o s seu s d ep o im en to s p es soais. S e le c c io n á m o s as p esso a s q u e tiv essem tentado d escob rir a sua própria m aneira, ainda q u e tortuosa, de lidar co m as suas v o z e s e p ercep çõ es. E ram p esso a s que de um ponto de v ista psiqu iátrico se pod eriam con sid erar gravem en te doen tes; num a ou noutra o ca siã o , todas ela s tinham estad o internadas num hospital psiqu iátrico. O leitor irá agora c o n h ecê-la s. A o contrário d o que estaria à espera, irá pare cer-lh e q u e e ssa s p e sso a s irradiam en ergia, cord ialid ad e e força inte rior. S e não tiv e sse m encontrado um com pan heiro, a m ig o s ou fa m i liares que lh es tiv esse m a ceite e com p reen d id o a presen ça das v o zes e das p ercep çõ es a ssociad as, ta lvez nenhum a d essa s p e sso a s tiv esse ido tão lon g e. 40
Em certa m ed id a, é tam b ém sig n ifica tiv o q u e, e ssa s p e sso a s c o n tinuem a id en tifica r-se co m as suas v o z e s, sem q u e, n o en tan to, isso represente qualq uer em p ecilh o a um a vid a so c ia l norm al. A ex ten sã o e a n atu reza d e ssa id en tificação variam m u ito d e p e s soa para p e sso a . A lg u m a s acabaram por tom ar a d e cisã o d e recusar toda e qualquer a ssistên cia p siqu iátrica, p e lo fa cto d e esta pressu por a c o n c ep çã o d o fen ó m en o d e ou vir v o z e s c o m o um m ero sin tom a d e um a d o en ça , ign oran d o o p o ssív e l sig n ifica d o das v o z e s no co n tex to da história b io g rá fica do p acien te. E ste g én ero d e tratam ento n ão dá qualquer oportu n id ad e d e id en tificação co m as v o z e s, oportunidade que con stitu i o p rim eiro p a sso para a criação d e estratégias d e su p e ração do prob lem a. O co n c eito d e d o en ça e c lip sa tudo o resto. Para a P siq u iatria clá ssica , um a a lu cin ação é , fu n d am en talm en te, um sin tom a d e um a d o en ça m ental grave ch am ad a esq u izofren ia. Era esta a p ersp ectiv a d e q u ase tod os o s patriarcas da P siq uiatria, de E. K raepelin a W . G riesin g er e a K . S ch n eid er. C on tu d o, esta inter pretação tem v in d o a ser alterada a p o u co e p o u co por um a série de em in en tes psiqu iatras. Cari Jung é, ta lvez, o m ais bem co n h ecid o . A lém d isso , e s s e m o d elo tradicional é co n testá v el tam bém à lu z da d escrição d e a lu cin a çõ es exp erim en tad as em circu n stân cias extrem as: por e x e m p lo , seg u n d o a A m n istia Intern acion al, 80% das p esso a s sujeitas a tortura exp erim en tam a lu cin a çõ es durante o ord álio, e o fen ó m en o tem sid o tam bém ob servad o em v eleja d o res d e lo n g o curso (B en n et, 1 9 7 2 ). O ra, em ca so s co m o estes, n ão há, m uito p e lo c o n trário, qu alq uer in d ício d e d o en ça m ental. O C ap ítu lo 2 trata das prim eiras in v estig a ç õ e s qu e viriam a in sp i rar e ste liv ro e ex p lica co m o a in cap acid ad e d e m uitas p esso a s se en ten d erem co m as v o z e s qu e o u v em n os le v o u a procurar algu ém que tiv e sse d escob erto estratégias m ais ou m en o s e fic a z e s d e lidar com elas. N o C ap ítu lo 3, Paul B aker d escrev e-n o s o con ju n to d e d e se n v o l v im en to s q u e ocorreram na G rã-B retanha in sp irad os por esta in v es tigação. N o C ap ítu lo 4 , a D r.a d e Bruijn d á-n os um a b rev e resen ha histórica da co n tín u a b u sca hum ana d e form as d e ex p lica r e d e com preend er as ex p eriên cia s e as p ercep çõ es m en os h ab itu ais, realçand o as d ificu l41
dudcs sentid as p e lo in d ivíd u o e por a q u eles que o rodeiam em aceitar e s s e s fen ó m en o s. h m situ a çõ es d este tipo, q u e p o d em ser extrem am en te p en o sa s, o ap o io m útuo a ssu m e um a en orm e im portância. O p ersisten te tabu so cia l que rodeia a qu estão das v o z e s tem sid o a m o la propulsora da criação de o rg a n iza çõ es q u e ajudem o s ou v id o res d e v o z e s a reunir-se, a co n h ecer-se e a cooperar uns co m o s outros. A prim eira prio ridade da R ed e B ritânica d e O u vid ores d e V o z e s, bem c o m o dos terapeutas e d os trabalhadoresa so cia is, é a prom oção e o encorajam ento da co m u n ica çã o entre ou v id o res de v o z e s. C o m o o dem onstra Sandra E sch er no C apítu lo 5, esta form a d e co m u n ica çã o recíp roca m ostrou-se de grande utilid ad e para m uita gen te. O s C apítu los 6 e 8 são, sem d ú vid a, as partes m ais im portantes d este livro. R efer em -se às ex p eriên cia s p e sso a is d e g en te que o u v e ou o u v iu v o z e s. O C apítu lo 6 é d ed ica d o a algu n s h ola n d eses que nunca se sub m eteram a cu id a d o s p siq u iátrico s p ro fissio n a is, en qu an to o C apítu lo 8 se d ed ica às ex p eriên cia s d e um a h olan d esa e d e cin co b ritân icos, utentes ou ex -u ten tes d o sistem a psiqu iátrico. O C apítu lo 7 d etém -se n algu m as p ersp ectiv a s não psiqu iátricas do tem a, situando portanto a audição de v o z e s fora do m od elo das doen ças. N o C apítu lo 9 , p assam os em revista várias abordagens da esfera da p rofissão psiquiátrica, co m o form a de pôr o leitor ao corrente da variedade d e teorias ex p lica tiv a s q u e a P siquiatria p o ssu i sobre o tem a. N o C apítu lo 10, p a ssa -se um a v ista d e o lh o s por estratégias que poderão auxiliar o ou vid or de v o z e s a co n seg u ir e a m anter um certo grau de con trolo sobre a situ ação. A lg u m a s destas estratégias p od em ser p ostas em prática p elo próprio o u v id o r d e v o z e s, co m o seja escre ver um diário ou participar em gru p os de ajuda m útua. O utras estra tég ia s, co m o as técn icas de con trolo da an sied ad e ou a própria m ed i ca çã o , p od em n ecessitar do co n cu rso de p rofissio n a is cred en ciad os. N o C apítulo 11 *, apresentam os algu n s resu ltad os d o n o sso segu n d o estu d o sobre a E scu ta de V o z e s (R o m m e e E sch er, 1 996), n o qual in trod uzim os um m o d elo de en trevista estruturada, co n ceb id o a partir
* Exclusivo da edição portuguesa. 42
da exp eriên cia do n o sso p rim eiro estu d o (C ap ítu lo 2 ). E ssa en trevista consagra a b u sca d e um a n o v a lin g u a g em q u e p o ssa reflectir o n o sso interesse p ela exp eriên cia d a escu ta d e v o z e s, d esign ad am en te p e lo con teú d o d aq u ilo qu e as v o z e s d izem a q u em as o u v e e p elas situ a çõ es de vid a e e m o ç õ e s qu e ev en tu a lm en te tenham estad o na origem do despertar da exp eriên cia. N o v a lin g u a g em essa qu e seja tam bém re co n h ecív el p elo ou vid or d e v o z e s co m o u m c ó d ig o d e co m u n ica çã o que, ao in v és da lin g u a g em adop tada p ela P siq uiatria clá ssica , tenha directam ente qu e ver co m a ex p eriên cia viv id a . O in teresse d este n o sso seg u n d o estu d o m a n ifesta -se ainda, e a ci m a d e tudo, nas d iferen ças q u e p erm ite esta b elecer entre os p acien tes e os não p acien tes e nas p istas q u e p arece oferecer para a com p reen sã o dos m eca n ism o s qu e lev am o s ou v id o res d e v o z e s a p erm an ecer n ão pacien tes ou , p elo contrário, a to m a r-se p acien tes. F in alm en te, o C ap ítu lo 11 p od erá even tu a lm en te perm itir qu e os leitores m ais reticen tes, n om ea d a m en te o s p rofissio n a is d e P siq uiatria e Saú de M en tal, com p reen d am m elh or o s o b je ctiv o s d este livro e a in clu são de d eterm in ad os ca p ítu lo s e se c ç õ e s qu e estão m ais rela cio nados co m a ex p eriên cia v iv id a p e lo s o u vid ores d e v o z e s d o q u e co m os estereótip o s con sagrad os p ela P siq uiatria clá ssica . O C apítu lo 12 co n tém um apan hado p rovisório d os o b jectiv o s do livro e das suas im p lica çõ es. D ada a natureza do fen ó m en o , a an á lise cien tífica terá sem p re um a utilidade lim itada para a co m p reen sã o da cap tação d e v o z e s. Parafra seand o Jung, quando falava d as rela çõ es entre C iên cia e A rte, a C iên cia opera co m co n c eito s d e regu larid ad e e d e m éd ia qu e são d em a siad o gerais para qu e p o ssa m fazer ju stiça à varied ad e su b jectiva de um a vid a in d ivid u al. T al c o m o a co n tece na A rte e na R e lig iã o , a essên c ia d e ou vir v o z e s é a su a su b jectivid ad e. E m situ a çõ es tais em que ou p o d em o s exprim ir o s n o sso s sen tim en tos ou en tão n os p o d e m os perder, o e x erc ício da e sc o lh a e da von tad e d á-n os a p o ssib ilid a d e d e viv er a n o ssa in d ivid u alid ad e, q u e n os d istin g u e uns d o s ou tros, e procurar d e se n v o lv ê -la co m o um a força criativa cap az d e integrar m o s nas n o ssas próprias v id a s.
E sp eram os qu e ao ler este livro cada ou vid or de v o z e s en con tre n ele um a m ig o , ca p a z de o ajudar na d escob erta d e um a relação harm on iosa co m as suas v o z e s e na u tilização p o sitiva das su as e x p eriên cias, co m o elem en to s de estím u lo ao seu próprio d e se n v o lv i m en to p esso a l. E q u e as suas fam ília s, o s seu s a m ig o s, o s terapeutas e o s trabalhadores so c ia is p a ssem a com preend er m elhor e ste im p or tante asp ecto da sua vid a, que sejam m ais ca p azes de aceitar a sua sin gularidade e d e lh e oferecer o ap oio que tenha esc o lh id o solicitar.
2 A NOVA ABORDAGEM - UMA EXPERIÊNCIA HOLANDESA M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r
Os primórdios A lg u n s an o s atrás, um a p acien te m in h a, d e 3 0 an os d e idade, co m eço u a o u v ir v o z e s. E stas v o z e s d avam -lh e ord en s, p roib iam -n a de fazer c o isa s e d om in avam -n a por co m p leto . A sen h ora fo i inter nada várias v e z e s, co m o d iagn óstico de esq u izofren ia. O s n eu rolép ticos que lhe foram p rescritos n ão tiveram qualquer acçã o sob re as v o z e s, em bora tenham con trib u íd o para esb ater a an sied ad e. In felizm en te, os n eu rolép ticos d im in u íam o estad o d e alerta p síq u ico , p e lo q u e ela não tom ava a m ed ica çã o con tin u ad am en te ou , quando era internada, recla m ava alta ao fim d e p ou co s d ias. A s v o z e s foram -n a iso la n d o p rogres sivam en te, na m ed id a em q u e a proib iam , por e x e m p lo , d e fazer as co isa s que e la m ais g o stav a d e fazer. N o ú ltim o an o, p a sso u a falar cad a v e z m ais em su icíd io e p areceu-m e que esta v a a en vered ar por cam in h os sem retorno. N a altura, o ú n ico asp ecto p o sitiv o das n o ssa s en trevistas era a teoria q u e ela vin h a d e se n v o lv en d o sob re a natureza das suas v o z e s. E ssa teoria b aseava-se no livro The O rigin o f C onsciousness in the B reakd ow n o f the 44
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Bicameral M ind, do p sic ó lo g o am ericano Julian Jaynes (1 9 7 6 ) (ver Ja yn es e a consciência, últim a S e cçã o do C ap ítu lo 9). A leitura d esse
livro d eu -lh e algu m a lív io , na m ed id a em q u e o autor era d e op in ião q u e, até cerca d o ano 13 00 a.C ., ou vir v o z e s era con sid erad o um p ro cesso norm al de tom ar d e c isõ e s. S egu n d o o m esm o Jayn es, essa ex p eriên cia d e o u vir v o z e s tem vin d o a desap arecer a p o u co e p ou co , sen d o sub stitu ída por aqu ilo a que hoje ch am a m o s co n sciên cia . P en sei para c o m ig o que ta lv ez ela p u d esse vir a revelar-se um a boa com u n icad ora e qu e, se calhar, outras p e sso a s qu e o u v em v o z e s p o deriam achar a sua teoria a ceitável e útil. Para m im , isso poderia ter, p elo m en o s, um e fe ito p o sitiv o sobre o estad o de isolam en to d essas p esso a s, as suas ten d ên cias suicidiárias e o seu sen tim en to de estarem à m ercê das v o z e s. E u e ela co m eçá m o s a im aginar form as de com partilhar as suas ex p eriên cia s e as suas m aneiras de ver co m outras p esso a s nas m es m as c o n d içõ es. E assim , lo g o que a oportunidade surgiu, organ izám os en trevistas a d o is, entre ela e outros o u v id o res d e v o zes. E u, que esta v a presente assistin d o às en trevistas, sen tia -m e p erp lexo diante da fa cilid ad e e a v iv a cid a d e co m que tod os id en tificav a m e recon h eciam as ex p eriên cia s uns d os outros. A p rin cíp io, ach ava d ifícil segu ir a co n v ersa deles: para o s m eu s o u v id o s, os co n teú d o s d essa s co n versas eram bizarros e m uito sui generis e, para cú m u lo , discu tiam tudo abertam ente co m o se e stiv e sse m a falar de um m un do em si e para si m esm o . O rgan izám os n o v o s en con tros em d iversas oportunidades e cada sessã o q u e se fa zia gerava um a id en tifica çã o m útua ainda m aior. C on tu d o, restava sem pre um a lacuna em term os de eficácia: é que nen h um d e sses p acien tes se m ostrava cap az d e lidar p ositiva m en te co m as suas v o z e s. P u sem o -n o s então a im aginar um p ro cesso de contactar co m o u vid ores d e v o z e s qu e não só não se sen tissem im p o ten tes perante as v o z e s co m o até fo ssem ca p a zes d e lidar bem co m ela s. P areceu -n os que a ún ica m aneira de esta b elecer um a co m u n ica çã o clara sobre a ex p eriên cia de ouvir v o z e s seria através de um program a d e telev isã o . A lém d isso , qu eríam os atingir um núm ero su ficien te de p esso a s que n os perm itisse encontrar algu ém que tiv esse d e se n v o lv id o um a boa estratégia de lidar de form a p o sitiva co m as 46
suas v o zes - d e m o d o a ajudar outras p e sso a s a ganhar um m aior con trole sobre as suas exp eriên cias. A partir daq ui, as co isa s com eça ra m a avan çar rapidam ente. F a lando num program a pop ular da T e le v isã o H olan d esa, a m inh a pa cien te e eu co n v id á m o s as p e sso a s n e ssa s co n d iç õ e s a entrar em contacto co n n o sco . F in d o o program a, resp on d eram ao n o sso ap elo 7 0 0 p esso a s. 4 5 0 ou viam v o zes; d estas, 3 0 0 d eclararam -se in cap azes cie lidar co m as suas v o z e s e 150 d isseram qu e tinh am d escob erto m aneiras de as controlar. A resp osta d este ú ltim o grupo fo i esp e cia l m ente determ inante para a d e cisã o d e organizar co n tactos entre p e s soas que o u v isse m v o z e s e d e se ja ssem trocar id eias sob re as suas exp eriên cias. D ad a a d ificu ld a d e prática d e reunir um tão grande núm ero de p esso a s, co m eçá m o s por lh es en viar um qu estionário. M ais tarde, organ izám os um C o n g resso para reunir todas as p e sso a s que responderam ao program a te le v isiv o , co m a fin alid ad e d e recolher m ais inform ação.
O Questionário E stávam os in teressad os num certo n ú m ero d e a sp ecto s, co m o a idade de in ício , o nú m ero e a natu reza d as v o z e s, o s in cid en tes e as exp eriên cias qu e an teced eram a prim eira au d ição, as estratégias e o grau de en ten d im en to c o n seg u id o c o m as v o z e s, a h istória clín ica individual, etc. N o en tan to, o q u e n ó s co n sid erá va m o s d e in teresse m ais im ediato eram as d iferen ças q u e porventura p u d essem existir entre aq u eles q u e co n seg u ia m en ten d er-se co m as suas v o z e s e aqu e les q u e não co n seg u ia m .
Comparação entre os que conseguiam e os que não conseguiam entender-se com as vozes A freq u ên cia d os d iv erso s tip os d e resp osta à escu ta d e v o z e s fica ilustrada nos quadros qu e se seg u em e qu e se referem às resp ostas ao qu estionário. O rgan izám os o s dad os em fu n çã o das d iferen ças ob ser v a d a s en tre o s q u e c o n se g u ia m e n te n d e r -se c o m as su as v o z e s 47
(G rupo A ) e o s que não c o n seg u ia m en ten d er-se co m elas (G rupo B ).
O Q uadro 1 m ostra algu m as das variá v eis que parecem diferenciar o s d o is grupos. H o u v e bastante g en te (34% ) q u e afirm ou ser cap az de en ten d er-se ra zoavelm en te bem co m as v o z e s, m as a m aioria (66% ) d isse que não era cap az. O s q u e lid avam b em co m as v o z e s sen tia m -se m ais fortes qu e ela s, sen d o o contrário verd ad eiro para o seg u n d o grupo. O s q u e n ão co n seg u ia m en ten d er-se c o m as v o z e s sen tiam -n as em geral n e g ativas e agressiv a s, en qu an to o s q u e co n seg u ia m en ten d er-se co m QUADRO 1
Diferença entre os que se entendem e os que não se entendem com as vozes Total N = 173 = 100%
Grupo A
Grupo B
Entendem -se N ão se entendem 58 (34% ) 115 (66%) O Eu 39 (72% ) 40 (38% ) Qual o mais forte? A V oz 5 (10% ) 44 (42% ) Outra resposta 9(16% ) 20(19% ) p < 0,001 Comentário: N o Grupo B o m ais frequente é as vozes serem mais fortes. Positiva Contraditória Negativa
16(30% ) 14 (26% ) 23 (43% )
1 0 ( 10%) 17(16% ) 75 (73% ) p < 0,001 Comentário: N o Grupo B as vozes são mais frequentemente negativas.
Natureza das vozes
Sim
As vozes dão ordens? Não
A s vezes
1 0 (20%) 38 (74% ) 3 (6 %)
Comentário: 0 Grupo A recebe m enos ordens das vozes. 48
26 (24% ) 41 (38% ) 41 (38% ) p < 0,001
elas as sentiam co m o p o sitiva s e am istosas. P or outro lad o , a q u eles que se en tend iam b em co m as v o z e s q u eix a v a m -se m en o s d e receb er ordens delas. E stávam os igu alm en te in teressad os em averiguar as d iferen ças entre o G rupo A e o G rup o B quanto aos tip os d e estratégia u tilizad a para lidar co m as v o z e s (Q uadro 2). Q UADRO 2
Estratégias comparadas entre os que se entendem e os que não se entendem com as vozes Grupo A Grupo B 42 (24% ) Sim 72 (42% ) Tentar distraí-las N ão 59 (34% ) Resposta om issa
10(26% ) 29 (74% )
32 (43% ) 43 (57% ) p < 0,05
Comentário: O Grupo A tenta m enos distrair as vozes.
Ignorá-las
Sim N ão A s vezes R esposta om issa
54(31% ) 57 (33%) 37 (21% ) 25 (24% )
31 (56% ) 21 (37% ) 4 (7%)
23 (25% ) 36 (39% ) 33 (36% ) p < 0,001
Comentário: O Grupo A ignora m ais as vozes. 30(17% ) 87 (50% ) R esposta om issa 56 (33% ) Sim
Escuta selectiva N ão
19(46% ) 22 (53% )
11 (14% ) 65 (85% ) p < 0,001
Comentário: O Grupo A utiliza m ais a escuta selectiva. 45 (26% ) Sim 79 (46%) N ão Fixar-lhes limites R esposta om issa 49 (28% )
19(48% ) 20 (51% )
26 (30% ) 59 (70% ) p < 0,001
Comentário: O Grupo A consegue m ais fixar lim ites às vozes. 49
A escuta selectiva fo i con sid erad a para aqu elas p e sso a s q u e, por ex em p lo , d ã o m a is o u v id o s às v o z e s p o sitiv a s do q u e às v o z e s n ega tivas. A fix a ç ã o d e lim ites fo i considerada para as p e sso a s q u e eram cap azes de d izer “não vou d a r ouvidos a um a voz dem asiado estri dente ou crítica ” , etc. O G rupo A (o d o s que c o n seg u ia m entender-se co m as v o z e s ) serv ia-se m ais d e m eca n ism o s d e escuta selectiva e de fix a ç ã o de lim ites. O G rupo A tam bém se m ostrou m ais capaz de ig norar as vozes e raram ente u tilizava técn icas d e distracção, en quanto o in v erso se v erifico u no grupo d os q u e n ão se en tend iam co m as v o z e s (G rupo B ). U m outro p on to de in teresse esta tístico era a d iferen ça q u e p u d esse existir entre as p e sso a s q u e tinham sid o p acien tes p siq u iátricos e as que nu nca o tinham sid o . A s d iferen ças m ais im portantes fica m e x postas n o Q uadro 3. QUADRO 3
Diferenças relevantes entre não pacientes e pacientes Não pacientes Pacientes Estado civil
Solteiro Casado Divorciado Viúvo
N = 58 11 (19% ) 35 (60% ) 11 (19% ) 1 (2%)
N = 79 30 (38% ) 31 (39% ) 15 (19% ) 3 (4%)
Comentário: Os não pacientes são predominantemente casados. N = 70 N = 96 Sentimento de apoio Não sentem apoio 1 (2%) 47 (49% ) Sentem apoio 69 (98% ) 49 (51% ) Comentário: Os não pacientes sentem -se m ais apoiados. N = 71 Os outros sabem Sim 2 (2%) das vozes? Não 69 (98% )
N = 101 15 (14% ) 86 (86% )
Comentário: Os não pacientes com unicam mais acerca das suas vozes. 50
C o m o fico u d em on strad o n os quadros an teriores, ex istem c o n sid e ráveis d iferen ças entre o s d ois grup os. R esu m im o -la s no Q uadro 4. QUADRO 4
Resumo das diferenças entre os dois grupos Grupo A Pessoas que se entendem com as vozes
Grupo B Pessoas que não se entendem com as vozes
• Sentem-se mais fortes que as vozes • Experimentam mais vozes positivas • Recebem menos ordens das vozes • Estabelecem mais limites às vozes • Escutam as vozes mais selectivamente • Sentem-se mais apoiados pelos outros • Comunicam mais sobre as suas vozes
• Sentem-se mais fracos que as vozes • Experimentam mais vozes negativas • Recebem mais ordens das vozes • Não se atrevem a estabelecer-lhes limites • Utilizam mais técnicas de distracção • Sentem-se menos apoiados pelos outros • Comunicam menos sobre as suas vozes
E stas co m p a ra çõ es levaram -n os a um a im portante con clu são: as p essoas que co n seg u em en ten d er-se co m as su as v o z e s g o za m da vantagem d e c isiv a d e um a resistên cia m aior, qu er perante as v o z e s quer perante o m eio - q u e v iv en cia m , aliás, m a is co m o um a fon te de apoio do que co m o um a fo n te d e am eaça. A ssim , p od erem os encarar as v o z e s, não apen as co m o um a ex p eriên cia p sic o ló g ic a ind ividu al isolada, m as co m o um fen ó m en o in teractivo q u e reflecte a relação do ind ivídu o co m o seu m eio e, claro, v ic e-v ersa . Por outras palavras, as v o zes, a lém d e um fen ó m en o p sic o ló g ic o , sã o tam b ém um fen ó m en o social. D e entre as qu e n os d evo lv era m o Q u estion ário p reen ch id o, seleccio n á m o s um certo n ú m ero d e p e sso a s q u e eram cap azes d e se en ten der co m as suas v o z e s e co n v id á m o -la s para um a en trevista ond e d iscu tiríam os as suas form as d e encarar o prob lem a. S e lec cio n á m o s então as 2 0 p esso a s qu e ach ám os m ais ca p a zes d e ex p or co m clareza as suas ex p eriên cia s. E a 31 d e O utubro d e 19 87 essa s p e sso a s foram oradoras num co n g re sso on d e com p areceram 3 6 0 o u vid ores de v o zes. 51
O C ongresso O C o n g resso tev e lugar nu m a sala d e um a A sso cia çã o C om ercial, sem qualquer lig a çã o físic a ou outra co m in stitu içõ es psiquiátricas ou m éd icas. E m bora o n o sso D ep artam ento de P siquiatria tiv esse p esso a s en v o lv id a s activam ente na organização e no ap oio log ístico do C ongresso, o s oradores eram to d o s, sem e x c e p ç ã o , p e sso a s q u e ou viam v o zes e q u e tinham resp on d id o ao já referid o program a de telev isã o . A seguir à sessã o plenária da m anhã, h o u v e um a série d e se ssõ e s de trabalho d e 1 hora, co m o ap oio de elem en to s do D epartam ento de Psiquiatria, q u e se abstiveram de con d u zir as d isc u ssõ e s e se lim itaram a dar a a ssistên cia n ecessária. O P rofessor Strauss, de N e w H a v en , qu e assistiu ao C on gresso co m o co n v id a d o d os autores, referiu -se à in iciativa nos segu in tes term os:
“A atmosfera geral do Congresso era a de um encontro de pessoas reunidas em torno de interesses e experiências comuns. Embora tenham sido discutidos aspectos médicos dessas experiências, não havia qual quer semelhança com um Congresso de M édicos ou com uma Reunião ou Encontro de Doentes. Os participantes compartilharam livremente as suas experiências, as diferentes interpretações que tinham a respeito delas, incluindo pontos de vista religiosos, e uma vasta gama de outras reacções humanas, bem como as estratégias de cada um para conseguir lidar com a experiência. Algumas pessoas sentiam-se visivelmente per turbadas pelas suas vozes e encaravam-nas como parte de uma doença mental, mas uma grande parte dos presentes dispunha de form as muito diversificadas de interpretar essas experiências, parecendo pessoas per feitam ente capazes e idóneas."
As três fases da experiência de ouvir vozes A con sid erável gam a d e ex p eriên cia s d escritas p elo s participantes e as m últiplas form as que encontravam d e lidar m elhor ou pior com ela s pod em ser vista s sob d iversas p ersp ectivas. T en d o em conta a 52
m aneira d e se en ten d erem c o m as v o z e s, p a rece-n os m ais útil d ivid ir as suas ex p eriên cia s em três fases: - F ase de surp resa - O in íc io h ab itu alm en te é súb ito e a e x p e riência é assustadora; - F a s e de organização - D á -se um p r o c esso d e se le c ç ã o e de com u n ica çã o co m as v o zes; - F ase de estabilização - P erío d o durante o qual se d e se n v o lv em p rocessos m a is co n sisten tes e co n tín u o s d e lidar co m as v o z e s. M uitos d o s p articip an tes n o C o n g resso d escreveram fa ses q u e praticam ente co in c id e m c o m as q u e n ó s referim os. U m d os orad ores, por ex em p lo , d istin g u ia as seg u in tes fa ses n o p rocesso d e ap ren d iza gem de lidar c o m as v o zes: “7. M edo, an sied ade e fu g a ; 2. P rocura do significado das vozes
e aceitação delas com o entid ades independentes de m im ; 3. A ceitação de m im m esm o, p ro cura ndo d esco b rir de qu e é que ando a fu g ir, deixar de confrontar-m e com as vozes e d eixar de fu g ir .”
N as p ágin as qu e se seg u em ilu strarem os essa s três fa ses, tal c o m o elas se en contram entre as p e sso a s q u e aprenderam a lidar co m as suas vozes.
Fase de surpresa A m aior parte d os q u e o u v em v o z e s d escrev e o in ício da ex p eriên cia co m o um fa cto bastante sú b ito, surp reen dente e gerador d e a n sie dade, e é ca p az d e recordar o m o m en to ex a cto co m m uita nitidez:
“Num domingo de manhã, às 10 horas, fo i como se tivesse havido uma enorme e inesperada explosão na minha cabeça. Eu estava só efo i-me enviada uma mensagem - mensagem que não era coisa que se dissesse a ninguém. Fiquei em pânico e não pude deixar de pensar nas coisas terríveis que estavam para acontecer. A minha primeira reacção foi: o que é que está a acontecer no mundo? E a segunda foi: provavel mente estou a imaginar coisas. Então pensei: não, não estás a imaginar coisas, é preciso levar isto a sério." 53
A idade d e aparecim ento das prim eiras experiências de v o z e s variava largam ente, assim co m o a intensidade da fa s e de surpresa - que p arece ser b em m a is grave quando aco n tece durante os anos v u ln e ráveis da a d o lescên cia . A perturbação causad a p elas v o z e s p arece, no entanto, m en os acentuada quando ela s surgem p ela prim eira v e z durante a in fân cia ou na id ad e adulta. M u itos d os q u e resp on deram ao n o sso Q u estionário afirm aram ter o u v id o as prim eiras v o z e s na infân cia. E m 6% dos ca so s a idade de in ício fo i antes d o s 6 anos; em 10% d os ca so s as v o zes surgiram entre o s 10 e os 2 0 anos; e 74% d os ca so s ocorreram d ep ois d os 2 0 anos.
“Desde que eu me lembro que ouvia uma e depois mais do que uma voz dentro de mim. A i minhas primeiras recordações a esse respeito remontam ao jardim de infância. Talvez dê vontade de rir, mas eu tinha dois egos: um ego infantil normal, em relação com a minha idade; e um ego de adulto. Conforme o caso, a voz mudava: falava à maneira infantil quando era o ego infantil e à maneira dos adultos quando era o ego de adulto. Durante a escola primária, o ego de adulto fo i desaparecendo gradualmente. Quando eu era criança, não achava estranho ter dois egos. Para uma criança não há nada que seja estranho." U m outro orador, qu e tinha co m eça d o a ouvir v o zes na a d o lescên cia - o períod o d e d e se n v o lv im en to da ind epen dência p esso a l - , d isse m os:
“Em 1977, depois de ter deixado a escola secundária, decidi mudar-me para um quarto alugado. Confesso que a vida de estudante era fascinante, mas a verdade é que eu não dormia o suficiente e não comia com regularidade. Alguns meses depois, comecei a ficar obcecado com a ideia de pintar a parede branca do meu quarto; essa grande parede era um desafio para mim. Comecei por pintar uma floresta escura, com um réptil em primeiro plano. Pintar é uma coisa que se transmite da cabeça à mão, e eu sempre fu i capaz de ouvir as cores; elas são trans mitidas através de vibrações. Eu oiço o preto, o vermelho e o castanho escuro. Como eu não tinha rádio nem nada, quando estava a pintar a parede do quarto havia um silêncio de morte. Naquele silêncio comecei, porém, a sentir crescer qualquer coisa de aterrador, uma espécie de 54
presença ameaçadora que pairava algures por ali, de maneira que tinha a nítida sensação de já não estar sozinho no quarto. Ouvi então nos meus ouvidos um ruído monótono que não vinha de mim e que não podia explicar. Era algo parecido com o ruído que se obtém quando se põem os dedos nos ouvidos, embora mais surdo e mais monótono. Era também uma emoção, embora fosse mais profundo que isso, e eu tinha a impres são de que algo andava à minha procura."
Acontecimentos anteriores À pergun ta se o in ício das v o z e s teria sid o d e v id o a alg u m a co n tecim en to anterior, 70% d os in q uiridos resp on deram q u e as su as v o z e s tinham c o m e ç a d o a m a n ifestar-se d ev id o a um a co n tecim en to e m o c io nal ou trau m ático, c o m o um acid en te (4% ), d iv ó rcio ou lu to (14% ), sessão d e p sico tera p ia (12% ), ex p eriên cia esp irita (4% ). O u tros (36% ) referiram u m a d o en ça , p rob lem as a m orosos, m u d an ça d e ca sa , gravi dez.
O impacto das vozes A s p e sso a s q u e tinh am co m eça d o a ou vir v o z e s na seq u ên cia de um traum a referiram d o is tip os d e im pacto. Para o grupo m ais afor tunado, e s s e im p a cto trad u zia-se na p ercep ção das v o z e s co m o um a co n tecim en to p ro v id en cia l, rep resen tando o in ício d e um p rocesso integrativo d e su p eração d o traum a. A s v o z e s fa zia m lem brar um sen tim en to d e id en tific a ç ã o ou assin alavam o c o m e ç o d e um p eríod o de paz d e p o is d e tem p o s d e in felicid a d e. A m ed id a q u e o tem p o corria, e ssa s p e sso a s sen tiam q u e o p rop ósito das v o z e s era, p or e x e m plo, fo rta lecer-lh es o esp írito ou fa zer-lh es aum entar a au to-estim a. A s v o zes eram v iv id a s p o sitiva m en te por essa s p e sso a s, c o m o asp ectos co m p r een sív eis d a su a realid ad e interior. Para outras p e sso a s m en os afortunadas, as v o z e s eram v iv id a s, d esd e in ício , c o m o a g ressiv a s e n egativas. U m a sen h ora referiu:
“A s vozes positivas acompanhavam-se subitamente de verdadeiras interferências, por vezes muito desagradáveis, que vinham de todo o 55
lado: do centro da minha cabeça, de trás de mim, da minha frente. Era como se uma autêntica central telefónica estivesse a operar no interior do meu peito.” Para este seg u n d o grupo de p esso a s, as v o z e s eram h ostis e em geral n ão eram a ceites co m o partes do E u o u c o m o fen ó m en o s gera d o s in tem am en te. A s p e sso a s que suportam v o z e s n ega tiv a s sen tem que ela s são geradoras d e ca o s na sua m en te e que são tão ab sorven tes que quase n ão perm item a co m u n ica çã o co m o m un do extern o. D izia um dos participantes:
‘‘Devido às vozes, eu tinha, num mesmo instante, contactos com os meus fam iliares, os meus amigos, vizinhos, colegas, o meu psiquiatra, a polícia, os serviços secretos, criminosos, membros da fam ília real e outras pessoas muito conhecidas. Entrei em contacto com plantas, animais e objectos - até descobri a presença de pessoas-robô. Uma vez, o meu irmão veio visitar-me: os seus olhos eram vítreos, a sua pele parecia polida e pensei que ele estava substituído por um robô. Eu tinha de ter imenso cuidado porque os robôs são incrivelmente fortes. Conversei com ele o mais superficialmente que pude e livrei-me dele na primeira opor tunidade. ”
Fase de organização: entender-se com as vozes M u itos inq uiridos sen tia m -se co n fu so s co m as v o z e s e d eseja vam livrar-se d elas. Para algu ns, este d e se jo durava apenas sem a nas ou m eses; para outros, durava m u itos an os. P arece agora claro que para a fa s e de organização ser co m p leta m en te bem su ced id a tem qu e haver um a form a qualquer de a ceitação. A n ega çã o não dá resu ltad o nenhum . A s p e sso a s referiram graus de êx ito variáveis na tentativa de chegar, durante esta fa se, a um m odus vivendi co m as suas v o z e s. A s estratégias pod iam passar, co m o v im o s, por ignorar as v o z e s, d is tr a í-la s , o u v i-las selectiv a m en te, entrar em d iá lo g o aberto ou esta b elecer acordos e sp e c ífic o s co m ela s. A s ten tativas de distrair as v o z e s ou ign orá-las raram ente davam re 56
sultado. D as en trevistas q u e rea lizám o s co n c lu i-se q u e, d ep o is de sen tim en tos in iciais d e p ân ico e im p o tên cia, vin h a m uitas v e z e s um períod o d e grande cólera contra as v o z e s. P orém , co m o estra tégia de lidar co m a situ ação, esta có lera n ão parecia ser d e grande utilidade. O Sr. R d isse-n os:
‘‘De cada vez que pensava estar em contacto telepático com outras pessoas, ia a casa delas tirar satisfações. Se essas pessoas negavam ter qualquer contacto telepático comigo, eu tentava contra-argumentar com as vozes que tinha ouvido. Então brigávamos uns com os outros e en trávamos num processo de intensa comunicação negativa. E isso só contribuía para tornar as vozes ainda mais fortes e agressivas.” U m a outra estratégia seg u id a por a q u eles qu e ou viam v o z e s n e g a tivas era ign orá-las. N o en tan to, só 33% d os n o sso s inq uiridos atri buíam algum ê x ito a estes e sfo r ç o s, q u e, aliás, co n d u zia m m uitas v ezes a várias restrições no e stilo d e vid a. V eja -se o seg u in te relato:
“Decidi, por fim , ignorar as vozes e pedir-lhes que me deixassem em paz. Na minha ignorância, acabei por agir da pior maneira possível. Algo que está dentro de nós mesmos e se manifesta de maneira tão poderosa não pode ser varrido para um canto. Seja como for, qualquer tentativa bem sucedida de ignorar as vozes devia resultar no seu desa parecimento, por falta de energia e de atenção - o que não era, eviden temente, o que as vozes desejavam. A té ter decidido ignorá-las, as vozes tinham sido sempre amistosas e corteses, mas a partir daí mudaram radicalmente: passaram a dizer as coisas mais absurdas e faziam pare cer ridículo tudo o que era importante para mim. Era uma guerra civil pegada, mas estava decidida a vencê-la e continuei a ignorar o que as vozes me diziam. Para isso, era preciso manter-me ocupada permanen temente o dia inteiro. Fazia palavras cruzadas, limpava e tornava a limpar a minha casa, e o meu quarto nunca tinha estado tão bem arru mado. O resultado é que a minha vida se tornou mais pacífica, mas muito mais confinada. Já quase não tinha um momento de sossego.” A m ais fru tuosa estratégia q u e n o s d escreveram co n sistia em seleccionar as v o z e s p o sitiva s e só as o u vir a ela s, só d ialogar co m elas e tentar com p reen d ê-la s. A oradora q u e acab ám os d e citar d isse ainda: 57
“Durante o período em que procurava ignorar as vozes, surgiram, para espanto meu, duas vozes que me queriam ajudar. A minha primeira reacção foi repeli-las, dado o meu estado de nervos, mas elas insistiram que eu iria precisar delas e, confesso, achei que tinham razão. Essas vozes ensinaram-me a ver, a ouvir e a sentir. Por exemplo, elas pergun tavam-me: ‘Como é que tu nos ouves?’ e: ‘Como é que nós te falamos?’ Respondi-lhes, um tanto descarada: ‘Ora, eu oiço-vos com os meus ouvidos e vós falais com as vossas bocas!’ Ah, sim? — responderam — ‘Onde estão então as nossas laringes? e já agora, diz-nos como consegues tu responder-nos?!’ Esta última obser vação divertiu-me imenso. A princípio, levava tudo à letra, o que não ajudava nada a melhorar as relações, já de si tensas, que mantinha com as vozes. No entanto, acabámos por concordar dizer cada coisa duas vezes, mas de maneira diferente - pelo menos as coisas importantes: da primeira vez, diríamos o que tínhamos a dizer da maneira habitual de sempre; da segunda vez, di-lo-íamos por símbolos, de uma forma expres siva. E cada um deveria repetir, sumariamente, a essência do que tinha sido dito pelo outro. A princípio, a coisa resultava um tanto forçada - não estava habi tuada a pensar por símbolos. No entanto, foi-me possível começar a pôr imediatamente em prática aquilo que as vozes me ensinavam e, desse modo, comecei a sentir-me melhor.” A ceitar as v o z e s rev elo u -se um factor m u ito im portante para um a estratégia b em su ced id a de lidar co m ela s. E ssa aceitação p arece estar relacionada co m um p rocesso d e crescim en to individual rum o à tom ada d e resp on sab ilid ad e das d e c isõ e s próprias. E m geral é im p roced en te tentar acusar o s outros d os n o sso s próprios prob lem as e isso é igu a l m en te verdadeiro para um fen ó m en o co m o o u vir v o z e s. C om o algu ém d isse, é p reciso aprenderm os a pensar de um m o d o p o sitiv o a resp eito d e n ós m esm o s, das n o ssa s v o z e s e d os n o sso s problem as. U m a outra estratégia freq u en tem en te esta b elecer lim ites às v o z e s ou estruturar v e z por outra a com p an h an d o-se de a cçõ es U m ex em p lo p od e ser este, de alg u ém q u e interpretava do segu in te m odo:
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m en cio n a d a c o n sistia em o con tacto co m ela s, um a rep etitivas ou ritualizadas. o u v ia v o z e s n egativas e as
“É bom que se entenda que fui atacada por uma força do demónio. Com a vontade do meu Eu, decidi não me deixar identificar com o demónio. O diabo dentro de mim, dentro de outras pessoas, nas coisas que me rodeiam, é coisa que não quero. É por isso que faço gestos. Também os podereis fazer mentalmente. Mas creio que só podereis virar as costas às vozes se fizerdes um gesto físico: ‘Isto não é para mim, eu lanço a mensagem fora'. Isso dá-me um sentimento de alívio, e então penso: Ora aí está, desta já eu me livrei! A seguir, mando o mensageiro embora e digo para mim mesma, em voz alta: ‘Vai para os teus amigos, não me aborreças!’ Este é o primeiro passo. O segundo passo é escolher, com a minha própria vontade, as coisas com as quais quero estar em contacto; associar à luz que há em mim o que houver de mais belo. Tenho uma fonte de calor, um núcleo sadio, de pura energia sã. Sei que tudo isso existe em qualquer ser humano e que cada um de nós pode escolher se quer contactar ou não.”
Ease de estabilização A s p esso a s q u e aprenderam a en ten d er-se co m as su as v o z e s en contraram um a e sp é c ie d e eq u ilíb rio. N e ste eq u ilíb rio, as p e sso a s encaram as v o z e s c o m o u m a parte d e si m esm a s, co m o a lg o q u e p o d e ter um a in flu ên cia b e n éfica . D urante esta fa se, o in d iv íd u o é ca p az de escolh er segu ir o c o n se lh o das v o z e s ou en vered ar p elas su as próprias op çõ es, sen tin d o -se a ssim em co n d içõ es d e dizer: “O iço vozes e sinto-
m e fe liz p o r isso .”
U m a senh ora d isse-n o s:
“As vozes mostram-me os erros que cometo e ensinam-me a corrigi dos. Mas deixam para mim a decisão de os corrigir ou continuar a cometê-los. Elas acham, por exemplo, que tenho uma maneira errada de ouvir música. Perco-me na música e elas dizem que não devia ser assim. Tento ouvir música da maneira que para as vozes é correcta, mas acho essa maneira complicada e não consigo compreender a sua vantagem. Este género de decisões implica sempre uma troca de impressões com as vozes, mas a última palavra é a minha e elas nunca deixaram de a aceitar. ” 59
U m a outra oradora referiu:
“M ais tarde, era como se a vida se tivesse lentificado um pouco. Passei a navegar em águas calmas e podia concentrar-me na minha vida outra v e z" U m a terceira participante p ô s o prob lem a assim :
“Q uando alguém cai da bicicleta não deita a bicicleta fo ra -p ro cu ra é melhorar a form a de a montar e conduzir, estabelecendo com ela uma adequada relação e criando um estilo próprio. O mesmo se pode passar relativamente ao eu de cada um. Por fim , cheguei a um ponto em que já me não sentia vencedora nem vencida. Era como se uma nova dimensão tivesse sido acrescentada à minha vida - dimensão essa que se pode trabalhar com determinação, de maneira a acabar por ser útil.”
Abordagens pessoais à compreensão D isse m o s na Introdução que um a das n o ssa s p a cien tes se havia sen tid o de algu m m o d o aliv iad a d ep ois d e ter adop tado um a teoria m uito própria, à qual p assou a atribuir as suas ex p eriên cia s. F icám os co m grande cu riosid ad e em saber até que pon to outros ou v id o res de v o zes pod eriam perfilhar a sua teoria - o que viria a revela r-se algo in gén u o, um a v e z que se tornou evid en te q u e o s o u v id o res de v o z e s adoptam p ersp ectivas m uito d iversificad as (p sico d in â m ica , m ística, p a ra p sico ló g ica e m o d elo s m éd ico s), que en contram in spiração em livros ou artigos de autores q u e v ã o de Jung a E h ren w ald , d e R oberts a P ierrakos, A tk in son , etc. N um a ten tativa de cla ssifica r essa variedade en orm e de teorias e x p lic a tiv a s, d iv id im o -la s em du as grand es ca teg o ria s principais: aq u elas que co n ceb em as v o z e s co m o um fen ó m en o (fran cam ente) p sic o ló g ic o , oriun do de dentro d o indivíduo; e as que co n ceb em as v o z e s c o m o um fen ó m en o de origem não p sico ló g ica . 60
Perspectivas psicológicas E stas p ersp ectivas v ã o buscar as suas ra ízes a m ú ltip las esco la s. Cari Jung, por ex em p lo , d eu -n o s um m o d elo p sico d in â m ico , segu n d o o qual o s im p u lso s p roven ien tes d o in co n scien te se p od em exprim ir na form a de v isõ e s ou d e v o z e s. P en sa m o s qu e a obra d e Jung n este cam p o se fic o u a d ever, em grande parte, ao s ou v id o res d e v o z e s, qu e m uitas v e z e s referiam ter gan h o um a co m p reen sã o m ais profunda das suas v o z e s e d aq u ilo qu e elas ten tavam d izer-lh es. U m a teoria afim (P utnam , 1 987) cen tra-se m ais esp e cifica m en te nos m eca n ism o s p sico d in â m ico s qu e in tervêm em situ a çõ es d e pro fundo sofrim en to físic o ou em o cio n a l. A d m ite-se q u e um a p esso a pode reagir a um a ex p eriên cia extrem am en te traum atizante (in cesto , abuso sex u a l, le sõ e s traum áticas, rapto, in cid en tes d e guerra, etc.) isoland o da c o n sc iê n c ia e ssa s m em órias. O traum a p o d e voltar à su p erfície na form a d e lam p ejos m n é sic o s, sen tim en to s d e p erseg u i çã o , v o z e s a g ressiv a s, im ag en s aterradoras. M u itos d os participantes no n o sso C o n g resso ach avam esta teoria interpretativa m u ito ajustada ás suas próprias ex p eriên cia s p esso a is. A s abord agens m ística s fo rn ecem outras e x p lic a ç õ e s p o ssív e is e p r e ssu p õ e m q u e as v o z e s d e se m p e n h a m u m a fu n ç ã o p o s itiv a c en riq ueced ora para a person alid ad e - origin an d o um m o d elo que encoraja a aceita çã o d ecid id a da ex p eriên cia d e ou vir v o z e s, enquanto elem en to natural e criativo do crescim en to esp iritu al (R oberts 1979). Este p on to d e v ista é tanto m ais n otável qu anto p ressu p õ e q u e, lon g e de ser um a d esgraça, ou vir v o z e s é, m u ito p e lo contrário, um p rivi lég io , que p o d e prop orcionar o s m eio s para um co n h ecim en to d ivin o situado para lá d os co n fin s do Eu. Para algu m as interpretações p a ra p sico ló g ica s, ou vir v o z e s é tam bém um d om ou sen sib ilid a d e esp ecia l q u e deriva d e um n ív el m ais subtil d e c o n sciên cia . E sse d om tem , n este co n tex to , um valor parti cular, na m ed id a em qu e p o d e ser tam b ém u tilizad o em b e n efício d os outros, através d e práticas d e v id ên cia e m ed iu n id ad e. Para aq u eles que aceitam este m o d elo , o p rob lem a n ão é livrar-se d essa sen sib ili dade m as sim con trolá-la e d irigi-la. 61
Perspectivas não psicológicas M u itos d os participantes no C o n g resso tiveram a preocup ação de d escrev er as suas ex p eriên cia s em term os m u ito p róxim os da cham ada P siquiatria B io ló g ic a . T al c o m o na P siquiatria clá ssica , n este tipo de abordagens en ten d e-se o facto d e ou v ir v o z e s co m o um sintom a de um a d oen ça , n este ca so co m um a tó n ica m u ito particular num a d isfu n ção orgân ica ou, por outras palavras, num a avaria físic a ou q u ím ica no interior d o cérebro. A co n seq u ên cia d este m o d elo é pod er restab elecer-se a n orm alidade p rescreven d o o adeq uad o tratam ento b io ló g ico . U m a das oradoras disse:
“Nunca senti as vozes como algo exterior a mim própria. Sei que elas estão dentro de mim e que me é possível fazer qualquer coisa para solucionar o problema. Tomo a medicação todos os dias e sei que terei de continuar a tomá-la o resto da minha vida. Mas isso não me preocupa. Trabalho há dez anos como secretária e sinto-me bem." M uito diferen te é o tipo d e ex p lica çã o não p sic o ló g ic a d efen d id o p ela S o cied a d e H olan d esa d e M ed icin a N atural - grupo que interpreta as v o z e s co m o sen d o p roven ien tes d e esp íritos errantes d os m ortos. A lg u n s grupos r e lig io so s, co m o as T estem u n h as de Jeová, vão ainda m ais lon g e, con sid eran d o q u e o u v ir v o z e s é um a prova de p o ssessã o p e lo s d em ó n io s. A e s s e resp eito, um d os participantes no C on gresso referiu:
“Ouvia três a cinco vozes diferentes. Eram vozes sem sexo, mas sempre ameaçadoras. Tinha que fa zer exactamente o que elas me man davam. Certo dia, até me ordenaram que matasse o meu padrasto, mas no último momento caí em mim. Pouco tempo depois, solicitei o meu internamento num hospital psiquiátrico. Tomava a medicação, mas as vozes continuavam. Como os meus passatempos preferidos são a História e a Arte Medieval, comecei a ler a Bíblia. E hoje creio que Jesus curou pessoas como eu, como na história do possesso (Mateus, VIII: 1-5; Marcos, V: 2-20).” C ada um d os tipos d e ex p lica çã o atrás d escritos co n d u z a um a determ inada estratégia terapêutica. Im p licitam en te, o s seu s d e se n v o l v im en to s são o s seguintes: 62
Perspectivas psicológicas
Psicodinâmica: psicoterapia centrada nos arquétipos e nas em oções bloqueadas; M ística: treino m ístico, v.g., m editação e práticas transcendentais; Parapsicologia: ensinar a lidar com di ferentes níveis de consciência e a con trolar a sensitividade pessoal.
Perspectivas não psicológicas
Psiquiatria Biológica: medicação; M edicina Natural (segundo a Sociedade H o la n d esa de M ed icin a N atu ral): interaeção criativa com o espírito dos mortos; Religião: cura pela Fé.
Seja qual for a p ersp ectiv a seg u id a , o d esen v o lv im en to d e qualquer estratégia d e en ten d im en to c o m as v o z e s p arece d epen der, antes d e m ais, de um a teoria ex p lica tiv a , seja ela qual for. É m u ito d ifícil passar à fa se de organização d a relação da p e sso a co m as suas v o z e s (para con seg u ir um a red u ção da an sied ad e) se n ão for atribuído às v o zes um sig n ifica d o qualquer. P orém , as p ersp ectivas qu e en corajam o indivíduo a procurar u m a form a d e d o m ín io sob re as suas v o z e s tendem , geralm en te, a p rod u zir e sc a sso s resu ltad os p o sitiv o s. U m ex em p lo é interpretar as v o z e s c o m o m a n ifesta çõ es d e in flu ên cias electrón icas. D o m esm o m o d o , em term os d e estratégia d e en ten d i m ento co m as v o z e s, a e x p lic a ç ã o forn ecid a p e la P siq uiatria B io ló g ic a pode ser tam bém inú til, na m ed id a em qu e situa o fen ó m en o fora d os d om ín ios da p essoa.
Consequências para a profissão psiquiátrica M uito d o q u e o u v im o s n o C o n g resso co n firm ou qu e a red u ção da exp eriên cia d e ou vir v o z e s ao estatu to d e m era p a to lo g ia n ão ajuda m uito o s p acien tes a lidar c o m a situ ação. E p o d e, além d o m a is, ser 63
um a an álise incorrecta. F ora d o m undo da P siquiatria há m uitas p e s so as q u e o u v em v o z e s e qu e co n seg u em v iv er co m essa exp eriên cia; algu n s ch eg am m esm o a co n sid erá-la um a form a d e en riq u ecim en to da sua vid a. V a leria p o is a pena que tod os o s que trabalham em p rofissõ es ligad as à S aú d e M ental averigu a ssem co m m ais d etalh e as linhas de referên cia e as estratégias que se m ostram m ais ú teis para os p acien tes q u e o u v em v o zes; p roced en d o d essa m aneira, pod ería m os dar um a p o io e um a a ssistên cia m ais e fic a z e s aos o u v id o res de v o z e s, nas ten tativas d e se haverem c o m as sin gu lares ex p eriên cia s que estão a viver. O s prin cipais p a sso s n este p rocesso serão: - A ceitar a ex p eriên cia d o p acien te. A s v o z e s que o u v e sã o sen tidas, m uitas v e z e s, de form a m ais intensa e real que as percepç õ es sen so ria is vu lgares. - T entar com p reen d er as d iversas lin gu agen s d e que o p a cien te se serve para d escrev er e exp licar as suas ex p eriên cia s, b em co m o as lin g u a g en s utilizadas p elas próprias v o z e s. M uitas v e z e s , é todo um m u n d o de sen tim en tos e d e sím b o lo s q u e está em jogo; por e x em p lo , se um a v o z fala de lu z e de trevas, p o d e querer dizer am or e ód io. - A dm itir a p o ssib ilid a d e de ajudar o ind ivídu o a co m u n icar co m as v o z e s, o q u e p o d e im plicar a n ecessid a d e de adm itir a d ife ren ciação entre v o z e s boas e m ás e aceitar as e m o ç õ e s n egativas do p acien te. E sta form a de aceitação p o d e dar um contributo essen cia l para a p rom oção da auto-estim a. - Encorajar o p a cien te a co n h ecer outras p e sso a s co m ex p eriên cia s sem elh an tes e a ler liv ro s e artigos sobre a escu ta d e v o z e s, por form a a ultrapassar o isolam en to e o tabu so cia l. E stes p roced im en tos p od iam con stitu ir um co n sid erá vel alarga m en to da p ersp ectiva clín ic a e das teorias geralm en te a ceites na pro fissã o psiquiátrica. E stam os m uito in teressad os em co n h ecer as e x p e riências dos c o le g a s p ro fissio n a is n este cam p o e as su as o p in iõ es sobre qualquer d o s a sp ectos ou su g estõ es v eicu la d o s p e lo s particip an tes no C on gresso. 64
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A EXPERIÊNCIA BRITÂNICA Paul Baker Em busca de novas explicações C on h eci M arius R om m e e Sandra E sch er em 1 9 8 8 , p or o ca siã o do C ongresso L a Q uestione P sich iatrica * , realizad o em T rieste e patro cinado p ela O rgan ização M undial d e Saú de. Eu tinha lá id o falar d os esfo rço s d e se n v o lv id o s p ela A sso cia çã o M IN D em M an ch ester, na b u sca d e so lu çõ es n ão m éd ica s para os problem as d e S a ú d e M en tal. M arius R o m m e e Sandra E sch er foram a T rieste apresentar o seu trabalho sobre a escu ta d e v o z e s. D urante o C o n g resso , trocám os im p ressõ es sob re as n o ssa s a ctividades e fiq u ei particu larm ente en tu siasm ad o co m a m aneira co m o ele s abordavam a q u estão das v o z e s. P or um lad o, o m eu in teresse na m atéria rad icava no facto d e um fam iliar m eu ter p assad o por um a exp eriên cia d e ou v ir v o zes; por outro lad o, na q u alid ad e d e trabalha dor na área d e in iciativas com u n itárias, esfo rça v a -m e por p rom over
* Onde estiveram também os Coordenadores da edição portuguesa. 65
a ctiv id a d es que ajud assem as p e sso a s a m anter a sua própria au ton o m ia perante sin tom as tão desagrad áveis e tão p o u co com p reen d id os. T a lv e z por não fazer parte d o m un do m é d ic o da S aú d e M en tal, eu tinha a abertura d e esp írito n ecessária para a colh er a h ip ótese de M arius R o m m e e Sandra E sch er, seg u n d o a qual as v o z e s são na verd ad e p erceb id as p elo s seu s o u vid ores e têm um sig n ifica d o que está para além do saber h ab itualm ente recon h ecid o - para o qual as v o z e s não p assam de m eras a lu cin a çõ es. P rom etem o s m anter-nos em co n tacto e parti de T rieste revigorad o p e lo p en sam en to criador co n tid o n esta abordagem . P o u co d ep o is, em N o v em b ro de 1988, fu i co n v id a d o por M arius R o m m e a participar em M aastricht no C o n g resso subordinado ao tem a “P esso a s que o u v em v o z e s ”. O C o n g resso tev e lugar no prestigiado C entro E uropeu d e C o n g resso s, em M aastricht (H oland a) e fo i orga n izad o con ju n tam en te por um grupo d e sig n a d o F un dação R esson ân cia (W eerklank) - organ ização de ajuda m útua para o u vid ores de v o z e s e p e lo D ep a rta m en to d e P siq u ia tria S o c ia l da U n iv e r sid a d e de L im b urgo. E ste C o n g resso con stitu iu um a o ca siã o ú n ica para o s p rofission ais d e S aú d e M ental ou virem de v iv a v o z as ex p eriên cia s dos ou vid ores d e v o z e s, ao m esm o tem p o que as referên cias teóricas p rofission ais co rren tes. E , se é certo q u e surgiram in terp retações rad icais do fen ó m en o , apareceram tam bém , por outro lad o, propostas concretas para ajudar as p e sso a s a lidar co m ele . N o centro desta abordagem p io n eira esta v a o p rop ósito d e libertar o s o u v id o res d e v o z e s da im p esso alid a d e d o m o d elo das d oen ças. A cred ib ilid ad e nacional deste p rop ósito era tal que a S e ssã o de A bertura d o C o n g resso fo i presidida p e lo Inspector Superior de Saú de M ental, d o M in istério da Saú de e B em -E star da H olanda. O C on g resso coroava três anos de trabalho, durante os quais foram su rgind o m uitos d e sa fio s às interpretações correntes do fen ó m en o o u vir v o z e s. N o final do C o n g resso , in terveio M arius R om m e para recordar:
“A decisão de reunir este Congresso não fo i minha, mas sim da Fundação Ressonância. Os pacientes sentiam que os profissionais de
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Saúde M ental não aceitavam a realidade das suas vozes. Para esta reunião fo i convidado um número um pouco maior de profissionais de Saúde M ental do que de ouvidores de vozes. Ao virem aqui falar das suas experiências pessoais, os ouvidores de vozes traziam consigo a esperan ça de poder explicar o que realmente acontece com eles próprios, confrontando-se com a teoria que os profissionais defendem para o mesmo facto. Ao tentarem transpor o verdadeiro fosso que os separava dos profissionais, deram-lhes a oportunidade de conhecer pessoas normais, saudáveis, que ouvem vozes sem serem psicóticas. Essa gente aprendeu a lidar com as vozes, criando as suas próprias teorias - que lhes pro porcionam alguma coisa a que podem agarrar-se." O C on g resso fo i extrem am en te útil e fascin an te. N a abordagem seguida por M arius R o m m e, Sandra E sch er e F u n d ação R esson ân cia, 6 fundam ental co lo ca r a tón ica na parceria entre o s o u vid ores d e v o z e s c os p rofissio n a is aliad os q u e o s acom p an h am . F o i, sem dú vid a, um a m udança retem peradora em relação à m aioria das abord agens que tenho en contrad o, q u e raram ente d ão im p ortân cia à op in ião d os que experim entam na própria p ele p rob lem as d e saú d e m ental (B aker, 1989). A exp eriên cia h olan d esa fo i d escrita em tod o o porm enor noutro ponto d este liv ro , m as não qu eria d eixar d e realçar este pon to de partida, tal fo i o efeito qu e p rod u ziu em m im .
Breve história do desenvolvimento da rede britânica “Peço-vos que tentem fazer o mesmo na Inglaterra. É preciso criar grupos destes em todos os países, grupos em que as pessoas possam falar umas com as outras sobre a questão de ouvir vozes [...] pegar em grupos de pessoas com as mesmas experiências, com a finalidade de modificar atitudes [...] na América e na Inglaterra, presentemente, os psiquiatras comportam-se como paizinhos. O meu objectivo não é modificar a Psi quiatria, não é modificar os paizinhos, mas antes proporcionar aos ouvidores de vozes uma Organização através da qual possam emanci par-se." 67
C om estas palavras d e M arius R om m e p resen tes no m eu esp írito, escrev i, d ep o is d o C o n g resso , um artigo para a O P E N M IN D , R evista N acion al da M IN D , artigo e s s e q u e fo i p u b licad o em A g o sto de 1989 e d esp ertou algu m in teresse entre o u vid ores d e v o z e s e p rofissio n a is d e Saú de M en tal. A lg u m tem p o antes da p u b licação d o m eu artigo, N ig e l R o se e M ark G reen w o o d (m em b ros fu nd ad ores da R ed e N a c io nal d e O u vid ores de V o z e s ) tinham aderido às id eias de M aastricht; e durante e s s e ano, n o R ein o U n id o, realizaram -sc outros con tactos co m p esso a s interessadas na q u estão. A recep tivid ad e encontrada lev ou a qu e M arius R om m e, Sandra E sch er e A n se Streefland (representante da F un dação R esson â n cia ) se d e slo ca sse m ao R ein o U n id o no V erão d e 1989, para apresentar o s resu ltad os do seu trabalho. H ou ve e n co n tros bastante con corrid os em M anch ester, L iverp ool e S h effield , co m a p articip ação de “so b rev iv en te s” * e suas fam ília s, p rofissio n a is de Saú de M en tal e p ú b lico e m geral. A s rea cçõ es in d ivid u ais foram m u ito variad as, sen d o notória um a certa resistên cia da parte d os pro fissio n a is d e S aú de M en tal. P orém , a reacção glob al foi francam ente p ositiva. D a parte d o s o u v id o res de v o z e s a reacção foi, e v id en te m en te, en tu siástica. U m d o s E n con tros, que tev e cerca de 100 parti cip an tes, a m aior parte d o s q u ais falava p ela prim eira v e z cm pú blico acerca das su as ex p eriên cia s e interpretações sobre o sig n ifica d o das v o z e s, viria a revelar-se um a autêntica arena de catarse pura o s m uitos ou vid ores d e v o z e s presen tes. E m co n seq u ên cia d esta v isita , com eçaram a d e se n v o lv er -se no R ein o U n id o n ovas in iciativ a s de p rom oção c debate d o problem a entre o u vid ores de v o z e s, p ro fissio n a is de Saúde M ental e p ú b lico em geral. U m grupo de ín d o le nacion al reuniu em L ondres co m o intuito d e p rom over as diversas p ersp ectiv a s alternativas o ferecid as por esta n ova abord agem . Surgiram gru p os em M anchester e em L ondres, e em M arço d e 1990 o rg a n izo u -se um E ncontro em N ottingham . O s grupos d e L on dres e d e M an ch ester planearam realizar co n g resso s id ên ticos ao qu e se rea lizou na H oland a em 1987.
* Survivors, no original: aqueles que sobreviveram ao "naufrágio" psicológico e emocional; ex-“doentes.”
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C om o fim d e preparar o terreno em M an ch ester, A lan L ead er, da L am beth L ink, v e io falar da sua própria ex p eriên cia d e o u v id o r de v o z e s , num c o n c o r rid íssim o E n con tro q u e te v e lugar n a C âm ara M un icip al em O utubro d e 1990. A lan L eader, q u e h a v ia p assad o 20 a n o s da su a v id a em v á ria s in s titu iç õ e s p siq u iá tr ic a s c o m o esq u izo frén ico d ia g n o stica d o , fa lou da form a co m o aprendera a v iv er co m as suas v o z e s e até co m o aprendera a servir-se d ela s para o ajudarem na vid a d o d ia-a-d ia. H avia m u itos ou v id o res d e v o z e s no E ncontro, e a o p in iã o gen eralizad a era a d e q u e seria im portante que e le s se ju n tassem e fa la ssem das suas ex p eriên cia s. O próprio A lan L eader deu o e x e m p lo , falan d o da sua ex p eriên cia p esso a l em p ú b lico, com p letam en te à von tad e.
O Primeiro Congresso Britânico O rgan izad o p e lo G rupo d e O u vid ores d e V o z e s d e M an ch ester, tev e lugar nesta cid a d e, em N ov em b ro d e 1990, o I C o n g resso B ri tân ico de O u vid ores d e V o z e s, co m o s seg u in tes o b jectivos; 1. Fundar um a red e d e p e sso a s qu e tiv esse m tid o essa ex p eriên cia e qu e e stiv e sse m in teressad as na ajuda m útua, d e m od o a lev á -la s a partilhar as su as ex p eriên cia s e a debater estratégias d e en ten d im en to co m elas. 2. T entar am pliar as abord agens d os p ro fissio n a is d e S aú d e M ental sobre o fen ó m en o . N este C o n g resso , o rgan izad o esp e cifica m en te para q u e as p esso a s p u d essem partilhar as su as ex p eriên cia s, participaram 14 o u v id o res de v o z e s. N e le p articip ou tam bém M yrtle H eery (ver C ap ítu lo 7 ), um a in vestigad ora ca lifo m ia n a q u e v e io assistir ao decorrer d o s trabalhos. A in v estig ação d e se n v o lv id a por M yrtle seg u e, em m u itos a sp ectos, paralela à de M arius R o m m e, cen tran d o-se n o “desfazer do estereó
tipo corrente sobre as vozes interiores com o p rerro g a tiva d e santos
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e de p sicó tico s e, desse m odo, estim ular a in vestigação sobre o seu p o d er liberta do r das poten cialid ades hum anas que nos são p ró p ria s”
(H eery, 1 9 89 ). O C o n g resso fo i gravad o em áudio e , por isso , fo i p o ssív e l repro du zir n u m artigo toda a diversid ad e de p ersp ectivas d e com p reen são p resen tes (G rierson , 1991). M u itos d o s in terven ien tes denunciaram a o p in iã o corrente segu n d o a qual ou v ir v o z e s é , de certo m od o, um in cid en te irreal. A interpre tação qu e n o s dá a P siquiatria clá ssica tende a m ascarar a riqueza das ex p eriên cia s in d ivid u ais em m atéria d e v o z e s e das form as m uito d iversas d e as en ten d er e d e co m elas se relacionar. V á rios oradores d efen d eram o p on to de v ista de que as ex p eriên cia s d e v o z e s são ex p eriên cia s reais, qu e são parte integrante da sua v id a e q u e têm de ser lev ad a s a sério. U m d os oradores da sessã o inaugural p ô s a questão do segu in te m odo: “F o i um a experiência bem rea l que tive.” N o C o n g resso d eu -se n o tícia da grande variedade d essa s ex p eriên cias: para u n s, é um grupo de v o z e s que se e n v o lv e em d iscu ssã o dentro da cab eça; para outros, trata-se de v o z e s q u e p assam o tem p o a d izer d isp arates ou em in fa tig á veis rep etiçõ es q u e p õ em o s nervos em franja; algu n s outros, experim entam v o z e s m aravilh osas, viciadoras até, qu e trazem bem -estar; outros ainda, referiram v o z e s que lhes d izem c o isa s fan tásticas, in acred itáveis, fa zen d o p rom essa s ex a g era das. H o u v e q u em fa la sse d e v o z e s que p erseg u em as p e sso a s e lhes ch am am m iserá veis e m ás. U m d os oradores referiu q u e as suas v o z e s tom am parte nas suas fantasias sex u a is, o que o rigin ou um a d iscu ssã o d e fazer in veja, em que outros intervenientes revelaram um idên tico pap el das su as v o zes! P or fim , algu m as p e sso a s d escreveram as suas v o z e s co m o um a m a n ifestação de com u n ica çã o telep ática. M u itos d o s oradores p resen tes faziam a d istin çã o entre as v o zes qu e o u v ia m dentro da sua ca b eça e as v o z e s que vin h am claram ente do exterior. Para algu ns, as v o z e s eram um a ex p eriên cia p o u co e x c i tante, co m q u e não perdiam m uito tem p o - ou v ia m -n a s e pronto. Para outros, as v o z e s eram fam iliares e rec o n h ec ív eis, en qu an to havia quem d isse sse q u e as v o z e s eram d e estranhos. M u itos d o s participantes disseram q u e ficariam terrivelm en te só s sem as suas v o z e s, enquanto outros ach avam que as v o z e s tinham n eles um a in flu ên cia b en éfica. 70
D a ex p eriên cia d e ou v ir v o z e s d eriva um a série d e p rob lem as d esa g ra d áv eis, o m en o s im portante d os q u ais n ão será o estig m a qu e lh e está a sso cia d o . C on tu d o, e sse s p rob lem as p od em ser ultrap assados se as p e sso a s q u e o u v em v o z e s co n seg u irem d e se n v o lv er a co n fia n ça e as ap tid ões n ecessária s para d escrever e ex p o r as suas ex p eriên cia s. O s participan tes n o C on g resso ficaram sa tisfeito s por terem p od id o partilhar co m o s outros a sua h istória e as su as id eias - q u e até aí guard avam na intim idade. E ste C o n g resso fe z n ascer a esp eran ça n o ap arecim en to d e um m o v im en to m ais am p lo qu e p o ssa ajudar a m od ificar a com p reen são d o fen ó m en o por parte da n o ssa S o cied a d e.
O Congresso de Londres de 1991 E m M arço d e 1991, m ais d e 2 0 0 p e sso a s participaram em L on dres num C o n g resso sob re E scu ta d e V o z e s, organ izad o p ela R ed e B ritâ n ica de O u vid ores d e V o z e s e p ela L am b eth L in k, qu e con stitu iu o m aior a co n tecim en to d o gén ero no R ein o U n id o , até agora. M u itos d o s p articip an tes eram o u vid ores d e v o z e s e o s restan tes eram sob re tudo p ro fissio n a is d e S aú d e M ental e, aqui e além , fa m iliares ou m em b ros d e grup os d e volu ntariado. O s trabalhos da m anhã incluíram co m u n ica çõ es d e A lan L ead er e de A n n e W alton sobre as suas próprias ex p eriên cia s p esso a is; de M arius R o m m e e Sandra E sch er sobre a in v estig a çã o qu e v êm fazen d o na H olanda; d e M ik e G rierson , s o c ió lo g o d e M an ch ester, sobre a form a c o m o a c iên c ia p od e m altratar as p e sso a s qu e o u v em v o z e s, m esm o quand o a in v estig a çã o é co n d u zid a d e m od o co m p a d ecid o e sen sív el; d e um a psiquiatra qu e falou da su a in v estig a çã o sobre o u so d e tam p ões n o s o u v id o s, d e stereo -w a lkm ans e d e técn ica s d e con ta g em para si m esm o co m o estratégias p o ssív e is d e lidar co m as v o zes; e , por fim , fu i eu próprio falar da p rob lem ática geral da escu ta de v o z e s. A parte da tarde fo i destin ad a a s e ssõ e s d e trabalho, em qu e as p e sso a s puderam d iscu tir as su as ex p eriên cia s e a form a co m o apren71
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ti lltlin « "iii as suas v o zes. O s p ro fissio n a is e o s fam iliares de ........ . d» Na mio M cnlal tiveram oportu nidad e de fazer perguntas e do liiiiiai so As d iscu ssõ es. N o fim , reu n im o-nos tod os na sala principal e cada um pôd e dizer o q u e p en sava d o C o n g resso e co m o d everia ser organizado o pró x im o . N a sua m aioria, as p e sso a s m ostra va m -se m uito en tusiasm ad as co m o C on g resso e sen tia m -se sa tisfeita s por terem tido oportunidade d e ou vir falar, d e v iv a v o z , das ex p eriên cia s p e sso a is d os ouvidores d e v o z e s. F icou claro qu e as e x p lic a ç õ e s aí surgidas trouxeram um a n o v a esp eran ça e um a n ova determ in ação a m uita gen te, no sentido d e encontrar o s seu s próprios p r o c esso s d e en ten d im en to co m as v o zes. O C on g resso encerrou co m um a m en sa g em m uito positiva: o tra b alh o iria p rossegu ir e tinha sid o fundada um a R ed e de O u vid ores de V o z e s. F oi d ecid id o ainda organizar n o v o C o n g resso n e sse m esm o an o, ten do em con ta a en orm e quantidade d e p e sso a s que tinham d esejad o participar n este sem o co n seg u ir.
O Terceiro Congresso Nacional S e is m eses d ep o is, em S etem b ro d e 1991, tev e lugar no D eparta m en to d e S o c io lo g ia da U n iv ersid a d e de M an ch ester o C on gresso seg u in te, no qual participaram 3 0 p e sso a s oriundas d e toda a Grã-B retanha. U m a v e z m ais, fic o u dem on strada a n ecessid a d e im periosa d e um a m aior co m p reen são e a ceita çã o da exp eriên cia de ou vir v o zes. T o d o s os p resen tes e todos o s oradores eram o u vid ores d e v o z e s, cada um co m as su as próprias abord agens e ex p lic a ç õ e s, uns tom ando m ed ica çã o e outros não. A n n e W alton (m em b ro do G rupo d e A juda M útua de M anchester d esd e N ovem b ro de 1990) ex p lico u c o m o se viu en v o lv id a n o M o v i m en to d e O u vid ores de V o z e s e d eu con ta d os p rogressos da R ed e B ritânica. M ick ey D e V alda (tam bém m em bro do grupo de M anchester) falou sob re o s efeito s do abuso de m ed ica çã o e da n egação d os d irei tos fu nd am en tais q u e se pratica n o s h osp ita is e noutras in stitu ições. Sandra C h am ock , aluna de E n ferm agem P siquiátrica, veio de D oncaster 72
d izer q u e as v o z e s eram u m a ex p eriên cia relativam en te vu lgar n a sua fa m ília e contar c o m o tinha aprend id o a v iv er co m elas. R ealiza ra m -se d e seg u id a p eq u en as se ssõ e s d e trabalho, para qu e as p e sso a s p u d essem d iscu tir as suas v o z e s e as teorias qu e sob re ela s tinham a propor. N a S e ssã o P lenária, m u ito s d o s participantes afirm aram ter g o sta d o m uito da form a co m o tinh a d ecorrid o o C o n g resso , e fico u assen te que M ike G rierson seria o relator das actas fin ais.
O Congresso de Manchester sobre Escuta de Vozes, 1992 E ste C o n g resso tev e lugar num H osp ital P siq u iátrico acab ad o d e inaugurar em M an ch ester N o rte e con stitu iu a p rim eira ten tativa d e prom over o d iá lo g o en tre ou v id o res d e v o z e s e p rofissio n a is d e S aú d e M ental, psiqu iatras in clu íd os. Perante um aud itório d e m a is d e 100 p e sso a s, usaram da palavra o Prof. M arius R om m e, o p s ic ó lo g o R ichard B en tall, da U n iv ersid a d e d e L iverp ool, e o Prof. A le c Jenner, da U n iversid ad e d e S h effield . O m ote d o C on g resso fo i d ad o por Sandra E sch er, qu e sob re o qu e p od e realm ente ajudar o s o u v id o res d e v o z e s disse:
“Todas as pessoas que ouvem vozes e que aprenderam a lidar com elas são claras em realçar a importância de ter um amigo, um compa nheiro, um familiar que as oiça, que as aceite e as faça sentir em segu rança. Uma relação assim pode proporcionar segurança durante os períodos em que as vozes são predominantes. Durante esses períodos, é crucial ir em busca do apoio adequado. Dar apoio significa que a pessoa que o recebe não se torna dependente, significa dar-lhe um potencial de crescimento com vista à auto-confiança e à gestão de si própria. As vozes são um grande desafio que pode ser visto como uma ameaça mas que também pode ser visto como uma inspiração. As vozes podem fazer com que uma pessoa se sinta desamparada, mas também podem agir como Mestres que incentivam a viver uma vida mais elaborada. O crescimento pessoal só pode dar-se num meio estimulante, com oportunidades so ciais. O objectivo final é desenvolver uma identidade enquanto pessoa que ouve vozes.” 73
Da importância de uma diversidade de explicações - O Congresso de Manchester sobre Escuta de Vozes, 1993 E ste fo i o C o n g resso m ais a m b icio so até agora realizad o. E stiv e ram p resen tes para cim a de 150 p esso a s, oriundas de tod o o país, para participar nu m a jornada em que se iria explorar um a série de diferen tes abord agens q u e procuram ex p licar as v o z e s e ajudar as p e sso a s a ch egar a um en ten d im en to co m ela s. Entre os oradores co n tavam -se esp ecia lista s em P siquiatria e P sico fa rm a co lo gia , m as tam bém apare ceram co m u n ica çõ es sobre E sp iritism o, P arap sicologia, P sic o lo g ia e A ju da M útua. N as se ssõ e s de trabalho, o s participantes exploraram as ap lica çõ es práticas das resp ectiv as abord agens, particularm ente o u so de m ed i ca çã o , o esta b e lec im en to d e redes de ajuda m útua, a u tilização de cartas astro ló g ica s, etc. O p rop ósito d este C o n g resso fo i desafiar a m aneira c o m o a P siq uia tria esp artilh ou a com p reen sã o das v o z e s, e pôr à con sid era çã o geral outras p ersp ectivas. C o m o d isse M arius R om m e,
“E um tanto ridículo pretender reduzir as nossas possibilidades de percepção aos cinco sentidos, pretender reduzir as nossas capacida des de comunicação às actividades discursivas motoras. Quem quer que alguma vez tenha amado alguém sabe isso melhor que nós. A im portância da percepção espiritual é a da inspiração, a de aprender a crescer - a possibilidade de abertura para além das nossas dificulda des quotidianas. A importância da Parapsicologia reside em ter-nos ensinado que a intuição e as percepções psíquicas necessitam de ve rificação; que é necessário controlar as impressões e que é preciso treino. E claro que não nos é possível controlar todas as influências que se exercem sobre nós, até porque vivemos numa sociedade muito pouco agradável em que proliferam, nas mais diversas áreas, a dis criminação, a agressividade e a injustiça. Estou em crer que é da máxima importância dar voz, de forma sistemática, às pessoas que ouvem vozes e informarmo-nos sobre todos os aspectos da sua expe riência, num diálogo permanente com elas.” 74
A criação da Rede Britânica de Ouvidores de Vozes C riám os n a G rã-B retanha um a R ed e d e O u vid ores d e V o z e s (que in clu i p e sso a s sim p lesm en te interessad as n o assu n to) e em Setem b ro d e 1993 a lista d e m em b ros era já superior a 3 5 0 p esso a s. O B o letim trim estral da R ed e N a cion a l d e O u vid ores d e V o z e s (N ational H earing V oices N etW ork Newsletter), q u e saiu p ela prim eira v e z a p ú b lico no O u tono d e 1 9 9 0 , é d istribu ído gratuitam ente a to d o s o s filia d o s. E ste B o letim co n tém n o tícia s das activid ad es da R ed e, in fo rm a çõ es ú teis e relatos p e sso a is d e ou v id o res d e v o z e s d o R ein o U n id o. E d itám os tam bém um v o lu m e d e in form ação e p u b licá m o s quatros fo lh eto s, in clu in d o as A cta s d o I C o n g resso d e M an ch ester, um a d escrição sum ária da in v estig a ç ã o h o lan d esa e d o d e se n v o lv im en to da R ed e d eles. A juntar à lista d e con tacto da n o ssa R ed e, ex istem agora vários G rupos d e A ju d a M útua: o prim eiro surgiu em M an ch ester, enquanto o u tro s fo ra m s e n d o fu n d a d o s e m L o n d r e s, D o n c a ste r , O x fo rd , L iv erp o ol, H u d d ersfield , F ife, E d im b u rgo, O ld ham e G w yn ed d . A R ed e B ritân ica fo i criada para ajudar o s o u v id o res d e v o z e s a encontrar as su as próprias m aneiras d e se en ten d er c o m ela s, d em o n s trando que: - para a e x p e riê n cia d e o u vir v o z e s há várias e x p lic a ç õ e s qu e dão v o z a ctiv a a o s ou v id o res d e v o z e s e o s hab ilitam a v iv er d e um a m aneira p o sitiv a co m elas; - há q u em en co n tre ex p lica çã o para as v o z e s fora d o m o d elo p si q u iátrico, e d escub ra m aneiras d e lidar co m e la s sem tom ar m ed ica m en to s; - as p e sso a s q u e o u v em v o z e s p od em ser ajudadas a d esen v o lv er m an eiras d e lidar co m ela s, através da a d esão a gru p os d e ajuda m útua - em q u e p ossam partilhar as suas ex p eriên cia s, as suas e x p lic a ç õ e s e o s seu s m éto d os d e lidar co m a situ ação, e p ossam b e n eficia r d e ap oio m útuo. T anto as p e sso a s qu e o u v em v o z e s co m o o s seu s fam iliares e a m ig o s só têm a ganhar co m a d e se stig m a tiza çã o da exp eriên cia, na 75
m ed id a e m q u e ela co n d u z a um m aior grau d e tolerância e de c o m p reen sã o . E ssa d e se stig m a tiz a ç ã o p o d e c o n se g u ir -se p ro m o v en d o e x p lic a ç õ e s m ais p o sitiv a s, q u e d êem às p e sso a s um a b ase d e referên cia q u e lh es perm ita d e se n v o lv er as su as próprias m aneiras d e lidar co m as v o z e s e d êem à so cied a d e em geral a p o ssib ilid a d e de aum en tar a sua co n scien cia liza çã o para o prob lem a. O s n o sso s o b je ctiv o s são: - esta b elecer um a grande rede nacion al de p esso a s que o u v em v o z e s e seu s alia d o s, d e m od o a co n seg u ir -se um a m elh or co m p reen são das exp eriên cias; - fundar grupos d e ajuda m útua d e o u v id o res de v o z e s, para par tilhar ex p eriên cia s e discu tir estratégias d e en ten d im en to co m as v o zes; - escla recer a so cied a d e sobre o sig n ifica d o das v o z e s, d e form a a reduzir a ign orância e a ansiedade; - d e se n v o lv er um a gam a de p ro cesso s não m éd ico s de ajudar as p e sso a s a lidar co m as suas v o zes; - facilitar o en con tro de o u vid ores d e v o z e s q u e nunca tenham tido con tacto co m serv iço s de P siquiatria co m ou vid ores de v o zes qu e se sin tam em d ificu ld ad e.
O Grupo de Ajuda Mútua de Manchester O seu prim eiro E ncontro tev e lugar em F evereiro de 1991. R eú n e m en sa lm en te e fu n cion a de um m o d o m uito inform al, in s p iran d o-se em grup os h o la n d eses d o m esm o tipo. N essa s reu niões particip am m ais de 30 p esso a s. O G rupo d iscu te as exp eriên cias e as teorias in d ivid u ais e p rop orciona o s m eio s para as p esso a s se ajuda rem um as às outras a d ese n v o lv er m étod os d e lidar co m as v o z e s. N as reu n iões participa um a en ferm eira de P siquiatria com unitária, para dar a p o io e fu n cion ar co m o e lo de lig a çã o en tre o grupo de ajuda m útua e a eq u ip a d e p lan eam en to. 76
O s m em b ros d o G rupo têm colab orad o n o B o letim e v êm partici pando num projecto v íd eo , co n c eb id o para a p rom oção d o s asp ectos em jo g o na escu ta d e v o z e s, e foram à H olan d a en contrar-se co m representantes da F un dação R esson â n cia .
Desenvolvimento da Rede E n q u an to g ru p o , e sta m o s a in d a na fa s e d e arranq ue, m as a recep tivid ad e tem sid o m u ito en corajadora. T rabalhando d e form a inteiram ente volu ntária, estip u lá m o s a n ós próprios o s seg u in tes o b jec tivos: 1 - O rgan izar um C o n g resso N a cio n a l em 19 92 co m esp ecia listas co n v id a d o s q u e se p rop onh am falar das suas p ersp ectivas sobre o fen ó m en o d e o u vir v o z e s, sejam ela s d e natureza relig io sa , extra terrestre, esp irita, m ística, p siq u iátrica, ou qualquer outra; 2 - Produzir um d ocu m en tário v íd e o sob re a escu ta d e v o z e s, d es tinado ao a p o io a n o v o s gru p os, colab oran d o, na sua prod ução e distrib u ição, co m o C o n selh o d e C o m u n ica çã o S o cia l para a Saúde M ental; 3 - A ngariar fu n d os para a con tratação d e um fu n cion ário para a sed e, em M an ch ester, co m a m issã o d e ajudar a R ed e a lidar co m o núm ero crescen te d e so licita çõ es e p ed id o s d e inform ação. E ste pon to é particularm ente im portante, se con sid erarm os a on d a de in teresse que a p u b lica çã o d este livro p o d e provocar; 4 -E n v ia r n o v o s m em b ros da R ed e à H olan d a, co m o fim d e se en contrarem co m m em b ros da F u n d ação R esson â n cia , em esp ecial para terem a oportu nidad e d e aprender m ais sob re as técn ica s u tiliza das p elo s gru p os h o la n d eses d e ajuda m útua e para, sem p re qu e se rev ele adeq u ad o, d ivu lgar essa s práticas no R ein o U n id o. F in alm en te, esp eram os estruturar a R ed e co m o um serv iço glob al de a co n selh am en to e d e in form ação para o s o u vid ores d e v o z e s e para o s grupos d e ajuda m útua. E stam os m u ito an im ad os co m as p ersp ec tivas que se abrem co m esta m aneira d e trabalhar e esp eram os prom ovê-la e d e se n v o lv ê -la até ao lim ite das n o ssa s cap acid ad es. 77
PSI*, PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA Gerda de Bruijn “Há vibrações ou forças no Universo que nos tocam e nos dão um conhecimento da realidade que não pode ser dado pelos nossos sentidos. O reconhecimento deste facto provocaria uma revolução no seio da Psicologia.” (Charles Richet, 1923)
As vozes de Walter D urante o tem p o d e form ação em P sic o lo g ia Infan til, seg u i durante d o is an os um jo v e m d escrito co m o esq u izó id e e qu e sofria d e a lu ci n açõ es au d itiv a s. A terapia fo i d irigid a p rin cip alm en te à m elh oria das ap tid ões so c ia is d e s s e a d o lescen te in telig en te e reservad o, sem que, nos p rim eiros 18 m e se s, tiv e sse algu m a v e z n otad o q u e e le o u v ia co isa s q u e eu n ã o p u d e sse o u vir tam bém . A té qu e um d ia, nu m d os ú ltim os m e se s da n o ssa relação terap êutica, acon teceu um ep isó d io extraordinário.
* Em investigação parapsicológica, psi é o substantivo colectivo usado para designar fenómenos psíquicos como a telepatia, a percepçâo extra-sensorial, a precognição e a psicocinese (EI).
N a q u ele d ia, a m inh a en trevista co m W alter n ão esta v a a correr m u ito b em , sobretudo porq ue eu só lh e esta v a a dar parte da m inha aten ção; a outra parte esta v a centrada num a zan ga qu e eu tinha aca bado d e ter. N o decorrer da n o ssa co n versa, W alter fo i fican d o cada v e z m ais ab sorto, ch eg an d o a pon tos de parecer estar a escutar o interior d e si m esm o . D e repente, v isiv elm en te perturbado, d isse-m e qu e por detrás d o m un do real, co n creto, da n o ssa co n v ersa , havia um m u n d o am eaçad or, d e o n d e provinham as v o z e s q u e esta v a a ouvir. E u n ão o u v ia essa s v o z e s, m as, p ela form a co m o W alter trem ia, era ev id en te q u e esta v a m esm o assu stado co m o q u e ou via. P assado um b o ca d o , acab ou por m e contar o que as v o z e s lh e tinham revelado: m a ld içõ es h orríveis. E sta h istória não teria nada de esp ecia l, não fora o facto de as palavras q u e W alter ou v iu do m undo am eaçador co in cid irem textu al m en te co m as m a ld içõ es qu e eu estava a pronunciar m en talm en te, no d ecu rso da n o ssa en trevista, co m a tal outra parte da m inh a atenção. Era c o m o se as v o z e s d e W alter tiv essem ad ivin h ad o o que eu estava a pensar em silên cio . F iq u ei sem fala. N ã o d isse ao m eu orientador de form ação q u e W alter tinha tido a lu cin a çõ es n e sse dia. N em sequ er tentei ex p lica r o q u e realm ente se tinha passado: não tinha palavras para d escrev er a ex p eriên cia — em b oa verd ad e, o vocab u lário da m inha p rofissã o tam bém não tem - e, além d isso , tinha receio de falar no assunto. Isto p a sso u -se já lá v ã o vin te anos. M uito em b ora este ep isó d io nu nca tiv e sse sid o m en cion ad o durante a m inha form ação, sei hoje qu e estes in cid en tes rem in iscen tes p si foram já d escritos por outros p sicoterap eu tas. R ela to s sem elh a n tes revelam várias coisas: qu e o s seu s autores m uitas v e z e s p en sam q u e e s s e s ep isó d io s corresp on d em a inform ação qu e o terapeuta está a suprim ir da sua c o n sciên cia ou, en tão, que essa in form ação é tão sig n ifica tiv a d o ponto de vista p esso a l que o terapeuta se sen te atin gid o na m o uch e ; que tais e p isó d io s são m ais frequentes quando e x iste um a transferência p o sitiva m uito forte e o terapeuta não está totalm en te d isp o n ív el para o p acien te, ou quando o contacto terap êutico está a ch egar ao fim ; e que e s s e tip o d e in cid en tes é particu larm ente frequente entre pacien tes cu jo d ia g n ó stico sugere que 80
p o d em estar à beira d e um e p isó d io p sic ó tic o (E h ren w ald , 1977; U llm a n , 1977; W olm an , 1986; S ilverm an , 1 988). E m bora n ão p o ssa ter a certeza, creio agora qu e pod eria ter sid o m u ito útil a W alter eu ter-lh e co n fessa d o na altura, pura e sim p les m en te, que as palavras qu e e le ou viu corresp on d iam , p on to por p on to, àq u ilo q u e eu esta v a a pensar. E m m atéria d e lin g u a g em para d escrev er e ste s in cid en tes, a m inha p rofissã o d eix a ainda m u ito a desejar e n ã o tem h avid o qualquer in v estig a çã o sistem ática n este cam p o. A P sic o lo g ia e a P siquiatria, de um lad o, e a P ara p sico lo g ia, d o outro, têm d em on strad o sem p re p o u co en tu sia sm o p e lo estu d o d os ach ad os u m as das outras. Para tod os aq u eles q u e estão em d ificu ld a d es d e saú d e m en tal, seria m u ito b e n éfica um a alteração d esta situ ação. T em sid o sugerid a a e x istê n c ia d e um a correla çã o en tre um e stilo d e v id a a ctiv o e satisfatório e o fa cto d e o o u vid or d e v o z e s d isp or d e lin h as d e refe rên cia p a ra p sico ló g ica e/o u esp iritu ais para interpretar as suas e x p e riên cias (H eery, 1 989). N a esp eran ça d e alargar a d iscu ssã o destas p ersp ectiv a s, procura-se apresentar n este cap ítu lo um resu m o h istó rico da relação entre o s fen ó m en o s p si, a P sic o lo g ia e a P siquiatria.
As antigas crenças A n tes d o n ascim en to da P sic o lo g ia e da P siquiatria, as ex p eriên cia s p síq u ica s e m ística s eram um e lem en to m u ito fam iliar na c o m p reen são q u e m uitas so cied a d es tinham da h u m anidad e e da saúde m en tal. N as so cied a d es p oliteístas e p an teístas pré-cristãs era vu lgar m en te a ceite qu e a vid a interior d e um a p e sso a p od ia dar a cesso àq u ilo q u e se con sid era o d iv in o , e a m ilagres d o g én ero das transferências in ex p licá v eis d e co n h ecim en to ou d e en erg ia curadora. T êm sid o en con trad os v e stíg io s d essa s cren ças n as an tigas culturas greg a e e g íp cia , assim co m o no g n o sticism o d o s p rim eiros tem p os cristãos. S ócrates adm itia qu e a sua v id a era d irigid a p e lo seu anjo, um a v o z d e sabed oria q u e e le n ão ex p erien cia v a c o m o um asp ecto d o seu próprio p en sam en to. E le sab ia tam b ém q u e a p ercep ção clarivid en te, clariau d ien te, cla rissen sitiv a , etc., p od eria co ex istir co m a loucura: ou 81
" 11 | •i m uras palavras, q u e um a p e sso a em brenhada n essa s percepl u a , co m p reen siv elm en te, m al-ajustada às ex ig ê n c ia s esp a ço im nporais da rotina qu otidiana — co m o era o ca so , por ex em p lo , das sacerd otisas d e D e lfo s e D o d o n a . Para S ócrates, este tipo de loucura era de origem divina. O s rituais seg u id o s n os T em p lo s d os M istérios da G récia e do E gip to su gerem que as p e sso a s d e ssa ép o c a recon h eciam , naquilo a qu e h oje ch am am os su b co n scien te hu m an o, a presen ça de um certo co n h ecim en to e pod er cu rativos, em b ora interpretassem essa s p o ten cialid a d es num a p ersp ectiva m a is esp iritu al, religiosa. D ep o is d e preparada, por m eio d e um ritual de p u rificação, a p e sso a d o en te era visitad a em so n h o s p e lo espírito de um m éd ico -d eu s (h ab itualm ente, A sclep iu s para o s G regos e Im hotep para o s E gíp cios); este curador d iv in o curava o p a cien te toca n d o -o durante o sonh o ou ex p lica v a q u e tipo de p roced im en to era p reciso praticar para que se d e sse a cura. S egu n d o algu m as fo n tes, o s tex to s d os papiros eg íp cio s revelam ainda o con h ecim en to de determ inadas técn icas transcendentais d e con cen tração m ental. D o m esm o m od o, as re lig iõ e s orientais reuniram co n h ecim en tos sobre o sofrim en to hum ano e sobre a form a co m o e sse sofrim ento se poderia curar partindo d o interior d o in d ivíd u o. O s a forism os yoga de Patanjali, form u lados p rovavelm en te n o sécu lo II, con stitu em um a in esg o tá vel fo n te de in form ação sobre as d im en sõ es p síq u ica e esp i ritual da ex istên cia hum ana. Patanjali d efin e o yoga co m o o controle das ond as d e p en sam en to da m en te ou , segu n d o outra tradução, a restrição das flu tu a çõ es d o co n teú d o da m en te - um a e sp é c ie de ciên cia da saúd e m en tal. O o b je ctiv o do con trole das ond as de p en sam en to é a c o n sciên cia d e (e a com u n h ão co m ) a d ivin d ad e presente n os seres hu m anos e em tod os o s a sp ectos da criação: a obtenção d essa co n sciên cia traz o sam ad hi - o fim do sofrim en to. U m dos oito ram os do yog a, a concentração, dá a cesso aos sid hi - aqu ilo a que p o d em o s ch am ar pod eres p síq u ico s. Patanjali dá-n os um a descrição dos sidhi, m as adverte que se trata d e pod eres em estad o profano, portanto, ob stácu los ao sam adhi. M o isés, Jesu s e M aom é, fu n d ad ores das três relig iõ es m onoteístas ocid en tais, tod os e le s o u v ia m v o z e s q u e não estavam ao alcan ce das 82
outras p esso a s. D e ix o ao ju lg a m en to d os leitores a q u estão d e saber se as rev ela çõ es d e sses fu n d ad ores d e relig iã o são testem u n h o d e sanidade ou de lou cu ra, sem esq u ecer q u e, por v e z e s, o s co n tem p o râneos de Jesus o tom aram por p o sse sso . P orém , n aq u elas partes d o m undo on d e viriam a p redom inar estas r elig iõ es m on o teísta s, e apesar das p e rseg u içõ es, so b rev iv eu a id eia d e qu e é p o ssív e l en contrar o d iv in o n o interior da c o n sc iê n c ia hum ana e , através d e le, en contrar oportunidades d e ev o lu ç ã o . E sta n o çã o tem sid o d ifu n d id a qu er por in d iv íd u o s iso la d o s quer por gru p os, co m o é o ca so d o s S u fis n o m un do islâ m ico , d os C ab alistas n o m u n d o ju d a ico e - sem falar d o s G n ó stic o s d os prim eiros tem p o s - d os R o sa-cru cia n o s, M a ço n s e Q uakers d os p a íses cristãos. A s p e r se g u iç õ e s foram p articu larm en te v io le n ta s con tra to d o s a q u eles q u e se ju lg a v a praticarem a feitiça ria, a a d ivin h ação e a n ecrom an cia*. A té ao ap arecim en to da P sic o lo g ia e da P siq uiatria, era a Igreja que ch am ava a si o d ireito d e cla ssifica r e ju lgar e s s e s in d i v íd u o s, segu n d o 4 categ o ria s d ia g n ó stica s principais: santidad e, p o s sessã o , heresia e b ruxaria**. Joana d ’A rc, q u e o u v ia v o z e s, m orreu na
* Feitiçaria abrange um conjunto daquilo a que hoje podemos chamar medicina popular, sugestão e psicocinese. A clarividência e a precognição seriam os equiva lentes modernos da adivinhação. A necromancia seria semelhante ao que hoje cha mamos espiritismo (EI). ** A glória da canonização era concedida a indivíduos piedosos que não só não representavam qualquer ameaça para a autoridade da Igreja como podiam até servir para lhe aumentar o prestígio; consequentemente, os santos tinham a liberdade de fazer o mesmíssimo tipo de milagres pelos quais outras pessoas eram perseguidas. O estado de possessão, segundo o Rituale Exorcistarum, podia ser caracterizado por: dizer ou compreender palavras numa língua estranha, sem a ter aprendido; ter informação de coisas distantes ou secretas (podendo incluir a precognição); demons trar um vigor antinatural. Supunha-se que todos estes prodígios se deviam a uma relação forçada, isto é, não desejada, com o Diabo; por isso, a possessão era con siderada uma doença, que podia ser curada por meio de exorcismos e pela oração. As categorias heresia e bruxaria não se excluíam mutuamente. Tanto os hereges como as bruxas podiam ser condenados à morte. A heresia consistia em proclamar uma fé em desacordo com a doutrina da Igreja; essa fé podia basear-se em milagres, mas podia igualmente inspirar-se na percepção sensorial e cognitiva. A bruxaria podia caracterizar-se por adivinhação e feitiçaria; porém, os prodígios operados eram atribuídos, neste caso, a um pacto voluntário com o Diabo (EI). 83
fo gu eira em 1431; as autoridades tentaram , até ao ú ltim o m o m en to , fa zê-la co n fessa r q u e as v o z e s d e santos, que ela d izia ou vir, não eram reais - m as na verd ad e essa s v o z e s eram reais para ela . P or v o lta de 1600, B runo m orre tam bém na fogu eira por ter afirm ado que o s seres h u m an os têm ca p acid ad es d ivin as, por isso m ágicas, q u e p od em d e s cob rir-se por m eio d o treino da m em ória. C erca do ano 17 00 , G ich tel p rop agou id eias sem elh a n tes na A lem an h a, m as o seu c a stig o n ão fo i além d e ter sid o ex p o sto no p elou rin h o, ex ila d o e ex p u lso da p rofissão d e ad vogad o. C inq uen ta anos m ais tarde, S w ed en b org* ex p ô s as m es m as id eias, sem ter co m isso prejudicado a sua carreira p o lític a - não sem um certo grau de su sp eiçã o p ú b lica por cau sa das v o z e s que ou via. Por esta ép o ca , a S o cied a d e O cid ental estava a ca m in h o do n ascim en to da P s ic o lo g ia e da P siquiatria.
O despertar das humanidades: o magnetismo N o s p rin cíp ios do sécu lo XIX, M esm er, m éd ico v ien o -p a risien se, procurava ajudar o s seu s p acien tes m ais n erv oso s u tilizan d o aq u ilo a qu e ch am ava m a g n etism o . M esm er en carava esta terapia co m um a atitude p rov a v elm en te p o u co vulgar para a época: le v a v a a sério as d escriçõ es d os seu s p a cien tes sobre aqu ilo que sen tiam dentro dos seu s corp os** - o q u e resu ltou num a série de p r o p o siçõ es em que
* Sobre as ideias e experiências interiores de Emanuel Swedenborg, ver Jorge Luiz Borges (s/d, pp. 47-59). ** Mesmer relata que um dos seus primeiros pacientes sentia um fluxo subtil, quase doloroso, que irradiava iniçialmente em todas as direcções no interior do abdómen e que depois, subitamente, se dirigia para ambos os pés. Aqueles que têm treino nas modernas psicoterapias orientadas para o corpo reconhecem aí a chamada “ligação à terra”. Na época de Mesmer, contudo, o clima social e científico era muito desfavorável ao reconhecimento dessas experiências. Os historiadores estão em geral de acordo que o período de 1500 a 1800 se caracterizou por um progressivo retrai mento da experiência física e táctil, incluindo a sexualidade, e que a voz das mu lheres (que tendem a ser mais sensitivas do que os homens em relação às experiên cias corporais internas) foi progressivamente silenciada e as suas oportunidades educativas foram cada vez menores durante esse período (EI). 84
M esm er exp u n h a a sua cren ça na ex istên cia d e um flu id o sub til e im p on d erável q u e im pregn a tod o o U n iv erso e q u e, por isso , se rela cio n a co m tudo o q u e e x iste (p lan etas, p lantas, seres h u m an os). A cred ita v a -se q u e, n o s seres h u m an os, esta co n ex ã o co m o flu id o u n iversal se dava n o interior do sistem a n ervoso: a d o en ça seria cau sad a p elas p o ssív e is ob stru çõ es ao flu x o e reflu xo d e sse flu id o através do corp o. A m a g n etiza çã o , ao ex ercer in flu ên cia na circu la çã o d e sse flu id o no interior d o co rp o, pod eria, segu n d o M esm er, curar d irectam en te as d o en ça s n ervosas e , ind irectam en te, outras q u eix as. U m d os d iscíp u lo s d e M esm er, d e P u ységu r, a ssin alo u a im portân cia da von tad e e da fé n o p ro cesso d e m a g n etiza çã o e, ainda, d os esta d o s de transe q u e algu n s in d ivíd u os m a g n etiza d o s ex ib em . N e sse tipo d e transe, o s p acien tes p od iam p or v e z e s experim entar in cid en tes sem elh a n tes aos fen ó m en o s psi: por e x e m p lo , ser ca p azes de d escrev er a natureza da sua própria d o en ça e p rescrever o s rem é d ios e as atitud es cap azes d e proporcionar a cura - tal e qual co m o n o s r e la to s d o s r itu a is s e g u id o s n o s T e m p lo s d o s M is té r io s m ed iterrânicos. F o i este tip o d e transe m a g n ético q u e se difu nd iu particularm ente na H olan d a e na A lem an h a. N e ste s p a íses, o transe m ag n ético fo i d escrito co m o um p rocesso por etapas: in icialm en te, a aten ção con cen trad a na p ercep ção sen sorial vu lgar torn a-se m ais lim i tada; a p e sso a p o d e ficar in sen sív el à dor físic a e tornar-se m u ito su g estio n á v el - fica n d o , por ex em p lo , m ais su scep tív el a qu e lh e induzam a lu cin a çõ es através da su gestão. P o d e d ar-se um au m en to da clareza interior, qu e perm ita ao p acien te perscrutar tod o o seu corp o e saber o q u e lh e poderá prop orcionar a cura; p o d em tam b ém ocorrer fen ó m en o s telep á tico s, in icialm en te lim itad os às p e sso a s do círcu lo relacion al p róx im o do p acien te. P or fim , p od e d ar-se um a entrada em transe, q u e dá a c e sso à clareza u n iversal - um estad o d e p ercep ção sem lim ites d e tem p o n em d e esp a ço que o in d iv íd u o p o d e exp eren ciar c o m o um esta d o d e êx ta se. E stes estad os fin a is d e êx ta se são raros: um tex to d e 1815 ca lcu la q u e a clareza u n iversal e o êx ta se ocorrem apenas num a em cada 100 p esso a s em transe m a g n ético . O s estad os de transe d escritos por e s s e s autores m ostram um a im p ression an te sem elh a n ça co m os sutras yog a de Patanjali (q u e na ép o c a ainda não 85
esta v a m trad u zid os), sem elh an ças q u e m u ito d ificilm e n te se p od em atribuir a um a m era co in cid ên cia . N a altura em que M esm er e de P u y ség u r in iciavam as suas práti ca s, a In q u isição esta v a a ex tin g u ir-se em França, e na H oland a aca bava d e ocorrer o ú ltim o p ro cesso de bruxaria. E m parte, a excitação p rovocad a p or esta s duas in flu en tes figuras resid ia em prom overem e praticarem técn ica s h eréticas eq u iv alen tes a bruxaria. C ircularam por toda a cid ad e d e Paris caricaturas que rep resen tavam os m agnetizadores m o n tad os em vassou ras. A In q u isição de R om a não abriu m ão dos seu s p rin cíp ios e con d en ou o m ag n etism o até 1840. E sta ép o c a ex cita n te é v ista agora por m u itos co m o o berço das h u m an id ad es e da p sicoterap ia. A lg o de m u ito im portante tinha a con tecid o: M esm er, em n o m e d o d e se n v o lv im en to das p ro fissõ es m éd i ca s, reinvidicara a autoridade para d efin ir a saúd e m en tal, arrebatando ao clero essa prerrogativa tradicional. E llen b erger (1 9 7 0 ) escrev eu um b elo rom an ce h istórico (A D escoberta do Inconsciente), em que d es cre v e o d e se n v o lv im en to do co n c eito d e in co n scien te a partir de aco n tecim en to s da época; dem onstra o crescen te recon h ecim en to da influên cia p ela su g estã o e da im portância da relação entre curador e p acien te, e d e q u e m an eira tu do is s o viria a d e se m b o ca r n o c o n c e ito de p sicoterap ia, n o virar d o sécu lo . M as, algu res para cá de 1830, per d eram -se algu n s elem en to s im portantes: a arte da m agn etização e os ch am ad os m ilagres em estad o de transe. P or vo lta d e 1900, estes a ssu n tos foram desterrados para o s d o m ín io s da P arap sicologia.
A separação dos caminhos (1830-1900) N o sécu lo XIX d e u -se um im portante aum en to de interesse p elos m éto d o s pop ulares de cura e con h eceram um a en orm e v o g a alguns d e se n v o lv im en to s h istó rico s directos d o m o v im en to in icial do m agn e tism o: para citar apenas três, o esp iritism o , o recém -criad o M ovim en to d a C iên cia C ristã e as in v estig a ç õ e s sobre as auras, con d u zid as p elo q u ím ico alem ão R eich en b ach . U m d os a m ig o s de R eich en b a ch , o fís ic o e filó so fo F echner, aper ceb eu -se, por v e z e s, de auras que ele caracterizava com o corpos etéreos.
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F ech n er é h o je p or m u itos co n sid era d o o fundador da P sico lo g ia . D ep o is de ter p assad o por um a crise p esso a l, d e se n v o lv eu um a v isã o panteísta da realid ad e qu e en g lo b a v a o s fen ó m en o s paranorm ais e as ex p eriên cia s esp iritas. E le acred itava q u e a c o n sciên cia in d ivid u al está em lig a çã o co m um a alm a u n iversal q u e se ex p an d e através do esp a ço e d o tem p o. E sta é um a c o n c ep çã o m u ito sem elh an te à d e Patanjali e que viria a ser partilhada p or algu n s filó so fo s do sécu lo XIX e, p elo m en os, por d o is d o s p rim eiros p sic ó lo g o s: o h olan d ês H eym an s e o fa m o so W illia m Jam es, para q u em (Jam es, 1909):
“[...] uma conclusão se destaca dogmaticamente: existe um continuum de consciência cósmica em que mergulham as nossas mentes colectivas, como num reservatório ou mar maternos. A nossa consciência normal está limitada pela adaptação ao nosso meio exterior terrestre, mas o casco de protecção tem pontos fracos por onde irrompem, de vez em quando e subitamente, influências vindas do além, mostrando uma interconexão de que, de outro modo, se não poderia ter prova.” U m d os p io n eiro s da P siq u iatria P sico d in â m ica , o fran cês Pierre Janet, d e se n v o lv e u um a tese idêntica: acred itava que tudo o que a l gum a v ez tiv e sse ex istid o co n tin u ava a existir, num a form a e num plano tais q u e estã o para a lém da co m p reen sã o hum ana; acreditava qu e, um dia, seria p o ssív e l ao H o m em estudar H istória através d este continuum . N o en tan to, na su a obra n ão há m uita c o isa que faça lem brar a cren ça em qu e a c o n sc iê n c ia hum ana - ou o in co n scien te seja um sistem a aberto, lig a d o a um tod o m ais vasto. D urante um cu rto p eríod o, q u an d o era ainda filó so fo , P ierre Janet d e d ico u -se a ex p eriên cia s d e su g estã o à d istân cia co m um a m ulher saud ável* (para outros tratar-se-ia d e su g estã o telep ática), m as, em geral, e le in teressa v a -se m ais por trabalhar co m p esso a s tidas co m o m en talm en te d o en tes. P or isso , Janet c o m e ç o u a estudar M ed icin a e torn ou -se um terapeuta d otad o, a q u em d e v e m o s m uita da m oderna co m p reen são d e co m o p od e um in d iv íd u o sofrer c isõ e s dentro da sua
* Essas experiências foram também reunidas por Richet (1923), que participou em algumas delas (EI). 87
p erson alid ad e e d e que m aneira p od em as in flu ên cia s por su g estã o ajudar a restab elecer o co n tacto entre as partes separadas. P or esta altura, ainda e le n ão tinha c o lo c a d o a qu estão de saber se a extrem a sen sitivid ad e q u e en contrava em certos in d ivíd u os (co m o a sen sib ilid a d e à su g estã o à distân cia) lh es p od eria aum entar a v u ln e rab ilid ad e à d o en ça m en tal n em procurava saber co m o p od eriam essa s p e sso a s p roteger-se das im p ressõ es in d esejá v eis. P orém , acred itava q u e a m a ssa g em p od eria ser um a terapia com p lem en tar útil quando as d ificu ld ad es p sic o ló g ic a s se reflectem em esp a sm o s m u scu lares qu e atribuía a em o ç õ e s co n g ela d a s. Para e le , a relig iã o era a lg o cap az d e fortalecer o m oral e a m oral de um a p e sso a , em bora p en sa sse que a relig iã o ta lv ez fo sse irreco n ciliá vel co m um a abordagem m ais c ie n tífica da realidade. N o m esm o ano em q u e P ierre Janet escrev ia sobre su g estã o à d istân cia, um grupo d e e stu d io so s de O xford pu b licava um a in v esti g a çã o m u ito m ais alargada sob re o s fen ó m en o s de tipo p si (G urney M yers et al., 1 886). D escrev eram cerca de 7 0 0 ca so s de telep atia espon tânea e experim ental, em que algum a da inform ação fora forn ecida por figuras cim eiras da h istória da h ip n o se, co m o L ibault, E llio tso n , E sd a ile e R ich et. O s resu ltad os desta in v estig ação su gerem qu e a telep atia esp on tân ea é m ais freq uente entre in d ivíd u os que partilham um a lig a çã o em o cio n a l e q u and o o receptor da in form ação está rela xad o, estan d o o em isso r agitad o ou em p erigo. P essoa lm en te, acred ito q u e este é um dado sig n ifica tiv o para tod os o s qu e se en contram p ro fissio n a lm en te en v o lv id o s co m p e sso a s em d ificu ld ad e.
Reinos separados (1900-1950) N a prim eira m etade do sécu lo XX, as prin cipais p reocu p a çõ es da P sico lo g ia cen travam -se na percep ção sen sorial e na teoria da apren d iza g em . E sta últim a fo i a q u e m ais tardiam ente revelou algu m a uti lid ad e para a com p reen sã o das rela çõ es terapêuticas e d os cu id a d o s a
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prestar aos p a cien tes, em b ora a c o n sciên cia (p osta já d e lad o a c o n s ciên cia có sm ic a ) p arecesse, d e m om en to, co m p leta m en te afastad a da P sico lo g ia . A P a ra p sico lo g ia m an teve, por algu m tem p o ain da, um a certa lig a çã o às p r o fissõ es d e prestação d e cu id ad os, através d os e s fo rço s de M yers, H y slo p e P rince, n o sen tid o d e com p reen d erem as p o ssív e is c o n e x õ e s entre o s fen ó m en o s d e tip o p si e a d o en ça m ental - em particular a d esin tegração da p erson alid ad e. P or v o lta d e 1925, porém , essa lig a çã o p erd eu -se e a P a rap sicologia fico u red u zid a à in v estig ação d e lab oratório co m cartas e d ad os. T end o em v ista a in tegração d os d o is rein o s, a lin h a d e exp lo ra çã o m ais prom issora ta lv ez tenha sid o a prop orcionada p e la P siquiatria P sicod in âm ica. É certo q u e para Freud o fen ó m en o da relig iã o se p od ia exp licar satisfatoriam en te c o m o a fé n aq u ilo qu e se d eseja que seja verdade: e le acred itava qu e o desam p aro hu m an o origin av a a n ecessid ad e d e um pai forte. O s a sp ectos rela cio n a d o s co m a P a ra p sico lo g ia foram , p orém , centrais na relação entre Freud e Jung, assim co m o na ruptura entre o s d o is. É bem c o n h ecid o o ap elo d e Freud a Jung para q u e este se não p erd esse n o lam açal d o o cu ltism o . Já m en os c o n h ecid o é o facto de Freud, p o u co tem p o d ep o is d e ter feito esta ad vertên cia a Jung, se ter tornado m em b ro da S o cied a d e para a In v estig ação P síq u ica * e se ter m antido m em b ro d ela até m orrer. N as duas ú ltim as d éca d a s da sua vid a, Freud to m o u -se cad a v e z m ais sim p atizan te da h ip ó tese da te lepatia co m o fen ó m en o p o ssív e l n o decorrer da an álise, m u ito em bora tenha acon selh a d o o seu ú ltim o b iógrafo (Jon es, 1 957) a m in im izar essa esp ecu la çã o . A o lon g o d este p eríod o, em b ora co m in teresses d iv erg en tes, a P sico lo g ia e a P siq uiatria tinham um a c o isa em co m u m - um a v isã o analítica, m ecan icista e algo determ inista do d esen v o lv im en to hum ano: o s problem as d o p resen te são h ab itu alm en te interpretados c o m o c o n seq u ên cias de d e fic ien tes p r o c esso s d e ap ren d izagem e/o u d e traum as p sico ló g ico s in co n scien tes, algures na infân cia. E m co n seq u ên cia d este
* “Psíquica” no sentido de “mental”, “mediúnica”. 89
p reco n ceito , q u ase se perdeu um a verdade im portante: que as forças in tegrativas e autocurativas se pod em encontrar n o m om en to presente e, até, n o in co n scien te d o pacien te. Jung (1 9 6 3 ), M aeder (1 9 4 9 ) e A ssa g io li (1 9 6 5 ), cada qual p ela sua própria via, realçaram a presença d estas forças criativas em p e sso a s que exp erim en tam sofrim ento p sí qu ico; cad a um d eles adm itia um in co n scien te m ais ou m en os aberto, na lin ha das id eia s anteriores de F echner, H eym an s e Jam es. N ão d eve ser m era c o in cid ê n cia q u e tanto Jung co m o M aeder e A ssa g io li te nh am fe ito parte da sua form a çã o co m B leu le r, n o H osp ital de B u rg h õ lzli. D e fa cto , B leu ler era geralm ente c o n h ecid o co m o um dos p o u co s p siq u iatras ca p a zes de estab elecer rela çõ es terapeuticam ente b en éfica s c o m p acien tes em p sico se. Ju n g a cred ita v a q u e o s a rq u étip os (q u e p o d em ap arecer nos fen ó m en o s d e tipo p si) em erg em do in co n scien te c o le c tiv o com m ais in cid ê n cia durante o s p eríod os p sic ó tic o s. M aeder esforçou -se por encontrar o m od o e a im agem arcaica curadores próprios de cada p a cien te - a lg o q u e e le com parava ao daim on de Sócrates. E le acred itava q u e a adequada u tilização d essa im ag em -gu ia poderia re duzir em m u ito o tem p o n ecessário à cura e fe c tiv a em psicoterapia. Jung e M aed er eram am b os d e opinião q u e o s so n h os d os p acien tes pod eriam trazer rev ela çõ es de um saber cu rativo e, por v e z e s, pré-c o g n iç õ e s e p ercep çõ es telep áticas - n o çõ es fortem en te rem iniscen tes d o s T e m p lo s d o s M is té r io s da A n tig u id a d e e d a s d e s c r iç õ e s oitocen tista s do transe profundo. A ssa g io li d em on strou um a grande sen sib ilid a d e n o seu trabalho terap êu tico co m sím b o lo s curadores e co m as p rojecçõ es que os pa cien tes, a partir das instâncias m ais elev a d a s d o E u, fa zem para os seu s p sicoterap eu tas, d eu ses e am antes. Já em 1930 A ssa g io li escrevia sobre o d e se n v o lv im en to espiritual e as d oen ça s (m en tais) que lhe estão a sso cia d a s. Para ele , era p reciso ser-se extrem am en te cau telo so e hábil ao tentar penetrar n o in con scien te d e p acien tes que m ostrem p ossu ir algu m a sen sib ilid a d e telepática; e advertia que o in con scien te d essa s p e sso a s p o d e conter inform ação q u e não d iga resp eito à h is tória d elas e q u e, portanto, a revelação d essa inform ação pod e ser disru ptiva para o seu sen tid o p esso a l de identidade. 90
A integração: o desafio actual A partir d o fim d a II G uerra M un dial, tem -se dad o um a anim adora fecu n d a çã o m ú tu a en tre as d iversas teorias e terapias da P sic o lo g ia e da P siq uiatria. U m a terceira força h u m a n ística introduziu o co n ceito d e a u to -reg u la çã o orgân ica, ajudando d e sse m o d o a restab elecer um a v isã o m a is cria tiv a d a co n sc iê n c ia e d o in co n scien te. F oi um p eríod o em que n ó s, n o O c id en te, fo m o s ob rigad os a abandonar a arrogância c o lo n ia l e a ap ren d er a reavaliar as trad ições esp iritu ais do O riente - co m a sua p rofu n d a sab ed oria p sic o ló g ic a - e a recon h ecer o s factores co m u n s a o s rituais d e cura do T erceiro M un do, à cura p síq u ica e à p sico tera p ia . Isto daria o rig em à actual retom a das práticas associadas aos m étod os p op u lares d e cu ra, c o m p e lo m en os d u as características salien tes: a u tiliza çã o de té c n ic a s corp orais em p rob lem as d e saúd e m en tal e o treino c o n sc ie n te d e várias p o ssív e is p e rcep çõ es da realid ad e - a sp ec to s q u e a P s ic o lo g ia e a P siq uiatria tinh am tentado pôr d e lad o no p eríod o d o m a g n etism o . H oje ex iste um im portante corp o d e co n h e c im e n to s sob re m ed ita çã o e quer os terap eutas quer o s p acien tes têm v in d o a fazer a lg u m a in v estig a çã o sob re o s seu s p o ssív e is p od eres cu ra tiv o s (S h ap iro e W alsh , 1984; K w e e , 1990). O s p ara p sicó lo g os o b tiv era m o seu reco n h ecim en to cie n tífic o p ela A sso cia çã o A m erican a para o P rogresso d a C iên cia (Am erican A ssociation fo r the A dvancem ent o f Science), e m 1969. N o en ta n to , su b siste a n e cessid a d e d e p rossegu ir as in v estig a ç õ e s em áreas co m u n s à S aú d e M ental e à P arap sicologia: em virtude da v elh a c isã o en tre as duas d iscip lin a s, há q u estõ es qu e têm sid o m uito n e g lig e n c ia d a s p e lo s in v estig ad o res, m as q u e pod erão vir a ser de grande relev â n cia para a co m p reen sã o e tratam ento d e certos p rob le m as d e saú d e m en tal. P recisa m o s d e in vestigar, por exem p lo: - se e de q u e m an eira um a sen sitiv id a d e p síq u ica (co n scien te ou outra) e um a d im en sã o esp iritu al ou tran scen d en te p od em contribuir para a co n fu sã o p s ic o ló g ic a ou para a p sico p a to lo gia ; 91
- se um traum a p sic o ló g ic o p o d e despertar um a sen sitivid ad e p sí qu ica*; - se a q u eles q u e se d iz p ossu írem essa sen sitivid ad e e/o u as p es so as treinadas num a d iscip lin a espiritu al p o d em ser úteis às p esso a s q u e atravessam prob lem as de saúd e m ental; - se a prática de um a d iscip lin a esp iritu al e/o u as abordagens m ais sub tis do tip o co rp o-en ergético (in clu in d o as técn icas de ajuda m útua) p o d em ser ú teis ao resta b elecim en to d o eq u ilíb rio m ental. O co n h ecim en to p esso a l e a co m p reen sã o das p esso a s que ou vem v o z e s é in d isp en sá v el para este p r o c esso , e este livro con tém um a vasta gam a d essa s ex p eriên cia s. E x iste um a grande d iferen ça entre ou v ir um a v o z o p ressiv a q u e p rofere m en sa g en s am eaçadoras ou inju riosas e ou v ir um a v o z que prop orcion a in form ação útil e que p o d e ter um a in flu ên cia p o sitiv a na vid a da p e sso a que a ou ve. N o m ín im o , na F un dação R esso n â n cia fo i dada um a im portante oportu nidad e a tod os aq u eles que se sen tem co n fu so s por causa das v o z e s que ou vem : o s m eio s para com partilharem abertam ente essa s v o z e s. D e se jo encerrar e ste C ap ítu lo co m um a m en sagem : n ovas oportu nidad es poderão ainda surgir para to d o s o s que se sen tem per turbados p elas suas v o zes; na F un dação R esson â n cia esta m o s abertos à d iscu ssã o , o m ais alargada p o ssív e l, das exp eriên cia s que dizem resp eito ao tran scendente, ao ch am ad o “p síq u ico ” e ao espiritual. N o p ro cesso d e partilha d e in form ação sob re as n ossas ex p eriên cia s, a atm osfera d e abertura p od e vir a trazer d escob ertas surpreendentes. O s p sic ó lo g o s e o s psiquiatras p od em vir a aprender m uito co m o co n h e cim en to p esso a l d os seu s p acien tes — e iss o já aco n teceu outrora, aliás.
* Hipótese formulada incialmente por Ferenczi, nos anos 30. Ver Masson (1984), pp. 184, 283-295 (EI). 92
5 DISCORRENDO SOBRE VOZES Sandra Escher A discussão necessária A s p e sso a s q u e o u v em v o z e s sen tem -se forçad as a lidar co m um outro m u n d o q u e as p o d e su b ju gar e lh es m o n o p o liza a aten ção em prejuízo d e tudo o resto, da m esm a form a qu e tod os n ós, d e v e z em quando, n o s sen tim o s op rim id o s por um a em o çã o vio len ta . E m co n seq u ên cia d isso , a cap acid ad e da razão p od e ficar, p e lo m en os de in ício , virtu alm en te extin ta, to m a n d o im p o ssív el um a vid a qu otidiana livre da perturbação cau sad a por e ssa ex p eriên cia tão in ten sa e tão d escon certan te. N o s ú ltim os an os, ao lo n g o das n o ssa s m uitas en trevistas e d iscu s sõ es co m o u v id o res d e v o z e s , ficá m o s im p ression ad os co m a c o n v ic çã o nítida d e q u e a d iscu ssã o aberta co m outras p e sso a s qu e o u v em v o z e s prop orcion a um d o s m a is im portantes p ro cesso s de introduzir algu m a ordem na ten tativa d e ch egar a um en ten d im en to co m essa s ex p eriên cia s. 93
E m esp ecia l, con statám os que a com u n ica çã o ajudou im en so m uitas p e sso a s a aceitar as suas v o z e s e qu e, em co n seq u ên cia d isso , a sua au tocon fian ça aum en tou m u ito, fa zen d o co m que se lib ertassem do iso la m en to e a u m en tassem o seu sen tid o de en v o lv im en to co m aqu e les q u e as rodeiam . In felizm en te e co m d em asiad a freq u ên cia, o s ou v id o res d e v o z e s d ep aram -se co m o em b araço e o receio d os seu s fa m iliares e a m ig o s em ou vir falar d essa s ex p eriên cia s - o qu e, às v e z e s , tom a im p o ssív el encontrar a lg u ém interessad o em saber o qu e as v o z e s d izem ou d eix a m d e dizer. M esm o quando algu ém está preparado para ouvir, o fen ó m en o é tão fora d o vulgar que p od e ser m uito d ifícil fa z ê -lo com p reen d er por algu ém que não esteja d evid am en te fam iliarizado com essa s experiências. U m a so lu ção prática para estes p rob lem a s é a c o m u n ic a ç ã o m útua en tre o u v id o res d e v o z e s . A partilha d e ex p eriên cia s sem elh a n tes num a lin g u a g em co m u m o fe rece aos o u vid ores de v o z e s reais oportunidades de particip ação e d e aprend izagem . Porque esta é um a área extrem am en te im portante, d ed icá m o s todo este cap ítu lo aos resu ltad os p o sitiv o s d essa co m u n ica çã o , tal co m o e le s n os foram referid os p ela s p esso a s que o u v em v o z e s. O s prin cipais b e n efício s da d iscu ssã o aberta destas ex p eriên cia s p o d em resu m ir-se da seg u in te form a: R eco n h ecer m ais fa cilm en te o s padrões de com p ortam en to das v ozes; E sbater a ansiedad e; D escob rir p ersp ectiv a s teóricas alternativas; A um en tar a a ceita çã o das v ozes; R eco n h ecer m ais claram ente o sig n ifica d o das v o zes; V alorizar a sp ecto s p o ten cia lm en te p ositivo s; Estruturar m elh or o con tacto co m as v o zes; U tilizar m ais efica zm en te a m ed icação; O bter m aior tolerân cia e com p reen são n o seio da fam ília; C rescim en to p e sso a l. 94
Identificar padrões de comportamento das vozes A s p e sso a s qu e o u v em v o z e s d izem q u e é m u ito im portante para ela s ser ca p a zes d e falar das v o z e s co m o se fala, por e x em p lo , de fam iliares p o u co sim p á ticos. D urante o p rocesso d e d iscu ssã o , é p o s sív el aprender a recon h ecer o s jo g o s e o s truques das v o z e s , assim co m o o s seu s a sp ecto s m ais agrad áveis, e a id en tificar pad rões e sp e c ífic o s de determ in ad as situ a çõ es. E ste co n h ecim en to p o d e ajudar o ouvidor de v o z e s a estar m ais b em preparado para qu alq uer even tu al n ova in v estid a das v o z e s. U m a senh ora d e 35 an os, internada freq u en tem en te n o h osp ital p siq u iátrico, com entava:
“As questões que as pessoas puseram fizeram-me reflectir sobre as vozes que oiço - assunto em que eu nunca tinha realmente pensado. Fiquei surpreendida ao descobrir um padrão: sempre que penso nega tivamente dou comigo a ouvir uma voz negativa.”
Esbater a ansiedade A s p e sso a s qu e o u v em v o z e s a prin cíp io ju lgam q u e isso só a co n tece co m ela s. E ste facto, só por si, é su ficien te para tom ar a e x p e riência d esagrad ável e a n sio g én ica e produz sen tim en to s d e vergon h a e m ed o d e estar lou co . U m b om ex e m p lo d e esb atim en to da an sied ad e fo i-n o s dad o por um h om em d e 3 6 an os, qu e falou no prim eiro C o n g resso . E le tinha o u v id o as prim eiras v o z e s por v o lta d os 2 0 an os d e id ad e e tinha ficad o terrivelm en te am edrontado. S eis m eses d ep o is do C o n g resso , perdia o em p reg o e esta v a c o n fu so por estar a o u vir v o z e s d e n o v o . D esta v e z , p orém , já n ão ach ava a exp eriên cia tão perturbadora n em tão chocante: o C o n g resso tin h a-lh e dado a recon fortan te n o çã o de que não era o ú n ico a ou vir v o z e s, e isso aju d ou -o im en so . A an sied ad e co n d u z, m uitas v e z e s, ao evitam en to das situ a çõ es que p od em d esen cad ear a escu ta d e v o z e s, e este ev ita m en to b loq u eia seriam ente o d e se n v o lv im en to do E u. A ssim , a lgu n s o u vid ores de v o z e s já não se atrevem a ir a festa s, a con d u zir o carro ou a entrar 95
num sup erm ercad o. U m tal grau de an sied ad e restrin ge gravem en te a lib erd ad e d e m o v im en to s, e as estratégias d e evita m en to , a m aior parte das v e z e s , só contrib uem para agravar o prob lem a. U m a senhora d isse-n o s:
“Assim que as vozes se calam, começo a preocupar-me com o facto de elas poderem aparecer outra vez.” E sta sen h ora está agora em con tacto te le fó n ic o regular co m outras p e sso a s q u e o u v em v o z e s e que a en corajam a ultrapassar o s seus m ed os. E ste en corajam en to, vin d o de alg u ém fam iliarizad o co m a sua ex p eriên cia , d á -lh e a p o ssib ilid a d e de quebrar o círcu lo v ic io so da an sied a d e e do m ed o.
Descobrir perspectivas teóricas alternativas C o m o o s p ro fissio n a is d e Saú de M en tal, tam bém o s ou vid ores de v o z e s procuram ex p lic a ç õ e s teóricas a que p o ssa m atribuir a ex istên cia das suas v o z e s. C o m o n os d isse um a senh ora d e 5 0 anos que há c in c o an os com eçara a ou vir vozes:
“Depois de o meu filho morrer, comecei a ouvir a voz dele. Mas que fazer com essas mensagens? Pensei que outras pessoas com experiências idênticas me podiam ajudar, e comecei a procurá-las - mas, de início, essa busca foi infrutífera. No Congresso, conheci pessoas envolvidas n’0 Caminho /Padwcrk - ver Capítulo 7], um movimento espirita baseado nas conferências da médium Eva Pierrakos. Essas pessoas aconselharam-me a ler os livros dela, o que fiz. Reconheci nesses livros muito de mim própria, o que me ajudou a superar o meu problema." A ex p eriên cia p esso a l p od e ser m uito im portante para ajudar e acon selh ar outras p esso a s. P or ex em p lo , nu m a con v ersa co m um a senh ora q u e tam bém o u v ia v o z e s, o Sr. X disse:
“Puseram-me o diagnóstico de esquizofrénico e oiço vozes - por que é que elas provocam tanto sofrimento?" 96
R esp o n d eu a senh ora, perguntando:
“Quando é que você sente esse sofrimento?” E ntão, e le d isse-lh e qu e isso a co n tecia sobretudo quando se en co n trava rodeado d e um grande n ú m ero d e p e sso a s solitárias em grandes esp a ço s, por e x e m p lo , em su p erm ercad os. A senh ora aju d ou -o a co m preender q u e e le tinha ten d ên cia a ab sorver o sofrim en to das outras p e sso a s e, em b ora n ão o p u d esse en sin ar a im u n izar-se contra e sse sofrim en to, a co n selh o u -o a fazer e x e r c íc io s qu e o aju d assem a adq ui rir p ro cesso s d e se m anter à d istâ n cia e resguardar-se, assim , do s o frim en to. A prender a m an ter-se à d istân cia - e , su b seq u en tem en te, a reabrir-se - é um a técn ica relacion ad a co m a P arap sicologia: selar as fron teiras do Eu. S egu n d o o Sr. X , a ex p lic a ç ã o qu e a senh ora lh e tinha dad o fazia p len o sen tid o. D ig a -se, d e p a ssa gem , qu e o s c o n se lh o s dou tros o u vid ores d e v o z e s n em sem pre são au tom aticam en te escu ta d o s. A lgu m a s p e sso a s d isse ram -n os que o s co n selh o s receb id o s as tinh am p osto ainda em m aiores d ificu ld a d es. A s in v estig a ç õ e s e en trevistas q u e realizám os su geri ram -n os, por e x em p lo , qu e a freq u ên cia d e se ssõ e s esp iritas ou p sí q u icas* p od e por v e z e s con fu n d ir ain d a m ais o s o u vid ores d e v o zes m ais recen tes. O utras p e sso a s referiram -n os q u e a ajuda b em in ten cion ad a p od ia, em situ a çõ es d e co n fin a m en to num quarto de iso la m en to de um h osp ital p siq u iátrico, d esen cad ear a escu ta d e v o z e s ou tornar estas ainda m ais a g ressiv a s, em lu gar d e prop orcionar a protecç ã o pretendida. G eralm en te falan d o, é n ecessá rio ter-se sem p re m uito cu id ad o co m o s co n selh o s e as e x p lic a ç õ e s qu e se d ão, q u e n ão p as sam de c o n v ic ç õ e s p esso a is e n ão tom am em lin h a d e con ta outras p o ssib ilid a d es d e interpretação. E fu n d am en tal ter-se p len a co n sc iê n cia da en orm e varied ad e d e situ a çõ es e circu n stân cias in d ivid u ais. O co n selh o m en os arriscado ten d e a ser o q u e serve para aum entar o con tro le do in d iv íd u o sob re as v o z e s e q u e m en os contrib ui para aum entar o sen tim en to d e im p otên cia. O au to co n h ecim en to e a auto determ inação são as p alavras-ch ave.
* No sentido de “mediúnicas”, “mentalistas”. 97
Aumentar a aceitação U m a senhora de 38 an os de idade d isse-n os:
“Quando falava com outras pessoas sobre as suas experiências de escuta de vozes, convenci-me de que podia lidar melhor com as minhas se as aceitasse em vez de as negar. Deixei de lutar com as vozes. Ainda não posso dizer que me sinto feliz por as ouvir, mas a minha vida tornou-se mais fá cil.” N o p rocesso de d e se n v o lv im en to d e o p in iã o própria e de tom ada d e resp on sab ilid ad e de si m esm o , o prim eiro e fundam ental p asso é a aceitação das v o z e s co m o fa zen d o parte d e si. Isto é de extrem a im portância, se b em q u e seja tam bém um d os p a sso s m ais d ifíceis.
Reconhecer o significado das vozes U m a jo v em d eu -n os v á rios e x em p lo s de situ a çõ es em que lhe acon tecia d izer de v iv a v o z aq u ilo em que o seu m arido tinha estado a pensar. Isto ta lv ez não tiv e sse um sig n ifica d o por aí além , dado o co n h ecim en to ín tim o que cad a um d o s d o is tinha dos hum ores e particularidades do outro, m as h avia v e z e s em que isso acon tecia na au sên cia d e qualquer in d ício claro do que ele p u d esse estar a pensar. E sta situ ação irritava o m arid o, em b ora e le o não d em on strasse. A jo v em deu co n sig o a assim ilar a irritação d ele, enquanto a v o z que o u v ia lh e in ten sifica v a e ssa irritação, ao dizer que o seu m arido a haveria d e assassinar. C on seq u en tem en te, co m eço u a ter m ed o do m arido, qu e cada v e z fica v a m ais p erp lexo co m a situação. N e s te c a so , as v o z e s e x p r im ia m o q u e e la m esm a sentia: a a g ressivid ad e era o que m ais tem ia na sua relação. Sem p re qu e as v o z e s v eicu la m in form ação desta natureza, o d esa fio co lo ca d o p ela sua presen ça é , as m ais das v e z e s, m en os sig n ifi cativo do qu e os prob lem as d e relacion am en to cau sad os por aquilo qu e é reflectid o ou d iv u lg a d o através d elas. E m ca so s co m o este, em qu e a v o z rev ela in form ação sob re a sen sitivid ad e da sua ouvidora, 98
p o d e ser m u ito fru tu oso d iscu tir a natureza da m en sa g em . E sta abor d agem será ex p o sta e m p orm en or no C ap ítu lo 9, S e cçã o A n á lise fu n
cional.
Valorizar os aspectos positivos Q uando as p e sso a s o u v em v o z e s au ten ticam en te m a ld o sas - qu e rid icu larizam ou a m esq u in h am outras p e sso a s ou m altratam até os seu s o u v id o res, ao p on to d e e ste s se injuriarem a si próp rios - p od e, c o m p r een siv elm e n te, ser d ifíc il co n v e n c ê -lo s a aceitar a p resen ça das v o z e s c o m o u m a d im en sã o útil e p o sitiva da exp eriên cia. O co n tacto c o m outras p e sso a s p od e levar à surp reen dente d e sc o berta d e que as v o z e s p o sitiv a s ex istem , e à co n v icçã o d e q u e ela s p od em surgir ou ser d etectad as d ep o is da adequada a ceita çã o , por parte do o u v id o r, d o seu próprio lad o n ega tiv o . U m a sen h ora d e 40 an os d eu -n o s um e x e m p lo d esta situação:
“Ao longo da minha comunicação com os outros, tive de aprender que em mim existe um lado positivo e um lado negativo. E muito difícil de explicar, mas, ao aceitar o meu lado negativo, posso prestar mais atenção ao meu lado positivo. Posso aprender a cuidar de mim própria."
Estruturar o contacto com as vozes U m a senh ora d e 2 8 an os, qu e a p rin cíp io o u v ia v o z e s o d ia to d o , ex p lico u :
“Fiz um acordo com as vozes, segundo o qual passaria a reservar a noite para elas. A partir das 8 horas da noite, não estou disponível para ninguém, e pedi a todos os meus amigos que não liguem para minha casa depois dessa hora. Felizmente, o meu marido também aceitou este pacto. A vantagem deste sistema é que agora as vozes raramente me criam dificuldades durante o dia e passei a funcionar muito melhor." A introd ução d e ste tip o d e ordem na relação co m as v o z e s p od e ajudar a m in im izar o habitual sen tim en to d e im p otên cia - o q u e p od e ser extrem am en te v á lid o para ajudar as p e sso a s a verificar q u e é 99
p o ssív e l esta b elecer lim ites às v o z e s e afastá-las de um a introm issão ex c e ssiv a .
Utilizar mais eficazmente a medicação A partilha d e ex p eriên cia s dá às p e sso a s a p o ssib ilid a d e de ficarem tam bém a saber q u e m ed ica çã o estã o o s outros a tom ar, que b en efício s traz e qu e efe ito s secu nd ários p o d e ter. É im portante saber, por e x e m p lo , se um a determ inada m ed ica çã o se tem m ostrado e fic a z para re du zir a escu ta de v o z e s ou para esbater a an sied ad e e a con fu são p sic o ló g ic a associad a. D esta m aneira, é p o ssív e l ventilar certas q u es tõ es e avaliar rea cções co m o ta lv ez não fo sse p o ssív e l fazer junto do m éd ico , on d e as o p in iõ es se ten d em a extrem ar d e parte a parte, ten d en d o, quer o m éd ico quer o p a cien te, a pintar a situação em term os d e preto e branco. E n ecessá rio que am bas as partes com p reen d am q u e em qualquer m ed ica çã o a eficá cia e a a d esã o sã o dad os da exp eriên cia individual. U m a jo v e m , que ainda está a fazer tratam ento am bulatório, referiu:
“Tomei neurolépticos durante algum tempo, mas depois resolvi parar com eles, porque me sentia um zombie*. Já nem podia ler um livro. Ainda tomo medicamentos, mas agora numa dose de manutenção, com escassos efeitos secundários. Quando as vozes ameaçam subjugar-me, aumento temporariamente a dose.”
Obter a compreensão dos familiares U m a senh ora de 3 0 anos d isse-n o s:
“Em consequência do Congresso, os meus pais e o meu marido passaram a aceitar a existência das minhas vozes e, a partir daí, a minha vida tornou-se mais fácil. Até a vida social melhorou, porque as pessoas * Veja-se: Paes de Sousa, M. (1982) Problemas Éticos na Práxis Clínica Psiquiá trica; Psiquiatria Clínica, 3 (3), pp. 127-139 100
que me rodeiam percebem agora que, às vezes, não estou aberta à comunicação com elas por causa das vozes. Os meus familiares dão-me muito mais apoio e quando me comporto de maneira diferente aceitam-me mais prontamente."
Crescimento pessoal Q u ase tod os o s o u v id o res d e v o z e s q u e aprenderam a adaptar-se às suas ex p eriên cia s referem q u e, em ú ltim a an álise, o p r o c esso tinha contrib uíd o para o seu crescim en to p esso a l. P or crescim en to p o d e en ten d er-se a id en tificação d aq u ilo q u e é n ecessá rio para se ter u m a v id a p len am en te satisfatória e sab er c o m o atingir e s s e o b je ctiv o . P od eria ta lv ez d escrev er-se co m o um p r o c esso d e em a n cip a çã o. A Sr.a X é d isso um b om ex em p lo . C o m eço u a ou vir v o z e s em 19 80 , ao s 2 6 an o s d e idade. V iv ia co m o s p ais, raram ente saía e era um a p e sso a ex trem am en te d ep en d en te. A p ó s um a d as suas m uitas ten tativas d e su ic íd io , fo i internada num hosp ital psiq u iátrico; ao prim eiro dia c o m e ç o u a o u vir v o z e s q u e d ep ressa a d om in aram co m p leta m en te, p roib in d o-a, por e x em p lo , d e com er, d e beb er e d e dorm ir. S e is m eses m a is tarde, porém , a situ ação alterou -se rad ical m ente: e la tom ou a d e c isã o d e se tom ar in d ep en d en te. A s v o z e s eram agora um a in flu ên cia b en éfica , ap oian d o-a d e algu m m o d o na sua crise de iden tid ad e. D era m -lh e m aior com p reen sã o e aten ção para c o n sig o m esm a e , tam b ém , a p o ssib ilid a d e d e v iv er a vid a c o m m ais profun didade. Q uatro m e se s d ep o is, d e ix o u o h osp ital e c o m e ç o u a v iv er in d ep en d en te, a estu d ar e a trabalhar. C o n h ecem o s esta m u lh er em 1987, na en trevista em q u e a se le c cio n á m o s c o m o oradora d o P rim eiro C o n g resso . N essa altura, ainda esta v a e m tratam ento am b u latório e n ão p od ia trabalhar. C o n to u -n o s q u e tinha tido três e p isó d io s d e escu ta d e v o z e s, m as ach ava qu e o m elhor p r o c esso d e lidar c o m ela s era ign orá-las. N o decorrer das n o ssa s en trevistas e co n v er sa s co m outros ou v id o res d e v o z e s , p a sso u a reconsiderar esta su a form a d e ab ord agem e a co locar a si m esm a n o v a s q u estõ es sob re as v o z e s. D ep o is do C o n g resso , torn ou -se m em bro a ctivo da F u n d ação R esso n â n cia , on d e p assou a trabalhar na L inha
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S O S para aten d im en to d e ch am ad as d e p esso a s em d ificu ld a d e por cau sa das v o z e s. Q u and o, n e sse m esm o ano, v o ltá m o s a falar co m ela, a sua atitude perante as v o z e s tinha m udado sign ificativam en te:
“Aprendi a encará-las como um sinal de alarme; sempre que se materializam, já sei que as coisas não vão bem comigo e que preciso de estar mais atenta.” N o ano anterior tinha fica d o lou ca m en te apaixon ada por um h o m em qu e lh e retribuía a a feiçã o por co m p leto . A certa altura, porém , a Sr.a X c o m e ç o u a ou vir a v o z d o seu nam orado d irig in d o -lh e pala vras in a ceitá v eis e in su ltu osas. D esta v e z , no entanto, não se d eix o u afogar em p â n ico, ten d o antes a presen ça de espírito n ecessária para n ão con fu n d ir a v o z co m a p esso a . F oi ter co m o seu nam orado e p ergu n tou -lh e se e le a lgu m a v e z tinha tido sem elh an tes p en sam en tos a resp eito dela; e e le tev e a arte n ecessária para a c o n v en cer de que n ão. A o escla recer a situ ação co m o seu nam orado, co n seg u iu um m aior autoC onhecim ento a resp eito d o s seu s próprios problem as:
“Há uma parte de mim que não é capaz de aceitar que as pessoas sejam simpáticas comigo. Essa parte de mim quer-me destruir.” A ca b o u por com p reen d er q u e as v o z e s, quando apareciam , faziam parte d e um a paran oia na qual p en sava que toda a g en te esta v a a falar d ela - ao p on to de ju lgar qu e, quando alg u ém aparecia a rir na tele v isã o , se esta v a a rir d ela. H oje, quando isso a co n tece, vira sim p les m en te as co sta s à telev isã o . C om a ajuda das suas inú m eras activid ad es, a Sr.a X co n seg u iu deixar as suas v o z e s para trás. H o je, co n seg u e lidar m u ito m elh or co m as suas próprias e m o ç õ e s, q u e costu m am ser m uito v o lú v e is e tom ar o con tacto co m ela bastante d ifíc il. C ontinua a ser m u ito sen sitiv a - por ex em p lo , sin ton iza de im ed iato com o hum or d os outros - m as já não se d e sfa z em lágrim as ao prim eiro sinal d e alarm e. A Sr.a X d eu con ta d e q u e as suas aptid ões c o m o con selh eira telefó n ica v ã o m elh oran d o con tin u am en te e está agora a pensar em fundar um gru p o d e estu d o s. C o n seg u iu co n clu ir co m ê x ito um curso
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d e form ação para líd eres d e grupos d e ajuda m útua. E stá en cantad a co m a d escob erta das suas próprias cap acid ad es e, a p o u co e p ou co , fo i ap ren d en d o a con fiar n o seu sen so próp rio. A g o ra con tin u a a trabalhar, ao m esm o tem p o q u e p rosseg u e o s estu d o s, para aum entar as suas q u a lific a ç õ e s, e d iz q u e se sen te m elh or d o qu e nu nca. C o m e ço u a falar d e escu ta d e v o z e s co m as p e sso a s q u e a rodeiam : distri buiu p e lo s seu s a m ig o s có p ia s das actas fin a is d o C o n g resso , nas qu ais se in clu ía a su a h istória, e o fereceu um a có p ia à m ãe n o d ia d e anos. T enta tam b ém falar co m o pai, dizendo:
“A nossa conversa não tem que ficar limitada à sua mania do fu te bol".
Desvantagens da discussão A co m u n ica çã o acerca d e ou vir v o z e s tam b ém tem , ev id en tem en te, as suas d e sv a n tag en s.
“Ao expormo-nos desta maneira podemos sentir-nos muito vulnerá veis; é como se a nossa roupa suja estivesse toda em exposição.” A lg u n s o u v id o res d e v o z e s têm m uita d ificu ld a d e em se abrir sobre as su as ex p e riê n cia s, em b ora m u itos ach em q u e é m ais fácil falar se estiv erem no m eio d e outros co m o e les. A q u eles qu e nu nca foram p acien tes p siq u iátricos é esp ecia lm en te n ecessária um a b oa d o se de cora g em para enfrentar um m u n d o q u e lh es ch am ará lo u co s se fa la rem das su as vid a s. Para o s q u e estão n esta situ ação p o d e ser d ifícil descortin ar o q u e têm a ganhar em fazer isso e, m uitas v e z e s, a sua ún ica m o tiv a çã o é ajudar o s outros, isto é, a q u eles q u e n ão são cap a z e s d e lidar co m as v o z e s q u e ou v em . U m outro factor d e retraim ento em revelar q u e se o u v e v o z e s é estas, nu m ou noutro ca so , pod erem tornar-se tem p orariam en te m ais activas. U m a senh ora de 30 an os de idade d isse-n o s:
“Sempre que fa lo de ouvir vozes, é certo e sabido que nessa noite vão estar mais activas. Mas, ainda assim, as vantagens são muito maiores que os inconvenientes.” 103
Conclusão A ca b á m o s d e ver um a série d e ex e m p lo s que confirm am a extrem a im portância d e se partilhar a ex p eriên cia d e ou vir v o z e s, co m vista ao n ecessá rio p rocesso d e aceitação e reco n cilia çã o interior. T od os os q u e aprenderam a lidar co m as suas v o z e s testem u nh am que, sejam q u ais forem o s factores d e retraim ento, o s efeito s p o sitiv o s d essa partilha d e ex p eriên cia s são sem pre sup eriores às d esvan tagen s. E vid en tem en te, àq u eles cuja vid a se tornou insuportável por causa das v o z e s, p od e ser m uito d ifíc il d izer, filo so fica m en te , que é um p rob lem a tem porário, ou co m eça r a planear um a relação aceitável co m as v o z e s ou, ainda, antever um a clara v ia de saída. Q uando a an sied ad e é m uito acentuada, p o d e não ser p o ssív e l nada d isso . N este ca so , a so lu çã o in icial p o d e passar por técn ica s d e con trole da an sie dad e (ver C apítu lo 10). A q u eles qu e co n seg u em lidar co m ê x ito c o m as suas v o z e s referem q u e é fundam ental tratá-las na terceira p e sso a e aprender a dizer “n ã o ”, co m o se fa z a qualquer su g estã o sem p és n em cabeça. A prender a lidar co m a ex p eriên cia de ou vir v o z e s é um co m p lex o p ro cesso interno que p o d e não se co n seg u ir levar a b om term o sem ajuda. A q u eles que o u v em v o z e s d e v e m ter a oportunidade d e falar sob re isso , d e trocar ex p eriên cia s, d e q u eix ar-se delas até, de m odo a to m arem -se m ais fortes em si m esm o s.
6 OUVIR VOZES: A EXPERIÊNCIA DOS QUE NUNCA RECORRERAM À PSIQUIATRIA Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só as que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (Fernando Pessoa, Poesias)
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Introdução Marius Romme N o d ecu rso da n o ssa in v estig a çã o (ver C apítu lo 2 ), co n h ecem o s um nú m ero co n sid erá vel de hom en s e m ulh eres q u e o u v ia m v o z e s, m as q u e nunca tinham sid o p acien tes psiq u iátricos nem se c o n sid e ravam m en talm en te d o en tes. A pesar das v o z e s, os seu s fa m ilia res e a m ig o s tam bém não o s via m co m o d oen tes. Q u and o os c o n h ecem o s na seq u ên cia do program a de T V , ficá m o s m u ito surp reendidos porq ue está v a m o s habituados, co m o a m aioria d os psiquiatras e certam ente a m aioria d os le ig o s, a encarar qu em quer q u e o iç a v o z e s co m o alg u ém m en talm en te perturbado. F o m o s lev a d o s a m od ificar a n o ssa o p in iã o , ao confrontar-n os co m p e sso a s b em eq uilib radas e sa u d áv eis, a qu em sim p lesm en te acon tecia o u vir v o zes: v o z e s qu e n ão eram o u v id a s p elas p e sso a s que as rodeavam e que eram v iv en cia d a s co m o vin d as d o exterior de quem as ou via. A s v o z e s ou vid as por essa s p e sso a s satisfazem os critérios u tiliza d os p ela P siquiatria para d efin ir a lu cin a çõ es auditivas; em term os m ais sim p les, trata-se d e v o z e s que o ind ivíd u o o u v e, m as qu e não exp erim en ta co m o sen d o d ele. A d esig n a çã o “a lu cin a çõ es a u d itiv a s” é in feliz, já que p ressu p õ e a ex istên cia de p atologia, d e doen ça; seria ta lvez m en os p r eco n ceitu o so cham ar às v o z e s “p ercep çõ es extra-sen so ria is” . E sta é, d e fa cto , a prim eira razão para n este livro pu blicar as exp eriên cia s d aq u eles q u e o u v em v o z e s m as que nunca se sentiram na p e le d e p acien tes p siq u iátricos nem foram rotulados co m o tal. U m a segu n d a razão para publicar essa s exp eriên cias é aprender co m elas; aprender, por e x e m p lo , co m o é p o ssív e l controlar a escu ta d e v o z e s sem se passar p ela situação d e p acien te p siq u iátrico, e co m o é qu e algu m as p e sso a s - a p ó s um períod o de d ificu ld ad e - p o d em encontrar n essa s v o z e s um a fon te de inspiração (a que Jung ch am ava "vocação") ou , sim p lesm en te, um b om co n selh o . E ssas ex p eriên cia s têm m u ito a en sin ar-n os sob re co m o as p esso a s, durante o p r o c esso d e integração das v o z e s , p o d em lidar co m as suas v o z e s e co m a sua própria vid a. A s p e sso a s parecem aplicar cin co m and am entos para integrar as suas v ozes: 106
1. 2. 3. 4.
° - G uarda estritam en te a tua rotina diária. ° - C on cen tra-te n os teu s atributos p o sitiv o s. ° - C o n h ece-te a ti m esm o e aceita o teu lad o n ega tiv o . ° - A ceita a p resen ça d e um a in flu ên cia exterior a ti m esm o , m as c o n v e n c e -te de qu e ela n ão é m ais p od erosa do q u e tu. 5 . ° - F a z o q u e p u deres por encontrar ap oio e a ceita çã o n aq u eles que te rod eiam , e fala co m outras p e sso a s acerca das tuas ex p eriên cia s.
A terceira razão para pu blicar e sse s relatos é sugerir q u e o verd a deiro p rob lem a n ão é tanto o ou vir v o z e s m as sim a in cap acid ad e de lidar co m ela s (ver C apítu lo 7 , S e cçã o P arapsicologia). E ssa s h istó rias revelam um a en orm e varied ad e d e graus d e su ce sso em lidar co m as v o z e s e um a igu al varied ad e in d ivid u al d e lin h as d e referên cia teórica.
Contributos pessoais T o d o s o s autores d os sete con trib u tos qu e se seg u em con segu iram aceitar as suas v o z e s. É n o tá v el q u e tam bém tod os e le s ten ham a ceite a ex istên cia d e um m u n d o im aterial; e qu e tod os e le s com p artilh em um a p ersp ectiva p a ra p sico ló g ica ou espiritu al para interpretar as suas v o z e s (ver C ap ítu lo 7, S e cçã o E xperiências de vozes interiores).
Primeiro contributo pessoal Antes de falar de vozes e de como elas afectaram a minha vida, permitam-me que me apresente. Sou uma mulher de 61 anos de idade, casada, com um filho, uma nora e dois netos. Durante muitos anos, consegui conciliar a minha carreira de serviço social com a de dona de casa e mãe de família, até ficar incapacitada fisicamente. Presentemente, estou a receber do Estado um subsídio de doença. Oiço vozes desde a minha infância. Elas prediziam o futuro, davam-me bons conselhos e orientavam-me. Por vezes falavam-me doutras 107
pessoas — por exemplo, da evolução da doença de alguém. Embora pareça impossível, aprendi a dar ouvidos a essas vozes, porque, invaria velmente, demonstravam ter razão. Adoptei-as como companheiras de viagem. Embora isso me possa arranjar problemas, confidencio as mi nhas experiências àqueles que me rodeiam. Recebi a minha primeira mensagem clara tinha eu nove anos de idade. Na altura, vivíamos numa pequena cidade portuária e, certo dia, um navio-tanque grego fundeado no porto começou a explodir. O estron do da primeira explosão foi tão grande que se ouviu na minha escola. O meu pai era membro do corpo de bombeiros e precipitou-se sobre o local do sinistro. A notícia do desastre espalhou-se rapidamente por toda a cidade e a minha mãe ficou a recear pela vida do meu pai. Como é típico dumafamilia cristã, fomos criados em casa, e então a minha mãe e eu pusemo-nos a rezar para que nada de mal acontecesse ao meu pai. Algumas horas mais tarde, ouvi uma voz que do íntimo me dizia: “O teu pai vai voltar.” E falei nisso à minha mãe. Precisamente nesse momento, chegaram os nossos vizinhos e disseram que se estava à espera que o navio-tanque fosse pelos ares. Eu estava cheia de medo, mas tornei a ouvir, nitidamente, uma voz repetindo: “O teu pai vai voltar.” De facto, o que se passou foi que um estranho agarrou o meu pai e puxou-o, enquanto um colega, que estava junto dele, morreu atingido por barras de aço que vinham pelo ar. Fiquei calada sobre este incidente, apesar de as vozes passarem a ser cada vez mais frequentes. Estava perplexa perante o que as vozes pode riam querer dizer - eu não acreditava em espíritos - e não sabia se devia resistir-lhes. Fosse como fosse, ignorar as vozes não dava grande resul tado. Elas estavam constantemente presentes, o que era bastante cansa tivo para mim. Por fim, a minha única esperança de alívio era contar tudo aos meus pais. Eles não compreenderam, mas também não troçaram de mim; ouviram-me com atenção, embora não soubessem bem que tipo de conselhos me haviam de dar. Achava impossível resignar-me com a situação, mas continuei a ouvir vozes antes e durante a II Guerra Mun dial. Quando era miúda, as pessoas admiravam-se da minha segurança, principalmente quando respondia com grande convicção às perguntas delas. Isso distinguia-me das outras crianças e a minha mãe convencias e que eu era uma menina precoce. Por sorte, os meus pais prestavam pouca atenção aos comentários das outras pessoas. Eu já estava habi 108
tuada a este fenómeno - ouvia vozes que me abriam os olhos e me ajudavam a formar as minhas opiniões. Um bom exemplo disso mesmo relaciona-se com um tio meu, que era um obcecado pela política e pela maneira como se devia conduzir a Guerra. Ouvi uma voz a contradizê-lo, e surpreendi toda a gente ao anunciar que a Guerra terminaria com a queda de Berlim. A minha mãe declarou “só me faltava ouvir essa!”, e o meu tio rejeitou a minha afirmação como sendo uma fantasia de crianças. Na altura eu tinha 14 anos. O incidente nunca mais foi mencionado na família, se calhar ainda bem. Pela minha parte, aprendi a confiar nas minhas vozes. Outro exemplo dos tempos de guerra aconteceu a seguir à mudança para Ede de uma amiga minha e dos pais dela, depois de um intenso bombardeamento. Em Agosto desse mesmo ano, eu e outra amiga minha fomos visitá-la. Ao passearmos junto a Castle Doorwerth, perto de Arnhem, caminhávamos pela velha estrada romana, quando ouvi aviões a apro ximar-se. Naquela época, isso nada teria de extraordinário, não fosse o facto de os aviões estarem desarmados e o alarme antiaéreo não ter tocado. Tentei confirmar o caso junto das minhas amigas, mas elas nada tinham ouvido. Quando regressávamos a casa pela ponte do Reno, ouvi uma voz subitamente dizer-me: “É neste preciso lugar que vai dar-se a invasão aliada.” Embora a medo, contei às minhas amigas o que acabara de ouvir, mas elas responderam-me que isso era mesmo típico de mim. A amiga que vinha comigo foi contar ao pai, e ele riu-se desdenhosa mente e disse: “Que tolice mais infantil! Presta atenção: nós aqui, no leste, não corremos perigo; vocês, que vivem junto à costa, é que têm de estar preocupados...” Ele interpretava a evolução da Guerra em função do que via. Fiquei calada, mas sabia mais que ele. Quando a invasão se deu, viu-se que a informação dada pelas minhas vozes é que estava certa: a invasão surgiu precisamente por aquela ponte... Bom, mas ouvir vozes também me causou problemas. Por exemplo, quando passámos a trabalhar sob as ordens de um novo chefe - alguém, aliás, já conhecido de alguns dos meus colegas, incluindo o meu futuro marido, que o admirava por algumas realizações. Com o que tinham dito dele, estava morta por conhecê-lo. Contudo, quando fomos apresentados - e apesar de me ter feito um cumprimento caloroso e encantador - uma voz disse-me: “Ele é o diabo.” Então, algo de inacreditável aconteceu: a face do director transformou-se na cara do diabo. Foi um momento verdadeiramente difícil para mim, embora tivesse conseguido manter a 109
compostura e continuar a responder cordialmente. Por lealdade para com os meus colegas, tinha uma certa relutância em falar deste incidente mas, por fim, contei tudo ao meu marido, que aceitou totalmente a minha explicação - embora tudo isso fosse muito estranho para ele. Uma vez que as vozes não eram um problema para mim, mas algo em que eu acreditava, ele aceitava-as como fazendo parte de mim. Mas isso nem sempre foi fácil para ele. Mais tarde, provou-se que as minhas vozes, mais uma vez, tinham razão: o tal director era mesmo o diabo. Noutra ocasião, um dos colegas do meu marido sentiu-se doente. O meu marido disse-me que era cansaço, que o homem andava a trabalhar demais e que em pouco tempo ia recuperar, mas eu logo lhe disse: “Ele vai morrer.” Não voltámos a discutir o assunto. O meu marido, que era amigo íntimo desse homem, visitava-o regularmente; seis semanas de pois, o senhor foi internado no hospital, onde morreu. Como lidariam vocês com este tipo de informação? Eu e o meu marido decidimos não falar disso mas aceitar a situação. Depois do nascimento do meu filho, continuei a ouvir vozes. Só falei no assunto ao meu filho quando ele entrou para a Escola Secundária. A reacção dele foi que devia haver uma relação qualquer entre o facto de eu ouvir vozes e ser dotada de tantas capacidades. Ele contou aos amigos: “As pessoas parece que sentem que a minha mãe tem um dom especial. Estejamos nós onde estivermos, mesmo em férias, as pessoas mais desconhecidas aproximam-se dela, fazem-lhe confidências e pe dem-lhe conselhos.” Eu própria não tinha estabelecido essa ligação.
Depois de casar, mantive o emprego durante uns tempos e continuei a ouvir vozes. As minhas colegas não sabiam o que fazer quando lhes falava das minhas experiências. Uma vez, foi instalado um computador no meu emprego e recebi a novidade de braços abertos. As minhas vozes é que não: estavam sempre a chamar-me a atenção para a possibilidade de a utilização dos computadores pôr em perigo a privacidade dos meus clientes. Embora o sistema parecesse seguro, estava preocupada. Por fim, insisti em utilizar um código para proteger os meus clientes: isso era um procedimento complicado e cansativo e trouxe-me a fama de obsti nada e manienta, o que dificultava a minha vida. Recentemente, porém, uma colega minha comentou: “Estávamos a pôr em perigo a confidencialidade dos nossos clientes e tu previste isso.”
Num período particularmente difícil da minha vida, com o meu marido doente, fui ajudada pelo facto de ouvir vozes. Tendo completado doze
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anos e meio de serviço (uma efeméride muito celebrada na Holanda*), a administração e todos os 123 colegas trabalhadores deram uma festa em minha honra. Dois dos meus desejos mais queridos foram satisfeitos: ofereceram-me um relógio de ouro e um estojo de toucador em prata. Ao receber o estojo, o vidro do espelho de mão partiu-se espontaneamente. Ficaram todos muito chocados e logo se ofereceram para o trocar, mas uma voz convenceu-me de que o devia levar tal como estava. Contra o meu íntimo, insisti em ficar com o espelho. Um ano depois, dava comigo a reconhecer que já não estava fisicamente em condições de voltar a trabalhar. O espelho partido seria um presságio? Durante esse período terrível, ouvia imensas vozes e, quando estive de cama, vi também um vulto em forma de fantasma. Tentei afastá-lo, mas sem êxito. “Anda”, disse o fantasma. Pensei que isso talvez quisesse dizer que eu deveria começar uma vida nova, e fiquei descansada. Desabrochei de novo e, apesar da minha doença, sinto-me agora mais feliz e mais realizada do que quando tinha a minha carreira profissional. Será que tudo isto se pode interpretar como um processo de crescimento pessoal e como uma forma de auto-realização? Outro período muito difícil da minha vida foi quando me dei conta da doença progressiva do meu marido. A primeira vez que fui alertada para isso foi numas férias, na Grécia. Depois da sesta do meio-dia, tínhamos ido visitar uma igreja antiga, quando uma voz me chamou a atenção: “O teu marido está com muito mau aspecto, não achas?” Olhei para o meu marido e não vi que houvesse nada de anormal. Ao conduzir à toa por uma rodovia, comecei a empreender no assunto. Não estava em posição de fazer confidências ao meu marido e vi-me obrigada a lidar sozinha com a minha ansiedade. Depois de algumas semanas de angús tia, regressámos a casa. Mas a minha preocupação não parava de cres cer. Sabia que o meu marido andava desejoso de visitar as ruínas da civilização minóica, e tive um impulso irresistível de marcar uma viagem a Creta. O meu marido ficou entusiasmado com a surpresa, mas conti nuei preocupada, porque as vozes continuavam incessantemente a alertar-me para o estado de saúde dele. Pouco depois de regressarmos de Creta, o meu marido teve de ir de urgência ao hospital, onde lhe diagnostica ram um tumor de que eu já suspeitava. Recebeu a notícia com grande serenidade e, de certo modo, também eu tentei arranjar forças para * Metade das “bodas de prata”.
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manter a calma. Auto-sugestão, dirão vocês. Quando o meu marido teve alta, começámos a refazer a nossa vida e seguimos o conselho do médico de relaxar e fazer novas férias. Fomos a Viena. Certa noite, eu estava acordada por causa de uma voz mas também devido a um vulto enevoado que, empaticamente, me dizia: “Eles vão dar cabo da saúde do teu marido; tens de lutar por ele.” Estava em rebuliço, mas tinha o meu marido ao pé de mim, dormindo tranquilamente. No dia seguinte, quando passeá vamos os dois por um bosque, uma voz repetiu amenamente: “Luta; eles vão dar cabo da saúde do teu hom em .” Imaginem como eu me sentia! Não tinha vontade de deixar Viena e diligenciei junto de um especia lista local no sentido de fazer radioterapia ao meu marido. Ele estava a sentir-se pior e tinha passado a noite com muitas dores. Mais uma vez ouvi a voz repetindo: “Luta; eles vão destruir a saúde dele.” Imaginem como isso foi doloroso para mim: devia eu contribuir para a angústia do meu marido? Finalmente, encontrei coragem para me abrir com ele. Ele não disse nada e, então, agarrei no telefone e marquei uma entrevista com o médico que o estava a tratar. A radioterapia e a quimioterapia foram suspensas e eu e o meu marido ultrapassámos este tempo difícil. Nunca deixei de ouvir vozes. Elas são intrusivas mas amistosas; aumen taram-me a atenção ao que me rodeia e fazem parte, são uma parcela, de mim mesma. Não vou dizer mais nada, mas espero que tenham con seguido apanhar o que tenho estado a tentar exprimir. Nunca descartei as vozes como forças sobrenaturais, magia, bruxaria, ou qualquer coisa assim. Aí vozes transformaram a minha vida e peço-vos que respeitem esse facto.
Segundo contributo pessoal Nos últimos 14 anos, tenho estado em contacto telepático com a voz do meu espírito-guia*. Este diálogo começou depois de um período de vários meses em que passei por muitas e variadas experiências paranormais, como o desenho e a pintura automáticos, a clarividência, as premonições e as curas por meios a que chamaria magnetismo. Muito embora a parapsicologia fos* O u “ g u ia e s p iritu a l” , n a te rm in o lo g ia e s p irita - q u e c o rre sp o n d e s e n siv e lm e n te à n o ç ã o d e a n jo -d a -g u a rd a , n a te rm in o lo g ia c a tó lic a .
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se, desde há 10 anos, uma duradoura paixão para mim, sempre a tinha encarado como uma mera área de estudo e nunca pensei vir a estar pessoalmente envolvida nela. Inesperadamente, vejo-me agora transpor tada do estudo dos fenómenos paranormais para as experiências pro priamente ditas. Ao princípio, foi muito difícil para mim reconhecer que ouvia vozes, já que, a bem dizer, não as ouvia com os meus ouvidos, mas era mais como se fossem impressas na minha consciência: era mais do género da comunicação telepática. Por vezes - como, por exemplo, no processo de escrita automática* — tinha dificuldade em distinguir se se tratava de algo genuíno ou se era uma projecção pura e simples da minha imaginação. No geral, contudo, sentia essa voz - o meu espírito-guia - como parte integrante de mim, e assim fo i desde início. Uma vez ciente da presença constante dessa voz, a minha vida tocou noutra dimensão, umas vezes enriquecedora, outras vezes perturbadora. Em retrospectiva, verifico que tanto as experiências dos píncaros como as provações mais dolorosas fazem parte do fenómeno, e devo suportar umas e outras. O primeiro ano deste período foi particularmente angus tiante, porque quase todos os dias alternava altos e baixos. Naturalmen te, isto tinha as suas consequências na vida familiar, mas para mim era essencial aguentar a situação, já que não podia esperar que alguém compreendesse a ruptura que eu simultaneamente experienciava e cau sava. Muitas vezes, tinha a sensação de estar metida numa missão impos sível, mas, vezes sucessivas, quando mais precisava de alívio encontrava libertação; embora frustrada, conseguia sentir. A explicação que a voz me deu para ter de sofrer tanto é que o sofrimento era essencial para a minha preparação, e que, quando compreendesse a obra que me estava reservada, todo o sofrimento iria desaparecer. Disse a voz: “A obra tem de prosseguir, é preciso que sejas perseverante - o que tenho para te ensinar é difícil”. Apesar desse incitamento, eu achava difícil aceitar
todas essas provas sem me enfurecer. A vida parecia-me demasiado difícil, mas CORAGEM E PACIÊNCIA foi o lema que me guiou. Fazia parte da essência dar tempo ao tempo. * A q u e o s e sp irita s ch a m a m “ p sic o g ra fia ” . N o te -se , aq u i, a su b tile z a d e F e rn a n d o P e sso a q u a n d o e s c re v e o p o e m a “ A u to p s ic o g ra fia ” (v id e F e rn a n d o P e s so a (1 9 8 0 ) Poesias de Fernando Pessoa, Obras Completas de Fernando Pessoa, C o le c ç ã o P o e sia , E d iç ã o Á tic a , p. 2 37 ).
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Dois anos depois, cruzei-me com as Obras Completas de Santa Te resa d’Avila. Quem me dera tê-las descoberto mais cedo! Para mim, esse livro confirma e atesta tudo o que passei, já que Teresa sofreu um processo semelhante ao meu. Ela concebeu o livro* como um guia de jornada para todos os que andam em busca de Deus. Escreveu sobre os problemas que lhe surgiram por causa de ouvir uma voz: aqueles que a rodeavam advertiram-na de que essa voz era obra do demo, e essas calúnias fizeram-na duvidar da existência de Deus - o mesmo que aconteceu comigo. No seu livro, Teresa descreve a ca minhada rumo às sete moradas do nosso castelo interior. Chegados à Sétima Morada, entramos em contacto com Deus, através da voz que ouvimos, e vivemos em plenitude. Santa Teresa resumia a Sétima Morada da seguinte maneira: “Ser o violino de Deus é diferente de tocar violino para Deus. Por agora, Ele preocupa-Se com o aperfeiçoamento da composição final. Quando me tiver entregado totalmente a Deus, quando Ele tiver o violino na Sua mão, ficará concluída a composição final.”
Com a ajuda do que li, e a partir da minha própria experiência, posso agora dar algumas sugestões: -Escolhei a bondade, a luz, Deus. Quando tiverdes escolhido, não permitais que nada nem ninguém vos faça desviar. Acima de tudo tende confiança, porque, seja qual for o vosso sofrimento, virá depois o cres cimento da vossa alma. -Pensai positivamente. Durante muito tempo, não me dei conta da importância deste aspecto, já que os tempos difíceis, por vezes, são esmagadores. - Entregai-vos à criatividade. Para sairdes da depressão dai voz às vossas lamentações (através do vosso Guia espiritual, por exemplo) e pedi ajuda ao Alto, para emergirdes do vosso Vale de Lágrimas. Aproveitai a energia libertada pelo vosso pranto e começai a usar criativamente as vossas mãos. - Comungai frequentemente com a natureza. A natureza é a presença tangível do espírito de Deus. Quando a vossa alma está em sofrimento, a natureza tem os seus próprios poderes de cura. - Sede perspicazes e ficai alerta. Sobretudo nos primeiros tempos, a * Las Moradas. P u b lic a d o em P o rtu g a l (1 9 9 4 ) p o r A ssírio & A lv im , so b o títu lo “ A s M o ra d a s” (trad . d e M a n u el d e L u c e n a ). 114
perspicácia é essencial para entender a voz. Manterá o vosso espírito desperto. Vós não sois instrumentos passivos. - Sede discretos. Evitai falar desnecessariamente com a família, os amigos e conhecidos sobre a vossa experiência de ouvir vozes. Por mais difícil que seja, tentai levar uma vida o mais normal possível. Cultivai a companhia de almas semelhantes à vossa, nas quais possais confiar; só elas podem compreender a vossa experiência. - O completo desabrochar da alma: tudo gira em volta disto. Para que se possa dar a união com Deus, a alma tem de estar completamente purificada. A sua santificação é simultaneamente um fim e um meio; como dissse a voz: “a caminhada rumo à união com Deus tem por con dição o sofrimento e tem por resultado o amor eterno”.
P ostscrip tum , 3 an os d epois:
Nestes últimos anos, encontrei um apoio incomensurável nas obras místicas de S. João da Cruz, contemporâneo e amigo íntimo de Santa Teresa d’Ávila e carmelita como ela. Os seus escritos estão agora dis poníveis nas suas Obras Completas, que incluem Subida ao Monte Carmelo, A Noite Obscura da Alma* e As Chamas Vivas do Amor. Estes três livros mostram-nos como abordar a união com Deus. As obras de Santa Teresa introduzem-nos nas Sete Moradas do castelo interior e S. João amplia e clarifica este processo. As suas obras deram-me conforto nos momentos críticos. Parece paradoxal, mas é verdade, que seja pre ciso sofrer para chegar a este ponto: o sofrimento favorece o crescimento espiritual e conduz à experiência do sempre crescente e ilimitado amor divino; o sofrimento tempera a alma, o espírito, a mente e o corpo. A voz, que ainda hoje não oiço com os ouvidos, ajuda-me de várias maneiras neste processo; às vezes sinto que ela me conduz, sinto que as coisas progridem sem necessidade de ajuda ao nível humano; outras vezes, penso que é impossível prosseguir e, na verdade, não consigo se não for encorajada. Hoje em dia, a ideia de sofrimento é em geral rejeitada como não tendo sentido, como algo que é preciso evitar a todo o custo. No entanto, * P u b lic a d o em P o rtu g a l (1 9 9 3 ) p e la E d ito ria l E sta m p a , so b o títu lo A
Obscura.
Noite
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o sofrimento tem uma função que está para além da imaginação de muita gente. S. João da Cruz escreveu: “O sofrim ento conduz à purificação, de onde em erge um novo hom em espiritual, que se deleitará na presença de Deus por toda a eternidade.”
Terceiro contributo pessoal (Anna Hofkam p)
Eu tenho dotes paranormais de clariaudiência, clarissensitividade, intuição e, ainda, mas em menor escala, de clarividência. Desde que me lembro, sempre tive pelo menos uma e mais tarde várias vozes interiores. As minhas primeiras memórias desse facto re montam ao jardim de infância. Nessa altura, eu tinha dois Eus: um Eu infantil normal, crescendo como é costume; e um Eu completamente desenvolvido. A voz que ouvia mudava de estilo consoante o Eu que estivesse em predomínio, falando em termos infantis para o Eu infantil e em termos adultos para o Eu maduro. Eu aceitava a situação sem reservas, como é normal nas crianças. Os meus dois Eus alternavam de um momento para o outro, sem qualquer transição. A voz interior não permanecia inalterável. O carácter da voz mudava nitidamente consoante as ocorrências. Em geral, advertia o meu Eu infantil em certas situações, por exemplo, do perigo de brincar ao pé de uma vala. A voz era geralmente mais explícita para com o meu Eu adulto, avisando-me para não dizer que ouvia vozes, por isso poder ser mal interpretado, ou, então, explicando-me por que razão um professor agia de determinada maneira. A diferença de tom era tão nítida que ainda hoje está gravada em mim. À medida que fui crescendo, o meu Eu adulto foi-se desvanecendo, até se extinguir por volta dos meus 10 anos. A voz continuava, misto de anjo-da-guarda e melhor amigo. Era sempre fácil reconhecê-la, umas vezes advertindo-me, outra vezes confortando-me, mas sempre afectuosa. Uma vez, na escola secundária, tirei proveito dessa minha voz inte rior: respondeu a todas as perguntas num teste de Holandês. Era a cábula ideal, que nenhum professor podia detectar! Infelizmente, quando precisei de idêntica ajuda num ponto de Alemão, não aconteceu nada disso e tive que me contentar com um 3. A partir desta experiência, 116
aprendi que não devia contar com a ajuda das vozes nas situações em que fosse capaz de desenvencilhar-me sozinha. Não devemos ficar depen dentes das vozes e, sobretudo, deixar-nos resvalar para a preguiça. Na verdade, eu até já tinha prometido não explorar as vozes por esses caminhos, mas as conveniências depressa nos fazem esquecer estas so lenes resoluções. O castigo por me ter portado mal no ponto de Alemão foi um severo lembrete da minha promessa. Para o meu Eu interior, a experiência foi muito educativa. Anos mais tarde, tive uma experiência semelhante: quando estava a jogar cartas, ouvia exactamente que cartas devia reter e que carta devia jogar. Por isso, ganhava sempre. Então convenci-me que não estava a ser honesta e parei de seguir as instruções das vozes. Resultado: passei a perder. Mesmo hoje, se estiver dinheiro em jogo, não aceito que as vozes me digam o que devo fazer. O intercâmbio entre mim e as vozes prosseguiu desta forma durante muitos anos. Quando era criança, por exemplo, avisavam-me que estava atrasada e que eram horas de ir para casa; já adulta, avisavam-me, por exemplo, que não era bom ficar em determinado hotel. Sempre reservei para mim mesma a decisão de acatar ou ignorar esses conselhos mas, mais tarde ou mais cedo, provava-se que as vozes tinham razão. Por vezes, as vozes assumiam o papel de professores, explicando-me as coisas que me aconteciam, sobretudo até aos meus 6 ou 7 anos e, mais tarde, depois dos 26. Por vezes, os seus conselhos eram extremamente práticos como, por exemplo, descobrir algures um lugar para estacionar ou como apanhar o comboio. Tendo nascido na companhia de uma voz, nunca a vivi como um fenómeno exterior a mim, mas sim como parte de mim mesma - como uma consciência, se bem que não a possa pura e simplesmente ignorar quando ela se torna um problema. Nunca senti grandes dificuldades com esta experiência, embora reconheça que isso é a excepção e não a regra. Em 1976, tirei um curso de psicoterapia espiritual, com um inglês chamado Beesley. Aprendi imenso com ele sobre o ser humano enquanto ser espiritual e sobre a reincarnação. Estes temas poderiam ser consi derados como do foro paranormal, mas hoje há tanta gente que se confronta com o paranormal, numa ocasião ou noutra, que isso acabou por se tornar um lugar-comum. Entre outras coisas, aprendi muito sobre o significado de ouvir uma voz ou mais. Essas vozes podem ser guias interiores, mas nem sempre assim é - também há vozes negativas. As vozes podem vir dos mortos, mas também podem ser uma projecção do 117
" " " " próprio inconsciente. Aí vozes negativas ocupam-se geralmente dos medos e doutras emoções negativas. O inconsciente é muito comple xo e, tal como acontece no mundo objectivo, pode ser ora uma fonte de disputas, ora uma fonte de afeição. Depois de acabar o curso, reparei que o carácter da voz se começou a alterar. Por exemplo, uma vez insistiu comigo para nunca mais fumar nem comer carne. Achei que era um abuso e respondi-lhe que a vida era minha e que se eu quisesse fumar fumava, ninguém tinha nada com isso. Então, uma voz simpática e afável disse-me que era o meu conselheiro interior. Fiquei lívida e atónita, sentada, de olhos arregalados e de boca aberta. A partir de então, a voz negativa desapareceu e a voz amiga ficou. Desde 1976, esta voz - o meu Guia espiritual - tem-me dado muitas lições filosóficas. Entre outras coisas, aprendi como agir perante as vozes positivas e negativas e qual o compromisso ideal entre esses dois pólos. Claro que é maravilhoso poder contar com essa voz, com esse companheiro, mas nem sempre é fácil, na medida em que, andando assim tão absorvida, se torna fácil perder o contacto com a realidade. Houve uma altura em que me vi dilacerada entre dois mundos. Andava, então, na Escola Superior de Ciências Sociais, cujo ambiente e nível de exigên cia estavam num comprimento de onda totalmente diferente do do meu mundo interior - e esse conflito tornou-se-me tão difícil que acabei por perder o interesse por ambas as realidades. Fiquei fisicamente doente, completamente esgotada, embora os meus sintomas fossem bastante vagos e o meu médico não lhes desse grande importância. Através de uma pessoa conhecida, entrei em contacto com Zohra (a Sr.a Bertrand-Noach), que faz conferências e escreve livros sobre a sua vivência espiritual. Quando eu estudava com ela (1982-1988) e meditava nos seus ensinamentos, ficava maravilhada com a forma como ela era capaz de fazer luz sobre o meu guia interior; Zohra foi a única pessoa capaz de sondar e iluminar a minha experiência. A sua abordagem poderia chamar-se “Psicosofia”: de psycho - “alma” e sophya - “sa bedoria”. É uma maneira de estabelecer contacto com a sabedoria e o poder interiores de cada um. Então e agora, essa mulher ajudou-me a integrar a dimensão espi ritual na vida quotidiana e a aprender a estar bem comigo mesma. Quando estava enredada entre dois mundos, esse dilema alienava-me e consumia as minhas energias. Não fui capaz de lidar com a situação até reconhe 118
cer, por fim, o meu ponto fraco - a relação com as outras pessoas. O mundo invisível, as suas vozes e imagens, era-me familiar e não me dava motivos de ansiedade. Aprendi a adaptar-me a eles, incorporando os elementos concordantes e rejeitando, respeitosa mas firmemente, os ele mentos discordantes de mim. Isto nem sempre é fácil, sobretudo quando o medo controla e domina tudo. Quando aparecem as circunstâncias negativas, não é a voz em si que nos oprime, é antes uma ameaça aterradora e difusa. Deste modo, é importante fomentar atitudes positi vas e ganhar força, o que pode trazer ajuda e confiança, sobretudo àqueles que são menos receptivos à influência das forças negativas. Quando se procura compreender o fenómeno de ouvir vozes, pode ser difícil encontrar explicações lógicas para o conteúdo delas. Se se der atenção às circunstâncias em que as vozes aparentemente surgem, talvez seja mais fácil dar algum sentido ao fenómeno. Douwe Bosga, na sua Secção sobre Parapsicologia (ver Capítulo 7), cita Spinelli, especialista britânico em Psicologia do Desenvolvimento, que formulou a hipótese de antes da aquisição de uma identidade estável haver uma maior susceptibilidade à distorção das percepções. As opiniões que formulou são o resultado, sobretudo, do trabalho com crianças. Pela minha parte, venho notando que as pessoas que têm problemas de identidade também têm dificuldade em lidar com os fenómenos paranormais. Ao lidar com estes fenómenos, creio ser de capital importância valorizar a formação da identidade pessoal, desenvolver o amor próprio, a auto-estima e a acei tação total de si mesmo, com as qualidades e os defeitos próprios. Isto é verdade para toda a gente. Quando a auto-estima é insuficiente, a pessoa torna-se facilmente sugestionável e pode ficar à mercê da influ ência dos outros. Isto é particularmente assim na escuta de vozes que emitem ordens e ameaças absurdas, ou fazem aparecer imagens desconcertantes, que despertam sentimentos de culpa e medos inexplicáveis. O único valor que reconheço às vozes e às imagens nega tivas é o facto de revelarem zonas de fraqueza do nosso inconsciente e nos darem uma prova clara de que na nossa vida há muito mais do que aquilo que os nossos cinco sentidos sugerem; esta é uma verdade impor tante, que pode conduzir-nos a um maior conhecimento e a uma cons ciência interior mais clara. De acordo com a minha experiência, sugiro-vos um exercício que pode ser útil para o desenvolvimento de uma atitude positiva e aumentar a força interior: 119
Tentem relaxar-se e imaginem no vosso coração uma chama que irradia luz e calor. Não é necessário que seja uma grande chama, basta que tenha o tamanho certo para que se sintam confortáveis. Vejam como a luz e o calor são uma fonte de energia que se difunde em vós com a vida; irradiam do vosso coração, penetram no fluxo sanguíneo e espa lham-se por todo o vosso corpo. Sintam-se muito seguros, no vosso próprio calor. Esta luz não pode ser afectada por nada que esteja fora de vós, e está sob o vosso completo controle; não pode extinguir-se, existirá sempre. Esta é a fonte do vosso poder, a força que vos permite ser aquilo que quiserdes. Deixem a luz e o calor fluir através do vosso corpo por algum tempo, e sintam a vossa energia crescer, como se fosse uma bateria a carregar. Podem repetir este exercício as vezes que for necessário. Se à primei ra vez parecer que não resulta, não se preocupem. Com a prática, tornas e cada vez mais fácil concentrar-vos e a sensação de luz e calor au mentará. Actualmente, parece assistir-se a uma onda de interesse por diversas formas de contacto com os mundos invisíveis, positivos ou negativos. Em consequência disso, as forças positivas que influenciam a nossa vida estão a aumentar. Eu própria vi a negatividade ser superada pela positividade. Este é o caminho. Uma pessoa clarividente, muitas vezes, apercebe o medo sob a forma de um grande gancho: a cada vitória sobre o medo, o gancho endireita-se, fica mais transparente, mais pequeno, menos real e menos capaz de prender. E vocês ficam realmente mais aliviados. Não acredito que se possa resolver os problemas relacionados com a escuta de vozes negando-as ou suprimindo-as - isso só poderá agravar os problemas. Ouvir vozes tem um lado positivo; confiem na vossa in tuição. Fazei um pacto convosco: se as vozes quiserem que façais alguma coisa, sugeri-lhes que o peçam três vezes. Se os pedidos ou conselhos das vozes forem realmente importantes, terão de ser repetidos, mesmo que isso leve algumas semanas. Entretanto, lembrem-se: sempre que fizerem o que as vozes dizem, é a vossa vida que está implicada e vós sois os responsáveis por ela. Não precisais de vos deixar dominar pelas vozes mas podeis entrar em contacto com elas - não há nada que vos impeça de fazer isso. Se tratardes as vozes com respeito, também elas vos res peitarão. 120
Uma palavra final: quanto melhor aprendermos a lidar com as nos sas emoções, mais leve e mais positivo se tornará o ambiente que nos rodeia. Indirectamente, isso irá alimentar as almas dos mortos e outras forças, permitindo que elas se aproximem da sua própria luz. A escuta de vozes é uma coisa extraordinária, em especial se não estiverem em causa emoções perturbadas. A todos vós que ouvis vozes, desejo muito amor e muita sagacidade no trato com elas.
Quarto contributo pessoal Tudo começou quando o mensageiro fantasma me apareceu no jar dim, anunciando que a presença de Marc no meio de nós estava a chegar ao fim. Marc, o meu filho, que tinha então 28 anos de idade, sofria da doença de Hodgkin - um cancro dos gânglios linfáticos. Esse mensageiro era belo e cortês, muito alto e moreno, e tinha uma presença que infundia respeito. Transmitia as mensagens telepaticamente e eu compreendia-o, sem que ele pronunciasse uma só palavra. Durante a agonia de Marc, vi o seu ser espiritual separar-se do seu corpo real: um vapor saía em espiral da sua boca*. Marc teve uma recuperação parcial e esse vapor ficou a pairar em volta da sua cabeça. Houve momentos em que deixei de ver esse vapor e Marc recuperou a consciência por instantes. Este corpo espiritual reapareceu mais tarde sob várias formas diferentes, todas maravilhosas. Depois que Marc foi levado de junto de nós, vi-me rodeada de ruídos, rangidos e coisas do género. Quando me dispus a falar no caso, as pessoas diziam que todas as casas rangiam e faziam vários ruídos, mas eu sabia que no meu caso era muito diferente. Mais tarde, deu-se um episódio em que os meus amigos foram levados a concordar com a minha opinião, e essa confirmação deu-me uma grande alegria. Agora eu tinha a prova de que não estava só. Recebia sinais e avisos tão claros e miraculosos que só podiam vir de Marc. Contudo, os ruídos continuavam a perturbar-me, a ponto de não me atrever a ir para a cama: sempre que estava a começar a dormir, os ruídos atingiam o seu máximo e tornavam-se insuportáveis. A situação * A ideia deste “vapor” está consagrada, entre nós, no túmulo de Egas Moniz, em Paço de Sousa (Penafiel). 121
manteve-se assim durante algum tempo. Então, uma bela noite, comple tamente exausta, amaldiçoei-os com violência e virei-lhes as costas. A partir desse momento fui sempre capaz de adormecer longa e profun damente. Recusei entregar-me ao medo e sempre que ouvia um ruído de ranger ou de estalar encarava-o de frente e dizia-lhe que não me inco modasse. Em consequência disso, o medo e os ruídos foram desapare cendo gradualmente. Desejava saber o significado de tudo isto e, depois de muito procurar, encontrei uma mulher — Simone van Vel — que era médium espirita. A primeira coisa que me disse foi que eu e o meu filho estávamos em comunicação telepática. Através dela, Marc disse-me que, daí a uns meses, eu iria entrar num período de aprendizagem e que, então, poderia compreender melhor. Tudo isso era incrível e surpreendente para mim, tanto mais que gostava de acreditar que Marc ainda existia, estava bem e era feliz. No entanto, não me queria agarrar a uma esperança baseada numa mera ilusão. Depois de esgotar as possibilidades mais imediatas, estava determinada a saber mais, e essa determinação impulsionou-me a prosseguir a minha busca. Fiz um curso de autodesenvolvimento, dado pela referida médium, que repetidamente me instruía a sentar-me a uma mesa, com uma vela e uma foto do meu filho, e a apontar tudo o que me viesse à mente. Tentei, mas não descortinava qualquer sentido. Estaria a ouvir as mi nhas próprias palavras e os meus próprios pensamentos? Parecia sim ples demais. Mais tarde, porém, cheguei à conclusão de que as mensa gens eram de facto transmitidas e recebidas. Para espanto meu, estava a receber mensagens de outro mundo, onde o meu filho está, e onde todos continuam a existir depois de abandonar o corpo terreno. Durante o curso, aprendemos a desenvolver a utilização dos nossos sentidos e, ao longo desse processo, convenci-me de que sempre tinha lido o futuro. Então compreendi que era mais sensitiva do que a maioria das pessoas e que já tinha esses dons quando era criança — na verdade, esses dons tinham sido até a causa de algumas dificuldades de relacio namento com os meus pais, embora ache que talvez eles compreendessem o que se estava a passar. Sempre me senti revoltada ante situações evidentes para mim mas que para as outras pessoas eram invisíveis ou desconhecidas. Na altura, interpretava como mero despeito a incapaci dade deles em compartilhar da minha sensibilidade. 122
Sempre achei os meus pais e as pessoas que me rodeavam mais simpáticos, mais gentis, mais amáveis e sobretudo mais sensíveis e co nhecedores do que eu, o que me tornava difícil compreender por que é que agiam como agiam, fazendo-me sentir que estavam a cometer erros grosseiros. Era quase como se agissem por mera má vontade e má fé, causando efeitos nocivos em mim e nas outras crianças. Sempre me admirei, dada a minha curta experiência de vida, como é que eu, aos 6 anos, compreendia tão bem o comportamento de um adulto. Agora sei que isso se devia ao facto de compreender tudo numa dimensão dife rente. Sei agora que aquilo a que costumava chamar a minha consciência - a voz que me vem acompanhando ao longo da vida - tem sido, como agora lhe chamo, um Auxiliar Supremo. Ele tem cuidado de mim em circunstâncias que outros, segundo eles próprios me dizem, nunca pode riam suportar. Sem o conhecer, este poder (seja ele o que for) tem governado toda a minha vida. No mais profundo de nós mesmos, reside essa parte de nós que é a verdadeira fonte de sabedoria e conhecimento que está à espera de se abrir ao exterior. Os termos que cada um escolhe para descrever esse poder dependem da perspectiva que tiver sobre a vida. Assim, dei início a um lento e laborioso processo de crescimento, um estudo de todos os aspectos do sobrenatural (acima de tudo, a sua maravilha e a sua beleza), interrompido, aqui e além, por hiatos, aos quais se seguia um progresso mais rápido. Entretanto, aprendi a contactar deliberadamente os Seres Supremos para descobrir o que de melhor existe em mim, culminando em jubilosas vibrações que percorriam todo o meu corpo. Aprendi a fechar a minha aura, de forma a que só as Entidades Supremas me possam atingir. Isso quer dizer que deixava de estar à mercê de influências inferiores, ligadas à terra, que têm as suas próprias necessidades e exigências espirituais e que, por isso, não têm orientações nem conselhos para oferecer. A passagem por este processo fez-me mudar radicalmente. Ao fim de uns anos, as minhas ideias acerca da vida e da morte, das pessoas e da sociedade, alteraram-se de tal maneira que tudo o que me era familiar passou a ser uma questão em aberto. Sem o saber, e com resultados excelentes, tinha entrado em contacto com uma rede de apoio. Fui autenticamente inundada por muitas e preciosas intuições que, a bem dizer, 123
me têm vindo a guiar para o meu supremo bem. Esta nova visão das pessoas e do mundo contém uma profunda filosofia de vida, que nos torna capazes de funcionar ao nível mais intuitivo e profundo. Todos podemos mobilizar as nossas próprias fontes de energia interior para nos realizarmos e nos livrarmos dos processos de doença e de confusão. Cada um de nós possui a capacidade de compreender a sua própria sugestionabilidade e de aprender a seguir o seu destino, educando o seu próprio Eu. A partir deste processo, aprendi a ajudar as pessoas a valer-se sis tematicamente das sugestões dos Auxiliares que todos nós temos. Des cobri que não funciono se estiver muito preocupada, desanimada ou fatigada. Percebi que se der algo de mim a pessoas com medo, ansio sas ou inquietas, essas emoções me incapacitam; por isso, tive de fazer frente às reais dificuldades das situações adversas e de aprender a ser selectiva. Confrontada com tanta comunicação, tive de aprender a pre servar o meu equilíbrio e a detectar se estou ou não no comprimento de onda adequado. A experiência de estabelecer contados deliberados depende, em grande medida, da energia interior de cada um. Antes de mais, sempre que me encontrava casualmente com alguém, emergia de um estado de torpor. Cada um de nós é influenciado pela energia interior dos outros; isso mantem-nos ligados à terra e constitui o ponto de onde fluem as decisões que regem a nossa vida terrena. Mas, se existir dentro da alma uma vontade suficientemente forte, podemos aprender a dar resposta às expectativas e exigências do sobrenatural e a trabalhar com ele. Mas, para isso, não temos que ser usados como autómatos; caso contrário, será impossível organizar uma contra-força. O mesmo se diga de outras in fluências fortuitas. É essencial que nos agarremos a um sentimento pleno de identidade própria, mas sem que as nossas imperfeições e insuficiên cias nos toldem a visão correcta dessa identidade — o que poderia enfraquecer-nos. Quando se começa a confiar nas pessoas, adquire-se um novo círculo de amigos e depressa se descobre que nem toda a gente está sensibili zada para estes assuntos. Mas tenho de confessar que se não tivesse sido predisposta pela morte do meu filho, dificilmente estaria sintonizada com esta linha de pensamento e, se calhar, até lhe teria resistido veemente mente. Por isso, tenho sempre o cuidado de respeitar a opinião dos 124
amigos e das outras pessoas e de não procurar impor os meus pontos de vista. Aliás, quando eles próprios se encontram em dificuldade, de pressa lá chegam. Se é certo que fiz consideráveis progressos, também é verdade que tive de interromper o trabalho de vez em quando, por estar muito can sada, por vontade de me distanciar, ou, simplesmente, por estar farta. Preocupa-me muito poder cometer erros e causar ainda mais problemas às pessoas que vêm ter comigo em dificuldade. Sinto-me extremamente animada pela confiança que as pessoas depositam em mim, especialmente porque eu própria me sentia muito hesitante no início. Curiosamente, mais cedo ou mais tarde, as minhas predições acabam sempre por dar certo. Sugiro às pessoas que apontem ou gravem tudo o que se passa entre nós e, depois, relatem, tão literal e honestamente quanto possível, tudo o que eu ouvir; preocupo-me tanto comigo como com elas, para ser o mais responsável possível. Comovo-me sempre quando, talvez alguns anos mais tarde, as pessoas me vêm dizer que as mensagens veiculadas por mim tinham sido seguidas por elas com grande proveito. No Congresso de Maastricht, travei conhecimento com várias orga nizações, entre elas O Caminho. O Caminho e as ideias de Eva Pierrakos estão muito próximos das minhas próprias experiências. A perspectiva de Pierrakos e as expressões por ela utilizadas deram conforto à minha alma; até então, nunca eu tinha conhecido ninguém que tivesse desen volvido a sua própria abordagem nesta área. Falta dizer que, do fundo do coração, recomendo os livros e os artigos desta notável médium. Com a sua ajuda, experimentei uma nova onda de crescimento e posso agora trabalhar outra vez com as pessoas com uma confiança renovada. Numa retrospectiva da minha vida, poderei concluir que o maior benefício que obtive foi, em última análise, o desenvolvimento de uma grande energia interior; embora tivesse sido ajudada e orientada das maneiras que descrevi, tenho de reconhecer que foi a minha própria iniciativa que desencadeou um novo crescimento. O ímpeto para a acção tem de vir de dentro de mim mesma; tenho de correr o risco e assumir a responsabilidade de me lançar para a frente. Todos os que já trilharam estes caminhos sabem, certamente, o que isso exige: todos os perigos, a angústia, o começar de novo. Apesar de tudo isso, porém, podemos aprender a ganhar a coragem necessária para continuar. 125
Quinto contributo pessoal Desde já vos digo que sou uma mulher de sorte: nunca me senti confundida pelas vozes que oiço. Isto não quer dizer que eu seja uma espécie de heroína; o que se passa, simplesmente, é que tinha lido umas coisas sobre escuta de vozes antes de as começar a ouvir; isso e mais algumas ocorrências prepararam-me para o fenómeno. Creio que esta nova fase da minha vida terá começado já em 1979. Nessa altura, atravessava uma crise terrível e andava muito descrente em relação a mim mesma: tudo o que fazia era para mim um libelo acusatório, fazendo-me ver que não prestava. Uma convicção destas depressa con duz qualquer pessoa ao desespero, e vi-me forçada a pedir ajuda a um psicoterapeuta*. Retrospectivamente, sinto que o psicoterapeuta, ao dar-me tempo e atenção, me ajudou a desenvolver um sentido saudável do Eu. Ele per guntava “O que é que você ganha com isso?” ou “Por que é que você diz isso? Quando eu tinha que tomar decisões sobre qualquer assunto que me dissesse pessoalmente respeito, nunca era capaz de decifrar o que ele sentia das coisas. Pôs-me a andar novamente pelo meu próprio pé. Ajudou-me a desenvolver a capacidade de fazer escolhas conscientes, de medir os prós e os contras de cada decisão e de assumir a respon sabilidade dessas escolhas, mesmo nos aspectos menos agradáveis. Na altura, tudo isso era um conceito completamente novo para mim. Certo dia, depois de eu ter estado a falar de mim, o terapeuta per guntou-me se eu gostaria de ler qualquer coisa e deu-me, para levar para casa, 9 páginas dactilografadas em papel A4, com o título “60.a Conferência . Tratava-se de um relato de um aspecto do desenvolvimento psicológico. Fiquei muito impressionada com a perspicácia revelada no texto, que viria fazer luz sobre a minha atitude negativa até então. Tudo isso era e é muito claro para mim, mas ainda tenho dificuldade em descrevê-lo aqui. Consegui entender esse texto, quer no plano intelectual quer no plano emocional. Os seus esclarecimentos mostravam como trabalhar no auto-aperfeiçoamento. Eu tinha 43 anos de idade e nunca tinha lido nada a um plano que se me afigurasse tão elevado; assim, senti-me levada a perguntar ao meu terapeuta quem tinha escrito aquilo. * Como se verá de seguida, o termo “psicoterapeuta” é utilizado aqui em sentido lato, de alguém que dá ajuda psicológica, neste caso, espiritual. 126
Ele disse-me que o conteúdo tinha sido expresso por Eva Pierrakos, embora não fossem exactamente palavras dela; que ela era uma médium, que entrava em transe e servia de porta-voz de uma outra personalidade ou consciência espiritual. Eu não acreditava nesse gênero de coisas e disse-lho, e não tornámos a falar no assunto. No entanto, continuei a ler coisas dela, ao todo 260 conferências que passavam em revista todos os aspectos concebíveis da psicologia humana. A pouco e pouco, dei comigo a querer saber se havia de facto um espírito implicado naquilo. Alguns anos mais tarde, chamou-me a atenção um livro escrito por Jane Roberts; ela também era capaz de entrar em transe e de falar em nome de seres espirituais. Tanto Eva como Jane impressionavam-me por serem totalmente normais: gostavam de discotecas, eram gulosas, gos tavam de se estender ao sol e de beber bom vinho. Mas eram também capazes de algo extraordinário. Jane Roberts tinha 32 anos quando ouviu pela primeira vez uma voz na sua cabeça. A sua reacção foi de que estava tudo muito bem, mas queria ter a certeza de que não era uma ilusão nem um produto do seu subconsciente ou inconsciente. Assim, dedicou um ano ao estudo dessa voz, dando-nos conta disso no livro O Que Diz Seth (Seth Speaks). Ela, o marido e outras pessoas envolvidas no caso começaram a convencer-se de que, na verdade, ela falava em nome de uma entidade chamada Seth. Seguidamente, devorei um por um os outros cinco livros sobre Jane Roberts e Seth. Havia uma impressionante semelhança entre os relatos de Jane e os de Eva, que também tinha um Guia que falava através dela. Entretanto, abandonei a minha incredulidade em entidades espirituais. Já não me lembro em que livro li que Seth tinha introduzido um exercício de relaxamento para nos auxiliar no entendimento da possibi lidade de haver outras coisas. Pratiquei esse exercício e, ao fim de algumas sessões, vi, ou melhor, senti uma imagem do lado de dentro dos meus olhos fechados; percebi de imediato que era uma advertência sobre um pensamento que acabava justamente de passar na minha cabeça. Fiquei agradavelmente surpreendida, na medida em que essa advertên cia representava ajuda numa area psicológica em que eu tinha alguma prática. Depois disto, durante ano e meio, passei a admitir que, com ajuda e prática, qualquer pessoa seria capaz de experiências semelhan tes. Oportunamente surgiram novas imagens, mais tarde palavras. Por se tratar de coisas muito pessoais, guardei tudo isso para mim. E, é 127
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também tinha algum receio de que as outras pessoas achassem isso muito estranho. Quando mais tarde me abri com outras pessoas rspiritualmente evoluídas, tive um grande trabalho em convencê-las de que essas experiências não estavam ao alcance de qualquer um. Pode mos comparar este fenómeno com o estar ou não sintonizado com deter minado comprimento de onda. E-me difícil dizer se oiço palavras ou se as sinto. As vezes, elas parecem vir de muito longe; muitas vezes compreendo imediatamente, outras vezes não. Sempre tive a certeza de que determinadas mensagens não provinham do mundo dos meus próprios pensamentos; o pensar sente-se de uma maneira diferente. Durante este período, as minhas experiências quando muito foram inesperadas, surpreendentes, mas nunca senti nelas nada de ameaçador. A linguagem utilizada puxava um tanto para o formal e era diferente do meu estilo pessoal de falar; normalmen te, o conteúdo era algo que eu nunca tinha conseguido atingir: uma ideia, um palpite, uma sugestão ou uma resposta a qualquer coisa que me tivesse deixado curiosa. A fonte dessas palavras conhecia-me melhor que eu própria, e isso fazia-me sentir que não tinha segredos. Tudo isso era estranho para mim e, além do mais, fazia-me perder muito tempo. Depois de ano e meio de experiências positivas, algo de muito dife rente aconteceu. Passados dois anos, numa manhã de domingo, senti subitamente um estrondo junto à minha testa, acompanhado de uma longa torrente de palavras, predizendo um terrível acontecimento. Tudo isto foi completamente inesperado; fiquei em pânico e nem queria acre ditar no que estava a acontecer. A princípio, pensei que era imaginação minha, mas depois achei que era melhor levar aquilo a sério e fazer alguma coisa. Estava completamente perplexa, quando me lembrei de Seth. Fui procurar num dos livros dele se haveria alguma pista sobre a maneira de afastar pensamentos negativos, seja através da imaginação, seja através de gestos físicos. Tudo isto era novo para mim mas, feliz mente, estava sozinha e não corria o risco de parecer maluca aos olhos de ninguém. Nos seus livros, Seth dá instruções sobre a maneira de detectar e afastar esses pensamentos negativos, e eu imediatamente pus em prática os seus conselhos. Mais adiante, voltarei a este assunto. A minha reacção ao que se estava a passar foi de raiva —eu não iria ser usada para tais propósitos. Fervendo de indignação, passei à acção recomendada por Seth. O incidente parecia sanado, mas depressa ficou claro que aquilo era apenas o começo de uma série de episódios seme 128
lhantes. Já não me lembro com que frequência ocorriam esses episódios, mas sei que estive preocupada com esses problemas durante algum tem po. Eram várias vozes: uma, era uma voz áspera, de homem, na minha cabeça ou mesmo atrás de mim; outra, uma voz aguda, estridente, de mulher, sussurrando com força no meu tórax, mais branda daí para baixo, que aparecia por baixo de mim, à esquerda, ou por cima de mim, à direita; e uma outra voz, nasalada, que me ridicularizava ou se ria de mim. Ora apareciam sozinhas ora em grupo, dando-me ordens destrutivas ou fazendo comentários sem sentido. Faziam também algumas observa ções sarcásticas, umas muito astutas outras mais cruéis - e estas magoa vam-me profundamente. Estava estonteada com a subtil e penetrante inteligência demonstrada por algumas vozes. Todas elas tinham manei rismos que eu reconhecia em mim mesma. Mas era muito confuso para mim quando um bom conselho era dado numa lamúria desagradável ou quando um comentário vexatório era feito num tom de voz amistoso. Estava embaraçada, sem saber o que fazer e em que acreditar. Sempre preferi a certeza à incerteza, e sempre me recusei a fazer fosse o que fosse sem antes estar convencida de proceder correctamente; se sentia que alguma coisa estava errada, cortês mas firmemente (por vezes zangada), mandava o mensageiro embora para junto dos seus amigos. Na dúvida, dizia-lhe que não tinha a certeza, que precisava de pensar, que me deixasse sozinha. Então, a voz ia-se sempre embora. Eu sabia que, mesmo que estivesse com medo, nunca devia pedir satisfações nem agir intimidada. Tornou-se-me claro que seria ridículo pensar que elas pudessem prevalecer sobre a minha própria vontade. Nunca lhes coloquei questões que as pudessem encorajar; na verdade, estava convencida de lidar com forças potencialmente perigosas, de que tinha medo. Para mim, um aspecto central é saber como lidar com visitas não convidadas ou indesejáveis - e as mais importantes são as piores. Deixem-me dar-lhes um exemplo. Com o tempo, acabei por verificar que há uma relação entre os padrões do meu pensamento e o tipo de visitas que posso esperar. Sempre que alimento pensamentos negativos, as vozes negativas aparecem. Eu sei isso, mas às vezes ainda me esqueço. Há duas semanas estava muito zangada com uma pessoa, e passei grande parte do dia a resmungar comigo mesma. À noite, estava sozinha em casa, quando, de repente, uma voz estridente gritou “Olá, querida!” Nesse preciso instante, vi uns olhos grandes, lânguidos e flamejantes que 129
me fitavam, e senti toda a minha energia escapar-se em todas as direcções, como se eu estivesse a explodir de susto. Sabia por experiência própria que, se não fizesse nada, ficaria inquieta, incapaz de me concen trar, respondendo tensa às pessoas e aos acontecimentos. Sendo assim, achei que tinha de fazer qualquer coisa, seguindo o conselho de Seth. Confio nele e não sei de ninguém mais competente para me dizer como lidar com as vozes que surgem na minha cabeça; Ele próprio aparece sempre nas nossas cabeças sob a form a de uma voz. Naquele dia, tendo irradiado tantas forças negativas, atraí o diabo. Sabia que tinha negatividade, ou seja, o diabo em mim - mas eu não sou o diabo. Assim quando ouvi a voz naquele domingo, imediatamente decidi não me identificar com o diabo - estivesse ele dentro de mim, dentro dos outros ou à minha volta. Atirei para o mais longe que pude todo o diabo que estava dentro de mim. Aprendera com Seth a fazer um gesto físico que me dá força e permite dizer: “Pronto, já saiu”. Depois, gritei para o mensageiro: “Não te quero aqui, vai para os teus am igos.” Agora sei que as pessoas trazem dentro de si não só o diabo mas também a luz e o bem. Existe um Eu superior, uma fonte de calor feita de energia positiva pura, e é a partir dela que tomo as minhas decisões construtivas. Sempre achei que, em boa verdade, apesar de todos os meus defeitos, sou boa pessoa. Um bebé comove-me porque irradia doçura. A minha descoberta da bondade fo i dificultada por concepções erróneas, interpretações negativas e coisas assim, mas decidi que, acontecesse o que acontecesse, iria cultivar em mim o bem. No meu caso, faço-o pre enchendo os pensamentos com imagens de luz. Respiro luz pelo alto da minha cabeça, até que a luz preenche todo o meu ser físico. Isso relaxa-me e dá-me sensações de prazer, e continuo até me sentir como que a sorrir por dentro. Ao mesmo tempo, penso na fonte que tenho dentro de mim e digo algumas frases afirmativas, como: “vivo num mundo segu ro”; “sei que presto”; e “gosto das pessoas e elas gostam de m im ”. Passado um bocado sinto a minha energia fluir de novo e fico cheia de paz interior. A í vezes sinto um rugir de fundo e a inquietação ameaça voltar, mas só paro o meu exercício quando tudo se pacifica à minha volta; isso pode levar 2 a 20 minutos, consoante a minha capacidade de concentração. Depois já sou novamente capaz de pensar com clareza, sem perturbação emocional. Chegada a este ponto, sinto-me realizada, mas o meu trabalho não está ainda concluído. Como disse, existe uma conexão entre os meus 130
padrões de pensamento negativo e o comportamento execrável das vozes, e eu, perante essa realidade, fico compreensivelmente apavorada. Nós humanos preferimos não acreditar que, em parte, podemos ser os respon sáveis pelas experiências negativas que temos. Todos apreciamos o prazer, enquanto que o que é desagradável não atrai ninguém. Contu do... Isto é muito bem conhecido n ’0 Caminho. É assim que eu vejo esta questão. Sempre que mando o diabo embora, tenho paz por um instante, mas, mais tarde ou mais cedo, de uma form a ou de outra, ele regressa à minha vida. Depois do segundo ano de vida, construímos convicções interiores, uma miscelânea de positivo e de negativo, de verdade e de juízos errados. Do lado negativo, encontramos o ressentimento, o medo, a desconfiança, a incredulidade, o ódio, a crueldade e outros impulsos destrutivos. Habitualmente, é a um nível inconsciente que nós, correcta ou incorrectamente, interpretamos as experiências da vida e outras impressões; os erros de interpretação que se mantêm no inconsciente são os responsáveis pelos nossos problemas. Como o inconsciente não nos é directamente acessível, não o podemos confrontar com a realidade. Nós somos cegos para os mecanismos que impedem as nossas interpretações de corresponder à realidade - uma realidade que, aliás, varia de indivíduo para indivíduo, na mesma me dida em que as nossas vidas diferem umas das outras. Assim, há pessoas que têm sorte no amor mas não têm tostão, enquanto a outras sucede o contrário. Nós reagimos de acordo com as nossas conclusões e, ao mesmo tempo, criamos também a nossa própria irradiação, com a qual atraímos pessoas semelhantes, acontecimentos e, ainda, as vozes. Por estas ra zões, todas as pessoas na escola de O Caminho trabalham em confor midade com esta visão de si mesmas, quer oiçam vozes quer não. Uma vez conscientes dos nossos impulsos destrutivos e da maneira como lhes damos expressão na nossa vida, podem os, se assim escolherm os, transformá-los em algo positivo, no nosso próprio interesse e no interes se dos outros. Na companhia de pessoas preparadas para esta tarefa, ajudamo-nos a nós mesmos e a cada um dos outros, com graus variáveis de sucesso, a não negar os defeitos que abrigamos dentro de nós. Tudo isto pode parecer um tanto ameaçador mas, felizmênte, o resul tado é que as pessoas passam a gostar mais de si mesmas - e, por extensão, das outras pessoas também. O que acontece é que, quando se passa a conhecer a nossa realidade corrente, todos os aspectos da per sonalidade que estiveram em exame são inundados por um estado de 131
alívio. Negá-los só contribuirá para desenvolver um sentimento de culpa. A medida que aumenta a nossa convicção e o nosso desejo de mudar, torna-se-nos cada vez mais difícil exprimir espontaneamente o melhor do nosso Eu. Eu própria me tornei mais dócil e as minhas experiências com vozes inúteis estão agora espaçadas de meses umas das outras. De tudo isto, é possível que vocês concluam que sou m édium , mas não é esse o caso. Ainda tenho de passar por um longo trabalho de purificação e não sei o que me está reservado.
Sexto contributo pessoal Para vos contar a história de como me dei conta de ouvir vozes, positivas e negativas, e de como aprendi a lidar com elas, terei de recuar aos meus 28 anos de idade, quando o meu marido, eu e o nosso filho Lex vivíamos em casa dos meus pais. A minha madrasta tinha ido ao médico queixar-se de dores de estô mago. Foi-lhe pedido um estudo radiológico da situação e ela veio dizer-mo antes de ir aos raios X. Quando saiu, fiquei sentada, tranquilamente, a matutar na doença que ela teria e logo ouvi e vi que se tratava de um cancro. E mais: que era o fígado que estava afectado e que ela ia morrer. Vi o funeral e ouvi que ele ia ter lugar no Ano Novo; que o céu ia estar nublado e o chão coberto de folhas. E foi precisamente o que se passou. Foi já mais tarde, na idade adulta, que eu conscientemente ouvi vozes pela primeira vez e, embora a informação por elas veiculada fosse ter rível, despertaram o meu interesse. Comecei conscientemente a lidar com elas. Tudo o que eu fazia inconscientemente desde criança acontecia agora conscientemente. Em criança, sabia que algo invisível estava em contacto comigo, embora não descortinasse como. E brincava e tagarelava com crianças invisíveis. Uma vez, a minha mãe quis saber com quem eu estava a falar, e respondi-lhe: “com igo”; mas eu sabia que estava a mentir. Aliás, dizia-se nessa altura que eu tinha uma imaginação muito fértil. Quando a minha mãe morreu, tinha eu 13 anos, o meu pai fazia-me ir todas as semanas ao cemitério. Supunha-se que eu rezasse (raramente os adultos sabem o que os seus filhos estão a tramar). Numa das vezes que fui ao cemitério, ouvi umas vozes que falavam umas com as outras. Fiz de conta que era apenas o vento a sussurrar nas árvores, mas, 132
secretamente, inconscientemente, sabia que eram mesmo vozes. Rezei uma Ave-Maria à minha mãe, na campa dela, e acrescentei: “Quando chegar a casa volto a falar contigo.” Então, ouvi uma voz dizer: “Está bem, minha filha, então vai-te embora.” Decididamente, era mesmo a minha mãe a falar. Quando optei por me relacionar conscientemente com as vozes, por vezes recebia informação que fazia sentido; essas eram as vozes positi vas. Havia também vozes negativas, que me impediam de fazer coisas ou que me faziam coisas a mim. Por exemplo, podiam tornar o meu braço pesado e levantá-lo no ar; então, eu chegava à parede e punha-me a escrever nela, sem lápis, o que as vozes me diziam. Escrevia na parede as coisas mais incríveis, os desejos mais embaraçosos. Aí vozes também me mandavam ir a lojas onde, diziam, iria ver ou experimentar alguma coisa, mas, evidentemente, não era esse o caso. As vozes faziam-me também mentir às pessoas. Quando as minhas irmãs me perguntaram se a minha madrasta estava realmente tão doente como os médicos faziam crer, respondi calmamente: “Claro que não, isso é tudo im aginação dela. - quando sabia perfeitamente que não era assim. Eu sabia já, através das minhas vozes positivas, que ela tinha um cancro, que os médicos viriam a confirmar aos raios X. As vozes continuaram implacáveis por mais algum tempo. Não podia ignorá-las de maneira nenhuma, e mantive-me na companhia delas porque não sabia como as fazer parar. Um dia, anunciaram que eu estava muito doente. É certo que me sentia doente - digamos que mal podia andar, com uma dor que tinha numa perna. Quando o meu marido me pergun tou o que é que se estava a passar, as vozes informaram-me que era a polio e que ele me devia meter na cama. Mas, longe de sentir compaixão por mim, o meu marido ficou furioso: praguejou e disse-me que essa maluqueira de ouvir vozes tinha de acabar. Assim, fui obrigada a tentar levantar-me e ir para a cama pelo meu pé e, para grande surpresa minha, descobri que não precisava de ajuda para me segurar de pé e que era capaz de caminhar normalmente. Com este incidente aprendi que podia optar por dar rédea solta às vozes ou desprezá-las, e nos anos seguintes, de acordo com a situação, pus esta opção em prática. Quando as vozes eram negativas, rejeitava-as; quando eram positivas, tomava nota das suas mensagens — por exemplo, quando me avisavam que tinha perdido a carteira ou as chaves, o que era sempre exacto. Gostava de fazer mais qualquer coisa com as 133
vozes positivas, mas não sabia muito bem onde aprender a fazê-lo. Encontrei o caminho completamente livre à minha frente quando o meu fú h o Lex adoeceu. Logo após o seu casamento, ficou afectado com uma dor nas costas, e eu queria fazer alguma coisa para o ajudar. Lembrei-me que, quando era pequeno, ele tinha estado gravemente doente e tinha sido curado pela intervenção do mundo espiritual. Deixem-me contar-vos como foi. Lex tinha na altura 2 anos e meio, e quando ficou doente levei-o ao médico de família. O meu filho fo i internado no hos pital e, depois de muitos exames, veio a confirmar-se que sofria de osteomielite da anca. As injecções não fizeram efeito e o médico disse mos que ele já não recuperava mais. A minha cunhada fo i visitá-lo ao hospital precisamente quando ele estava no seu pior, e ficou chocada porque pensou que Lex estava morto. Quando ela regressou a casa fo i falar com um vizinho que sabia estar envolvido num grupo que mantinha contactos com o mundo espiritual. O mundo espiritual é assim chamado pelos que acreditam numa vida para além da vida terrena. Nesse outro mundo estão evidentemente as almas de médicos e especialistas, e o grupo a que pertencia esse senhor mantinha contacto com essa gente espiritual. A minha cunhada falou-lhe do meu filho Lex e perguntou-lhe se seria possível ajudá-lo através dos contactos que tinha. Ele assim fe z e disse à minha cunhada que ela tinha chegado na hora exacta para salvar Lex. Para nossa completa surpresa e alegria, e sem qualquer razão médica, Lex reanimou. Toda a gente ficou perplexa, sem explicações para essa melhoria, inclusive eu própria. Só alguns anos depois é que eu viria a conhecer toda a história. Dois meses depois, o meu filho estava em condições de voltar para casa. Quando tentei agradecer ao especialista, este disse, com toda a hones tidade: “N ão m e agradeça, o mérito não é meu. Foi um milagre. Agra deça a D eus.”
Naturalmente, não pude deixar de evocar este incidente quando comecei a preocupar-me com as dores de costas do meu filho Lex. Entretanto, um especialista disse-lhe que não fizesse trabalhos pesados, caso contrário poderia ficar preso a uma cadeira de rodas. Então eu quis saber se ele sofria de algum género de paralisia. Queria contactar o vizinho da minha cunhada mas, depois de algumas diligências, soube que já tinha morrido. Alguém me deu a direcção das pessoas com quem ele tinha trabalhado e fo i assim que, pela primeira vez, entrei em contacto com uma associação espirita. Assisti a um serão aberto, em que os 134
participantes eram convidados a colocar em cima da mesa um objecto ou uma fotografia para que a médium se pudesse pronunciar. Quando a médium entrou em acção, fiquei surpreendida porque tudo o que ela viu e ouviu eu vi e ouvi também. Depois deste, assisti a vários outros serões abertos, do mesmo género e, por fim , juntei-me a um grupo dessa associação, na esperança de desenvolver a minha acuidade. Neste grupo, aprendi sobretudo a sinto nizar-me com os meus sentimentos e a identificá-los como positivos ou não. Aprendi ainda que todos temos um Mestre ou Guia espiritual e ganhei consciência do meu. O Guia espiritual põe-nos em contacto com coisas que de outro modo não podemos conhecer, trá-las à nossa consciência e tudo o que ele diz fa z completo sentido. Isso provoca-nos uma sensação de afabilidade imediata; e, dado que tudo o que ele diz está certo, passamos a confiar nele, e ao assentarmos nisso aprendemos a funcionar com positividade. Foi assim que aprendi a funcionar com o meu Guia. Durante as reuniões da associação aprendi também que há vozes que pertencem aos mortos que permanecem ligados à terra. Estes espíritos ligados à terra não têm consciência de que estão mortos e de que depois da sua vida terrena devem seguir para outro mundo. Assim sendo, alguns deles identificam-se com, e desse modo tomam posse de, pessoas vivas que, na aparência e na maneira de pensar, se assemelham a eles. Por exemplo, o espírito de um morto que tenha sido um paciente em cadeira de rodas poderá habitar a mente de uma pessoa viva que esteja em condição semelhante - tendo concluído que são uma e a mesma pessoa. Durante cerca de dois anos estive ligada a outra associação, até que alguém me aconselhou a ir à Associação para a Cura Espiritual e Natural (ASNH - Association o f Spiritual and Natural Healing). A í disseram-me que iria poder desenvolver os meus talentos de magnetizadora - um dom fortemente presente em mim. Vi-me atraída pela ASNH porque a sua sintonia espiritual era semelhante à minha. Além de magnetizar, aprendi também a servir-me das vozes positivas e a evitar envolver-me com as vozes negativas - que podem tornar verdadeiramente insuportável a vida humana na terra. Mais tarde, acabei por me convencer de que lidar com as vozes negativas constitui uma área de trabalho específica. Aprendi que as vozes negativas podem surgir das vozes boas, uma confirmação de algo que já sabia. Descobri a importância de permanecer estável por form a a manter o controle e a evitar a exaustão física. Aprendi a agarrar 135
.1 i'n\lll\id(uJe que tenho e a alicerçar-me nela: por esta via, é possível, i nti i outras coisas, transmitir energia aos outros. Nas reuniões da anterior associação tinha aprendido coisas sobre as almas dos mortos que ainda estão ligados à terra; nas reuniões da segunda associação aprendi a conduzir as vozes desses espíritos para o futuro, ou seja, para a vida eterna. Uma maneira de o fazer é explicar-Ihes que algo terá acontecido que lhes provocou morte súbita e, con sequentemente, os arrebatou aos seus corpos terrenos. Faço-lhes com preender que já não podem ver os seus corpos terrenos mas que ainda estão aprisionados ao momento da sua morte. Quando eles compreen dem, fico em condições de lhes dizer que têm uma outra vida, melhor, à espera deles. Deixem-me dar-lhes um exemplo. Estava sentada à mesa num grupo, e comentávamos algumas fotos. Sobreposta à fotografia de uma criança que tivera um acidente, vi uma criança morta, um rapazito. Comecei a falar com ele e descobri que tinha saltado da carrinha da escola e tinha sido atropelado por um carro. Ele pensava que só tinha caído e por isso permanecia junto da carrinha. Estava a chorar e andava à procura de qualquer coisa; quando lhe perguntei de que é que ele andava à procura, disse: “Perdi o meu boné.” Perguntei-lhe: “Para que queres tu o boné?”; respondeu-me que não podia ir para casa sem ele. M ostrei-lhe (simbo licamente, claro) onde estava o boné, e ele sorriu; então expliquei-lhe o que tinha realmente acontecido. Quando o compreendeu, pude condu zi-lo para a luz. Aprendi também que as almas dos mortos comunicam do além - o paraíso, o céu ou como lhe queiram chamar - e guiam aqueles que ainda permanecem na terra, ajudando-os a fazer o bem; uma alma assim é o que pode chamar-se o vosso Auxiliar, Mestre ou Guia. Isto já me era familiar, uma vez que já funcionava positivamente com a voz do meu Mestre. Obtive a minha qualificação como magnetizadora e descobri, na minha prática, que ouvia onde e qual era a queixa do paciente. Graças ao meu Mestre, ouvia e entendia-me pessoalmente com médicos do mundo espi ritual. Eles davam-me conselhos sobre determinadas doenças e indispo sições e estavam sempre prontos a atender-me. Foram tempos maravi lhosos esses, até um dia me convencer de que a negatividade, a inveja e o ciúme grassavam no grupo em que eu trabalhava. Isso tornou-se óbvio a partir de discussões em que se faziam observações que não 136
batiam certo. Sentia que muita coisa não estava bem e que havia uma corrente inferior negativa que era desagradável à minha inteligência espiritual, sobretudo tendo suposto à partida que todos os outros esta vam sintonizados nesta actividade de maneira idêntica à minha. Entretanto, conheci uma mulher dotada de faculdades paranormais. Discutimos uma com a outra uma data de coisas; ela tinha desenvolvido as faculdades de clariaudiência e de clarividência, e era capaz de dis tinguir as vozes positivas e as vozes negativas. Foi comigo às sessões do grupo, duas ou três vezes, e disse-me que alguns dos membros presentes eram terrivelmente negativos. Era a confirmação que faltava do que me tinha dito já o meu Guia espiritual - que eu devia sair daquele grupo e fundar o meu. Por esta altura, comecei novamente a ouvir vozes negativas. E não tinha aprendido ainda a lidar com elas. Aprendera a fa la r com elas e a mostrar-lhes o reino maravilhoso que as espera na outra vida, mas elas não se mostravam muito receptivas. Pelo contrário, eram agressivas e ameaçavam a existência dos meus guias espirituais e a minha crença em mim própria. Sentia que o meu magnetismo se deteriorava, assim como a relação que mantinha com o meu Mestre espiritual; dada a maneira como andava a sentir-me, as questões que lhe colocava arriscavam-se a receber respostas erradas. Quem quer que oiça vozes saberá bem do que estou a falar. Sentia-me impotente e deixei-me desmoralizar ao ponto de sentir que não era capaz de prosseguir. Felizmente, Ann, a mulher de que atrás falei, estava ainda por perto. Ela também era incomodada por vozes negativas, que lhe diziam ser mau para ela deixar-se envolver comigo, e que eu era vingativa e mentirosa. Sugeriram-lhe, ainda, que eu estava menos sintonizada espiritualmente do que ela podia pensar e que nada mais tinha a fazer comigo. Ann e eu falám os com as vozes e, a despeito das suas mentiras, chegámos à conclusão de que elas eram enviadas pelos poderes do pensamento de outrem. Pode transmitir-se o mal ou a autodestruição a uma pessoa por meio de poderes negativos, que podem ser enviados através de sentimentos de ódio, ciúme ou inveja. Foi o que me aconteceu; mais tarde, espíritos bem intencionados disseram-me quem e porquê estava por detrás disso. Prosseguimos a caminhada juntas, tentando pôr de lado os pensa mentos negativos e discutir as coisas em termos positivos. Continuámos afazer ver às vozes negativas o mundo maravilhoso que têm à sua frente 137
depois da morte terrena. Repetimos-lhes constantemente que terão de se ir embora deste mundo e deixar em paz as pessoas da terra, afim de que elas mesmas possam encontrar a felicidade, o amor e a luz. Ann e eu, durante este período, aprendemos uma data de coisas, sobretudo que o positivo triunfa sempre sobre o negativo. Aprendemos que, por mais terrível que possa ser a influência das vozes na nossa vida, essa influên cia terá sempre um fim, se estivermos preparados para lutar por ele. Juntas fomos capazes de nos empenhar neste esforço e aprendemos agora, afortunadamente, a lidar com as vozes negativas. Quanto a mim, passei um inferno durante alguns anos, mas, graças a Deus, sobrevivi. Durante esse período aprendi tanto que, juntamente com Ann —a minha melhor amiga e companheira nesta tarefa -, posso agora e cada vez mais ajudar os que estão a passar por um inferno igual.
Sétimo contributo pessoal Para explicar como aprendi a lidar com as vozes, deixem-me, antes, contar-vos como as ouvi pela primeira vez e que influência tiveram na minha vida. Terminado o curso secundário em 1977, comecei a minha formação como terapeuta ocupacional. Para tirar o curso, tive de ir para outra cidade e alugar um quarto. Uma descrição muito sumária de mim mes mo. sou filho único e, possivelmente por isso mesmo, sou exímio em entreter-me a mim próprio. Digamos que sou um solitário. Sou extrema mente criativo e, entre outras coisas, adoro pintar; nos meus novos aposentos tinha espaço de sobra para isso. A minha namorada tinha ficado na minha terra natal e, embora eu tivesse estabelecido alguns novos contactos, devo dizer que a vida de estudante não foi feita para mim, na realidade, eu dormia muito pouco. Pela primeira vez na minha vida, podia decidir por mim próprio o que queria comer, cozinhava a minha própria comida ou, então, comia na cantina do hospital. Em resumo, era livre de sair e voltar quando me apetecesse, sem outras amarras ou constrangimentos que não fosse a questão do que fazer ao meu futuro. Alguns meses depois, comecei a ficar obcecado pela ideia de pintar a grande parede branca do meu quarto; essa parede era um desafio para mim. Comecei por pintar uma floresta escura, com um réptil em primeiro 138
plano. Pintar é uma coisa que se transmite da cabeça à mão e eu sempre fui capaz de ouvir cores; elas transmitem-se por vibrações. Eu oiço o preto, o vermelho e o castanho escuro. Como eu não tinha rádio nem nada, enquanto pintava a parede do quarto estava um silêncio de morte. Naquele silêncio, porém, comecei a sentir crescer qualquer coisa de aterrador, uma espécie de presença ameaçadora que pairava algures por ali, de modo que tinha a nítida sensação de já não estar sozinho no quarto. Ouvi então nos meus ouvidos um ruído monótono que não vinha de mim e que não era capaz de explicar. Era algo parecido com o ruído que se ouve quando se põem os dedos nos ouvidos, embora mais surdo e mais monótono. Era também uma emoção, embora fosse mais profundo que isso, e eu tinha a sensação de que algo andava à minha procura. De facto, o que estava a ouvir era um grito de socorro de um grupo de pessoas. Para ser mais exacto, descrevê-lo-ia como o barulho dos aborígenes, de vozes muito primitivas: um ruído misterioso, muito amea çador. Começava numa lamúria e logo parava, apertando-me e estimulando-me repetidamente. Algo queria tomar posse de mim e conseguia. O que eu ouvia não era holandês nem outra língua qualquer, estrangeira; pelo contrário, era tudo falado através de emoções. Em resposta, eu não era capaz de articular um conjunto inteligente de síla bas, só ruídos. Para efeitos desta comunicação, direi que ouvia vozes quando me refiro a estes ruídos. Tive, muitas vezes, experiências semelhantes no passado, mas os ruídos eram sempre mais distantes e menos ameaçadores. Depois deste episó dio, passei a sentir-me ameaçado e perseguido. Era como se houvesse algo dentro de mim que pudesse irromper subitamente a qualquer mo mento: este sentimento estava sempre presente, consciente ou incons cientemente. Na verdade, sentia que tinha enlouquecido. Não me atrevia a falar com ninguém sobre as vozes e tinha imenso medo de estar só e de exprimir as minhas emoções, por exemplo, no papel. Nunca sabia quando as vozes podiam aparecer; muitas vezes, surgiam nas ocasiões menos indicadas. Sempre fui religioso - não apenas por educação de família mas também por opção minha. A oração é uma parte da contemplação; orar é comunicar com um poder a que chamo Deus, embora outras pessoas Lhe possam dar outro nome. Eu pedia a esse poder que me ajudasse. Não sei exactamente há quanto tempo passei a ter a coragem de dizer "ALTO!’’ às vozes, mas lembro-me do momento emocional. Penso que vai há três anos. Pouco tinha mudado na minha situação; as vozes já não eram tão 139
activas, mas continuava a sentir-me perseguido - elas podiam subjugar-me de repente, a qualquer momento. Enquanto fo r vivo jam ais irei esquecer a primeira vez que tive cora gem de dizer “ALTO !". Vinha de Zwolle, de regresso do trabalho, con duzindo o meu carro. Tinha acabado justam ente de ter uma conversa muito emocional, na qual me tinha aberto completamente. Vinha ao volante do meu carro na auto-estrada quando, subitamente, tomei cons ciência de estar com medo: medo do poder das vozes. Não uma, mas várias vezes, gritei dentro do carro: “Tenho medo!" Sozinho, dentro do carro, pode gritar-se sem ninguém ouvir, e fo i o que fiz. Era uma espécie de guincho primitivo. Era como se estivesse expulsando qualquer coisa de dentro de mim, e isso dava-me uma sensação de libertação que me fazia feliz; fo i nesse momento que senti que estava a ficar plenamente maduro. Aceitei-me tal como era e tal como ainda sou. Já não tinha que andar a fugir, porque passei a aceitar a existência das vozes. Disse-lhes “ALTO !”, enquanto as aceitava como espíritos independentes, como algo exterior a mim. O processo por que passei descrevê-lo-ia nos seguintes termos: - choque; - medo e fuga; - busca do significado das vozes; - aceitação das vozes como espíritos independentes; -aceitação de mim mesmo; - busca das minhas razões para fugir; - confrontação com as vozes; -com prom isso entre a aceitação e a rejeição das mensagens das vozes. Depois de tudo isto, parece que a turbulência desapareceu do rio da minha vida. Navego em águas calmas e sou capaz de escolher o meu próprio rumo. Ainda oiço ou sinto aquele grito de socorro, mas agora mando-o embora e isso liberta-me. Eu sou eu e sou capaz de preservar e manter a minha identidade. Espero ser capaz de ajudar as outras pessoas a encontrar o caminho para este mesmo sentimento. Vocês têm de ser capazes de dizer: “Eu estou OK; você está OK."*
* “Eu estou OK; você está OK?” - Trata-se duma expressão da Análise Transaccional (ver Harris, T. A., 1993).
7 OUVIR VOZES: PERSPECTIVAS NÃO PSIQUIÁTRICAS “A psique é uma parte do nosso ser que não encontra mos nos nossos estudos de Anatomia nem de Bioquímica nem de qualquer outra disciplina. E imaterial, pelo que nao pode ser dissecada nem observada na sua essencia; conhecemo-la pelas suas manifestações que constituem os chamados fenómenos psicológicos ou manifestações anímicas, porque a psique também se chama alma - apesar de este termo ser rejeitado por alguns cientistas como ana crónico e irritante do seu tímpano mais afeito a neologisProfessor Doutor Herménio Cardoso (Aulas Teóricas de Psiquiatria; Dementia Praecox, 1944)
Introdução Marius Romme A s e x p lic a ç õ e s p siq u iátrica s rep resen tam apen as um a p eq u en a p arcela do grande n ú m ero d e teorias q u e têm sid o p rop ostas para esclarecer o fen ó m en o d e o u vir v o z e s. T en d o em con ta a am pla b ase co n cep tu al d este liv ro , a ch á m o s por b em in clu ir um d eterm in ad o nú m ero de co n trib u içõ es q u e d essem relev o a algu m as d essa s teorias
n ão p siq u iátricas. A n o ssa selecçã o g u io u -se p ela s histórias contadas n o c a p ítu lo an terior, p e lo q u e in c lu ím o s as lin h a s d e referên cia con cep tu al seg u id a s p elo s autores d e sses con trib u tos. D ev erá referir-se qu e as e x p lic a ç õ e s adoptadas p e lo s ou v id o res d e v o z e s raram ente têm um a corresp o n d ên cia integral co m qualquer teoria iso la d a e x is ten te, co m b in a n d o , p elo contrário, v ários e le m e n to s d e diferen tes m o d elo s. V im o s já , n o C apítu lo 6, um a am pla varied ad e de persp ectivas p esso a is. A autora d o 1,° C ontributo atribui a v o z a um orientador espiritu al. U m b o m núm ero d os que o u v em v o z e s d efen d e este ponto d e vista, m esm o para lá d os o u vid ores d e v o z e s q u e n o s fo i dado con h ecer; p o d e v er-se na literatura sobre o tem a v ários ex em p lo s d isso m esm o , c o m o é o ca so da in v estig ação co n d u zid a p e la p sicó lo g a am ericana M yrtle H eery. P or isso , in clu ím o s um a b reve d escrição da sua in v estig a çã o c o m 30 ou v id o res de v o zes. A autora d o 2 .° C ontributo caracteriza o fen ó m en o co m o sen d o de natureza m ística , id en tifica n d o -se fo rtem en te c o m as ex p eriên cia s m ísticas d e S t.a T eresa d Á v ila . E sse facto im p eliu -n o s a co lig ir um artigo sob re m isticism o e religião. A autora do 3 .° C ontributo interpreta a escu ta d e v o z e s c o m o um d om paranorm al e , sim u ltan eam en te, um m eio para obter o c re sci m en to esp iritu al. A P arap sicologia to m o u -se um im portante m o v i m en to con tem p o râ n eo que atrai m uitos d os q u e o u v em v o z e s e, por isso , in clu ím o s, para reflex ã o , um a secçã o sobre e ste tem a. A autora do 4 .° C ontributo representa um a outra v ia , na qual as v o zes p od em con stitu ir um a fa se n os esfo rço s p e lo a v a n ço espiritual. O C am in h o, co m o é co n h ecid o o m o v im en to , é um sig n ific a tiv o re p resentan te d os ram os do p en sam en to espirita em q u e a figura do m édium d esem p en h a um pap el de interm ediário activ o. A cren ça n u clear da autora d o 5.° C ontributo é a d e q u e ex iste vid a d ep ois da m orte e q u e é p o ssív e l com u n icar co m o s m ortos; essa crença n ão só tem um grande im pacto no p r o c esso de luto co m o m od ela ainda a vid a do en lu tado. E ste tipo d e ab ord agem e x ig ia um artigo sob re a e sc o la m eta física de p en sam en to. Para a autora d o 6.° C ontributo, as v o z e s derivam d o esp írito de m ortos qu e n ão estã o em p az, p on to de v ista q u e é d efen d id o por 142
m e n ta lista s. E m r ec o n h ec im en to d esta im p ortan te ab ord agem ao fen ó m en o , in clu ím o s um a secçã o escrita por um m en talista, su b li nhando a sua an álise p esso a l dentro d esta p ersp ectiva. A s teorias da reincarnação têm aqui um particular sig n ifica d o , assu m in d o qu e a alm a hu m ana ren asce várias v e z e s, d e cad a v e z co m um a n o v a m issã o para cum prir (K a rm a). H á vários outros a sp ectos e teorias a sso cia d o s ao fen ó m en o de o u vir v o z e s e q u e n ão n os fo i p o ssív e l in clu ir aqui. N este particular, o s leitores in teressad os n o fen ó m en o d e o u vir v o z e s nas ch am ad as culturas prim itivas p od erão recorrer à literatura an trop ológica, n o m ea d am en te aos trabalhos da P rof.a Erika B o u rgign on .
Experiências de vozes interiores: um estudo de trinta casos Myrtle Heery A o lo n g o da h istória hu m ana, ap arecem in sisten tes d escriçõ es da escu ta d e v o z e s, seja n o co n tex to da R e lig iã o e da H istória, seja no co n tex to da P sico lo g ia , da F icçã o ou do M ito. A literatura p sic o ló g ic a q u e se ocu p a d estas ex p eriên cia s cen tra-se p rim ord ialm en te n os ind i v íd u o s que se su p õ e estarem p sico lo g ica m en te atorm en tad os, ao p asso q u e a literatura relig io sa se ocu p a d e in d iv íd u o s qu e se ju lg a estarem d iv in a m en te in spirad os ou d iab o lica m en te p o ssu íd o s. S u rp reen den te m en te, p o u ca aten ção v em sen d o dada às ex p eriên cia s d e v o z e s in te riores de p e sso a s q u e n ão integram n en h u m d e sse s d o is gru p os. O estu d o q u e se seg u e, q u e co n tém relatos seleccio n a d o s d e sse tipo d e ex p eriên cia s, representa um trabalho exp loratório e pod erá c o n s tituir um p on to d e partida para um a ulterior in v estig a çã o d o fen ó m en o . O term o “v o z interior” d esig n a um a ex p eriên cia su b jectiva sign ificante: a p ercep ção e fe c tiv a d e um a v o z q u e fala interiorm en te e/o u um a sen sa çã o m ais v a ga d e ter ocorrid o o u estar a ocorrer d eterm i nada co m u n ica çã o interior. A ssim co m o a v o z físic a co m u n ica entre um ser h u m an o e ou tro, tam b ém a v o z in terior p o d e co m u n icar intrap siq uicam en te — isto é, entre um n ív el e outro da p siq u e (van D u sen , 1 9 81 ). 143
A história das prin cipais r elig iõ es m u n d iais m ostra co m o santos, sáb ios, p rofetas e m estres (ca so d e M o isé s, M aom é e St.a T eresa d ’A v ila , por ex em p lo ) se inspiraram m a ciça m en te em v o z e s interiores e n elas assentaram o s seu s en sin a m en to s e a sua autoridade. A s e x p eriên cias d e sses h om en s e d essa s m u lh eres tiveram um trem endo im p acto n o n o sso m undo. M as, a ssim c o m o as p e sso a s co m d ia g n ó s tico d e p sic o se ou esq u izo fren ia não têm o m o n o p ólio da escu ta de v o z e s interiores, tam bém o s santos e o s sá b io s o não têm . H á m uitos h om en s e m ulheres vu lgares, que ocu p am o vasto continuum entre e s s e s d o is ex trem o s, q u e tam bém referem ou vir v o z e s interiores. O presen te estu d o trata das ex p eriên cia s d e escu ta d e um a v o z interior d e 3 0 h om en s e m ulh eres adu ltos q u e n ão são santos n em têm d iag n ó stico d e p sico se.
M étodo N este estu d o participaram 3 0 in d iv íd u o s, todos e le s referindo ouvir v o z e s. 15 foram p esso a lm en te sele c c io n a d o s p ela autora e o s restantes 15 foram tirados à sorte de entre 5 0 p e sso a s que responderam a um q u estion ário sobre ex p eriên cia s de o u v ir v o z e s, o qual tinha sido en via d o p e lo correio a 2 0 0 p e sso a s q u e con stavam d e um a lista de en d ereço s das áreas p sic o ló g ic a e ed u ca tiv a da C alifórn ia. A s ex p e riên cias d os in d ivíd u os foram exp lorad as d e um a m aneira delib eradam nente naturalista, que p erm itisse a em erg ên cia d o s m ais diver so s a sp ectos co m o m enor risco p o ssív e l de con tam in ação por parte d o observador. A m inha particular in ten çã o era exam in ar em profun d id ad e a relação p o sitiva entre as ex p eriên cia s de escu ta d e v o zes interiores e as form as de vid a exterior das p e sso a s n essa s co n d içõ es.
C ategorização N o sen tid o de defin ir algu m as ca teg o ria s, foram seleccio n a d o s 9 in d ivíd u os que co n stitu íssem um a am ostra representativa d os 30 in d iv íd u os a en trevistar - e cada um d e le s fo i en trevistad o duas v ezes. E sta selecçã o abrangeu variadas ex p eriên cia s de v o z e s interiores, que 144
ocorriam nas m ais d iversas circu n stân cias, e toda um a vasta gam a d e o cu p a çõ es p r o fissio n a is, n ív e is d e ed u ca çã o , ren d im en tos e c o n ó m ic o s e estilo s de vid a. O m aterial resu ltan te fo i an alisad o p ela autora e por um c o le g a p o ssu id or d e va sta ex p eriên cia na a v aliação d os d ad os de en trevistas su b jectivas. C ada um d e n ó s leu , separadam ente, as trans criçõ es literais das en trevistas, em paralelo co m as m inh as n otas sobre o s resp ectiv o s pad rões d e en to ação e d e silê n c io s, e d ep o is reu n im o-n os para confrontar o s n o sso s ach ad os. H avia algu m as áreas d e c o n cord ân cia m u ito ev id en te, e o n d e surgiam d ú vid as e in certezas v o ltá m os directam en te às tran scrições e gra v ações para escla recim en to. D ep ressa com eçaram a em erg ir agrup am entos bastante n ítid os d e ti pos de exp eriên cia d e v o z e s interiores. D as prim eiras 9 en trevistas ressaltaram 3 categorias p rin cip ais, qu e p assám os a usar co m o referên cia para a an á lise d os dad os das en tre vista s seg u in tes, apurando-as e red efin in d o-as à m ed id a qu e o estu d o p rossegu ia. E ssa s 3 categ o ria s eram as segu in tes: 1. E xp eriên cias d e v o z e s in teriores qu e revelam partes fragm en tá rias do Eu; 2. E xp eriên cias de v o z e s in teriores caracterizadas por um d iá lo g o proporcionador d e orien tação para o crescim en to p esso a l do indivídu o; 3. E xp eriên cias d e v o z e s interiores qu e abrem can ais em d irecção e para lá d os n ív e is su p eriores d o Eu.
Três estudos de caso O s estu d os d e ca so q u e se seg u em in clu em um representante por cad a um a das três categ o ria s a cim a d escritas. A s id en tid ad es d os protagonistas foram alteradas para acautelar o seu anon im ato. 1. E xperiências de vozes interio res que revelam p a rtes fra g m e n
tárias do Eu
E ric é um p rofission al lib eral d ip lo m a d o , d e 33 an os d e idade, casad o e pai d e d ois filh o s. T en d o estad o anteriorm ente em p regad o n o sector da adm inistração e g e stã o , está agora d esem p regad o e v iv e co m 145
a m ulher e o s filh o s em ca sa d os sogros. C o m eço u a estudar n o intuito d e vir a ser p rofesso r e está tam bém a tirar um cu rso na área da in terven ção so cia l. A sua d ificu ld a d e em em p en h ar-se nu m a carreira, e bem assim no su sten to da fam ília , su gere q u e se en con tra ainda fragm en tad o em áreas fu n d am en tais da sua vida. E ric referiu que a sua v o z interior tinha con trole sobre determ in a das situ a çõ es, co m o fora o ca so do ab an don o d o seu ú ltim o em p reg o - um a v e z q u e h a v ia su b m etid o a sua liv re von tad e à v o z.
“Fui absolutamente uma vítima da coisa. Tinha acabado de reclinar-me no sofá e a coisa [a voz interior ] fez-m e o que fez, sem que eu tivesse voto na matéria. Eu era mais um que ela possuía.” A s ex p eriên cia s de E ric con d u ziram -n o num a d irecção p o sitiv a , em b ora n eg u e q u e a v o z interior seja um a parte de si m esm o . Por v e z e s con testa a o rien tação q u e ela lh e dá, m as tem um a fo rte sen sa çã o d e qu e a v o z acab a por ter a ú ltim a palavra em tudo.
“Tinha chegado ao fim de algumas relações que tornavam a rea lidade negativa, mas não tinha a coragem necessária para acabar com elas. Estava eu embrenhado na situação, quando uma segunda voz se destacou da minha voz e disse coisas que destruíram a relação. Ou seja, ela [a voz interior] acabou com a relação, o que era a coisa ao mesmo tempo mais adequada e mais saudável que podia acontecer. Eu, na minha personagem individual, não sabia o que fazer e então a voz en carregou-se disso.” Isto su gere fo rtem en te um a ex p ressã o d e partes fragm entárias da person alid ad e d e E ric - e esta fragm en tação p arece estar a co n d u z i d o n o sen tid o da integração. 2 D iálogo p ro p o rcio n a d o r de o rien ta çã o p a ra o crescim ento
p esso a l
R uby é um a ex -co n su lto ra p ed a g ó g ica , d e 3 8 anos d e id ad e, casada. N este ú ltim o ano, aban donou a sua a ctivid ad e de con su ltad oria e p assou a d ed ica r-se à pintura. 146
“E a minha voz interior que me diz quando pintar, quando é o momento indicado ou não e quando seria infrutífero fazê-lo. E fo i a minha voz interior que me direccionou para abandonar a minha profissão e passar a fazer o que estou a fazer na pintura.” E d e notar q u e a tón ica está aqui n o d iá lo g o co m a v o z interior, m ais d o qu e na su b m issã o aos seu s d itam es, co m o era o ca so d e E ric.
“Farto-me de conferir o que faço quando estou a pintar. Na Prima vera passada, ofereceram-me uma oportunidade de promoção ao lugar de consultora. À primeira vista pareceu-me uma possibilidade tentadora, mas quando a submeti à apreciação da minha voz, ela disse-me redon damente que não, que isso iria atravessar-se no caminho da minha pin tura [...], que me roubaria tempo para pintar, de modo que o que eu acho é que ela [a voz interior] só tem querido orientar-me na direcção do meu propósito inicial, que era pintar.” A virag em p rofissio n a l d e R u b y é um a resu ltan te directa das suas exp eriên cias d e um a v o z interior. R ep are-se na su a frase “quando a subm eti à aprecia ção da m inha vo z”. R ub y e n v o lv ia -se em d iá lo g o co m a v o z , u san d o-a activam en te co m o g u ia na lib ertação d e en ergia criativa; isto é m u ito d iferen te da resign ação d e E ric ao s d itam es da sua v o z interior. 3. C anais em direcção e p a ra lá dos níveis sup eriores do E u R ob é um escritor e co n selh eiro espiritu al d e 63 an os, p ai d e 3 filh o s adu ltos. P erd eu um quarto filh o , por d o en ça súb ita, há 2 4 anos atrás, perda q u e levaria m u ito tem p o a superar. R ob sen te qu e a paternidade fo i a ex p eriên cia m ais gratifican te e a m aior prova de hu m ild ad e da sua vid a, e q u e o s seu s 38 anos d e casa m en to o en ri q u eceram . N aturalm en te, tudo isso deu a R ob a so lid e z n ecessária e o sen tim en to de se encontrar p rofun dam ente en raizad o na vida. O seu sistem a d e cren ças fe z co m q u e e le p e rceb esse as su as v o z e s interiores co m o “um nível m ais pro fu n d o do m eu se r” . P assar por essa ex p eriên cia viria a con stitu ir um a parte im portante da sua vid a, no 147
m om en to em q u e term in ava o d ou toram ento em T e o lo g ia e se em p e nh ava nu m trabalho n otá v el p ela sua natureza abn egada e não v io lenta. F o i d esta m aneira q u e e le d escrev eu um a ex p eriên cia que tev e aos 33 anos:
“Lembro-me de que tudo aconteceu durante o Movimento dos Direi tos Cívicos, quando me encontrava no Mississipi, em 1961, fazendo parte de um grupo de visita a Jackson, onde havia os Cavaleiros da Liberdade. Éramos um grupo de 40 a 50 pessoas numa sala de uma Universidade para negros, quando começaram a pedir 7 ou 8 voluntários para ir ao restaurante do aeroporto, o que significava ficarem sujeitos a ser presos e levados para a cadeia. Eles precisavam de um Pastor protestante branco, e pediram-no por duas ou três vezes. Estavam quase prontos para sair quando Rabbi, o chefe da delegação, disse: ‘Bem, ainda não conseguimos arranjar um Pastor branco.’ Foi então que eu ouvi a voz dizer: ‘Bem, acabaram de arranjar um’ - e esse um era eu. Fiquei tão surpreendido por ser o escolhido, que repeti em voz alta o que a voz me dissera. Ela vinha de uma parte muito profunda de mim mesmo. Eu ouvia e, acto contínuo, repetia em voz alta o que acabava de ouvir... Não me sentia muito incomodado com isso. Afinal de contas, era o que eu queria, era aquilo em que acreditava e era o que eu, no mais profundo do meu ser, desejava fazer. Nunca me senti perturbado, des contente ou descontrolado por aquilo que tinha dito, simplesmente sur preendido. ” R o b sen te um a d im en são espiritual, q u e d efin e co m o “o Eu fa zen d o p a rte de um pro cesso m ais vasto ” , em acçã o nas suas exp eriên cias de
v o z e s interiores. E ncara o fen ó m en o c o m o estan d o estreitam en te rela cio n a d o co m a in tu ição, m as sem pre cien te d e q u e as suas ex p eriên cia s d e ou vir v o z e s têm con stitu íd o, sem e x c e p ç õ e s, um a parte da sua vid a e do seu ser esp iritu ais. Para R ob , há sem pre um elem en to de von tad e e d e esco lh a n essa s ex p eriên cia s. S egu n d o ele, sem pre que d e cid e esta b elecer con tacto co m a v o z interior, a oração e a m ed itação são um a grande ajuda. R ob tam bém tem co n tacto s co m a v o z quando não o s procura deliberadam ente, m as a in ten ção, n o entanto, é sem pre um a sp ecto im portante da sua relação c o m a v o z.
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R esum o T o d o s os in d iv íd u o s da C ategoria 3 praticam um a form a regular qualquer de m ed itação e exp rim em um p rofun do sen tim en to d e c o n e xão espiritu al, em virtude das suas ex p eriên cia s d e um a v o z interior. O seu sen tim en to d e co n v icçã o é m u ito sem elh an te ao qu e A rbm an (1 9 6 3 , 1 970) d e sc rev e qu and o trata d e id ên ticas ex p eriên cia s em m ístico s. É p o ssív e l q u e os in d iv íd u o s q u e cab em nesta categoria tenham atingido um certo n ív el d e ex p e riê n cia m ística q u e abrange um co n tex to au d itivo e qu e co n d u z a um a acção p o sitiv a e abnegada, co m o a atrás descrita n o ca so d e R ob .
Três reacções ao despertar espiritual A ssa g io li (1 9 8 6 ) sub lin ha três r ea cç õ e s ao despertar esp iritu al, que vão resp ectivam en te a par co m cad a um a das três categorias d e e x p eriên cias de v o z interior em erg en tes d este estu d o. D escrev e-a s em term os de n ív e is d e en ergia e d e orga n iza çã o fa ce a exp eriên cias extraordinárias. S eg u n d o esta c o n c e p ç ã o , as en ergias su p ercon scien tes actuam no in d ivíd u o d e acord o c o m o s n ív e is d e organ ização a que e le , ou ela é cap az d e as receb er e integrar. A ssa g io li ob serva qu e um a saíd a p o ssív e l d e um a exp erên cia e x traordinária é essa m esm a ex p eriên cia n ão con d u zir a um n ív el m ais elev a d o de organ ização. N e ste c a so , a ex p eriên cia é m uitas v e z e s p en o sa e o in d ivíd u o p o d e n ão recon h ecer a sua origem tran sp essoal. A ev o lu çã o p o sitiv a d este tip o d e ex p eriên cia é p od er con d u zir o in d iv íd u o ao s degrau s seg u in tes n e cessá r io s a um a in tegração m ais plena. E sta ideia vai d e par co m a C ategoria 1 d o n o sso estu d o, na qual as exp eriên cia s d e um a v o z interior rev ela m partes fragm entárias do E u . P o r e x e m p lo , E ric a in d a n ã o tin h a r e c o n h e c id o a o r ig e m tran sp essoal das suas ex p eriên cia s d e v o z interior, m as ela s co n d u zia m -n o , a tod o o m o m en to , à reu n ião d os vários fragm en tos d e si m esm o: andava em b u sca d e u m a carreira q u e reflectisse o s seu s talen tos e que, ao m esm o tem p o o aju d asse a sustentar a fam ília; nu nca fica v a sa tisfeito co m o trabalho q u e tinha m as, através das suas 149
ex p eriên cia s de ou vir um a v o z , criou um certo co m p ro m isso d e e n contrar um trabalho q u e p u d esse reflectir a sua person alid ad e. A segu n da ev o lu çã o p o ssív e l das ex p eriên cia s extraordinárias é, segu n d o A ssa g io li, m en o s en érg ica e im p lica um a neutralização tem porária d os padrões habituais da p erson alid ad e. O que perm an ece é m u ito im portante: um m o d elo ideal e um sen tid o director de q u e o in d ivíd u o se p od e servir para co m p leta r a transform ação seg u n d o o s seu s próprios m éto d os in ten cio n a is. É p recisam en te este sen tid o d irec tor o qu e n ós en con tram os n o s in d iv íd u o s integráveis na n o ssa C ate goria 2 d e exp eriên cia de um a v o z interior, na qual se esta b e lec e um d iá lo g o propiciador de crescim en to e d e se n v o lv im en to àq u ele que o u v e a v o z. A s ex p eriên cia s de R u b y, por ex em p lo , guiaram -na na d irecção da m udança de carreira para se tom ar pintora. A terceira p o ssib ilid a d e d e e v o lu ç ã o é, seg u n d o A ssa g io li, para um a m ais elev a d a integração da p erson alid ad e, em que o in d ivíd u o sofre um a perm anente tran sform ação da sua vid a em resultado da exp eriên cia. E ste tipo d e in tegração é raro e p o d e com parar-se à n o ssa C ategoria 3 de ex p eriên cia s d e um a v o z interior. O s que estão abran g id o s por esta categoria en co n tra m -se integrad os e abertos aos seu s E u s m ais elev a d o s, em virtude das suas ex p eriên cia s, e passam por um a tran sform ação p erm anen te nas suas vid as. N o n o sso estu d o, esta transform ação perm anente a sso c ia v a -se ao serv iço abn egado - d e se n v o lv er a ctivid ad es que não trazem q u aisq uer b e n efício s fin an ceiros n em qualquer gratificação aparente para o ego.
Um curriculum interior E stes ach ad os su g erem a e x istê n c ia de um a ed u ca çã o interior con tín u a, que tem a v o z interior por m estre. A lsch u ler (1 9 8 7 ) fe z um estu d o d e várias p erson alid ad es relig io sa s q u e passaram por ex p e riê n cias d e ou vir v o z e s interiores, e p ostu lo u a ex istên cia de um curriculum interior. A s exp eriên cias relatadas por in d ivíd u os da n o ssa C ategoria 3 (em qu e se abrem canais em d irecção e para lá d o s n ív eis m ais e le vad os d o Eu) m ostravam algu m as sem elh an ças co m este curriculum interior. E m prim eiro lugar, seg u n d o A lsch u ler, o con tacto co m a v o z interior p õ e em cau sa as cren ças anteriores do in d ivíd u o a resp eito da 150
realidade. D ep o is, o in d ivíd u o entra n u m p r o c esso d e instrução in ten siv a , que p o d e in clu ir p eríod os d e iso la m en to . O ú ltim o p a sso do curriculum co n siste na “ u n ião”, caracterizad a por um a m ais co m p leta id en tificação co m e sse outro m u n d o, um a v ia g em através d o s céu s e d os in fern os, e um ca sam en to espiritu al co m o M estre interior. T o d o s a q u eles qu e passaram por este n ív el d e ed u ca çã o interior se puseram em m archa para m issõ e s d e u n ificação n o m u n d o exterior: o c o n h e cim en to que têm do “lad o d e lá” é tão n ítid o e tão forte q u e são ca p a zes de fazer co m qu e o “ lad o d e c á ” se lh e a sse m e lh e m ais estreitam en te. M u ito em b ora n enh um d os in d ivíd u os d este estu d o se referisse con cretam en te a este n ív el d e ex p eriên cia (um curriculum de aprend izagem interior), a q u eles qu e s e en glo b a v a m na C ategoria 3 - a m ais integrada - estavam e n v o lv id o s firm em en te em a ctivid ad es abn egadas. E m certos c a so s, e s s e e n v o lv im e n to já ex istia antes do ap arecim en to das v o z e s, m as d eu -se sem p re um a in ten sifica çã o d esse e n v o lv im e n to d ep o is d e ela s aparecerem . E stes in d ivíd u os estavam em con tacto co m a lg o qu e tran scend ia a su a in d ivid u alid ad e.
Bases para uma futura investigação E stes achad os su gerem qu e o s p sicoterap eu tas farão b em se tom a rem em con sid era çã o um a gam a m u ito alargada d e p o ssib ilid a d es sem p re que um clien te lh es refere ou vir um a v o z interior. Entre essa s p o ssib ilid a d es serão d e in clu ir p r o c esso s tão díspares co m o a v o z fragm entada, a d isso cia çã o p sicó tica e integrada, a p ercep ção extra-sen so ria l, a in tu ição, a v o ca çã o e o despertar espiritu al. A s três c a tegorias em erg en tes d este estu d o pod erão forn ecer um p on to d e par tida e um m apa das p rin cip ais q u estõ es a exp lorar no fen ó m en o das v o z e s interiores. P od erão con stitu ir ainda as b a ses d e um a futura in v estig ação nu m a ex p eriên cia tão falad a m as tão p o u co con h ecid a. F in alm en te, este estu d o p od e ajudar a d issip ar o estereótip o vu lgar seg u n d o o qual a v o z interior é um a prerrogativa d e san tos e de p e sso a s d iagn osticad as co m o p sicó tica s e , d e sse m od o, estim u lar a in v estig a çã o n o q u e resp eita ao seu e fe ito p oten cia lm en te libertador das n o ssa s cap acid ad es hu m anas. 151
Vozes, religião e misticismo A a d van M arreio e T o n van d er S ta p “Para apreender a verdade da vida, é preciso silenciar as vozes exteriores." (E. Drewermann) O m isticism o é antes d o m ais um a exp eriên cia. A p esar de as d es criçõ es d e que d isp o m o s estarem in ev ita v elm en te m arcadas p elo m o m en to h istórico e cultural em q u e surgiram , todas elas com partilham um a afirm ação d e fu n d o, ou seja, q u e o ob jecto da exp eriên cia não é um a m era parte da realid ad e, antes é, em si m esm o , a própria realidade na sua totalid ade e na sua un idade. O su jeito da exp eriên cia m ística acredita q u e está em co m u n ica çã o co m um reino que abarca tudo o qu e existe; um reino q u e n ão está separado da realidade em si m esm a m as que não é totalm en te co n h ecív el através da percep ção vulgar. E ste rein o p arece revelar ao su jeito um a verdade a u to -ev i dente, para lá dos lim ites da razão e d os sen tid o s, e que representa o p on to sup rem o d e todas as co isa s. D esd e o s p rim órd ios d e todas as r elig iõ es que o m isticism o pre ced e tudo o resto: é im p o ssív e l co n ceb er qualquer form a de religião — seja qual for a cultura d e o rig em — que nasça sem o suporte de um a exp eriên cia m ística. O v e lh o X in to ísm o jap on ês b a seia -se na e x p e riên cia do d iv in o na natureza; o B u d ism o surge no m om en to da ilu m in ação espiritu al do Buda; o C ristian ism o surgiu d os en con tros in d ivid u ais das p e sso a s co m D eu s na form a de um ser hum ano, Jesus d e N azaré. E m qualquer d os c a so s, a exp eriên cia m ística acon teceu prim eiro: só no C ristian ism o se lh e su ced eu um a doutrina (form a estrutural dentro d e um a dada so cied a d e) e c ó d ig o s de m oralidade coeren tes. M uito em bora, dada a natureza d o seu ob jecto, a exp eriên cia m ística não seja em si m esm a a c e ssív e l à ex p lica çã o racional, tam bém não está em si m esm a em con trad ição co m as p oten cialid ad es da R azão. P or m uita qu e seja a estim a da n o ssa so cied a d e p ela R azão, não é 152
assim tanta q u e todas as ex p eriên cia s qu e estão para lá d os h o rizo n tes racionais sejam au tom aticam en te rejeitadas co m o n ão reais. A o lo n g o dos sécu lo s, a O riente e a O cid en te, tem h avid o m ú ltip las ten tativas de encontrar um a b a se filo s ó fic a sistem á tica para a ex p eriên cia m ís tica. T a lv ez o e x em p lo m a is b em co n h ecid o seja a E sco la d e B u d ism o de K y o to , n o Japão, o n d e a secu lar tradição d o B u d ism o Z en se casa co m a herança filo só fic a o cid en tal. N o sécu lo XIII, M estre E ckhart fe z -se notar entre a q u eles q u e, n o C ristian ism o, situam a su a e x p e riência m ística n o se io d e um a referên cia teo ló g ic a e filo só fic a . P orém , seja qual for a cultura, to d o s o s m ístico s su b lin h am in sis ten tem en te que a ex p eriên cia em si p erm an ece in a cessív e l à racion a lização e que é, ao m esm o tem p o , in ex p licá v el e in co m u n icá v el. Isso s ig n ific a , n e c e ssa r ia m e n te , q u e o c o n te ú d o d e ssa e x p e r iê n c ia é in verificável e q u e só pod erá ser co n h ecid o por q u em tiver p ercep çõ es sim ilares e por q u em estiv er aberto e recep tiv o à exp eriên cia m ística. E sta característica d e in v erifica b ilid a d e através da razão é com p arti lhada por várias outras p e rcep çõ es hu m anas fu n d am en tais q u e ten d em a ser m ais bem a ceites q u an d o se exp rim em na lin g u a g em corp oral ou poética. O ob jecto da ex p eriên cia m ística - a ap reen são da realid ad e co m o um a unidade v iv a e sig n ifica n te - tem na trad ição relig io sa ocid en ta l o n o m e de D eu s, e tem tid o sem p re um carácter p esso a l. E sta p erso n ifica çã o da R ealid ad e S u p rem a n ão é ev id en tem en te e x c lu siv a da cultura o cid en tal, m as a v ersã o q u e d ela en con tram os n o C ristian ism o p od e ser seg u id a d e sd e o m o n o teísm o ju d a ico . D e acordo co m este m o d elo , assum ir a e x istê n c ia d e um D eu s co n d u z à cren ça d e q u e E le se dá a con h ecer às p e sso a s e q u e estas O d everão procurar; d aq u i se com p reen d e qu e este D eu s se m a n ifeste através da fala. A o lo n g o d e toda a B íb lia Judaica en co n tra m o s D eu s d irig in d o -S e aos h u m an os através da fala: ch am a -o s para lh es pedir con tas, entra em d iá lo g o co m e le s, escu ta o q u e e le s têm a dizer. A p esar da fecu n d ação recíp roca co m trad ições relig io sa s doutras fon tes (o N eo p la to n ism o , por e x e m p lo ), o C ristian ism o m a n tev e sem p re o seu co n c eito d e um D eu s p esso a l. C o n seq u en tem en te, a ex p eriên cia m ística cristã tem sid o sem pre exp ressa sob a form a d e um en con tro p esso a l. N a c o n sc iê n c ia 153
cristã popular, D eu s é um a realidade externa, ao m esm o tem p o que o m un do p ercep tív el, a C riação, é, d igam os a ssim , n ã o -D eu s. E sta d icotom ia, p ecu liar d o m o n o teísm o ocid en ta l, in flu en cia o s term os em qu e se p od e form u lar a ex p eriên cia m ística - que em si m esm a rem ete igu alm en te para essa d ico to m ia . D aqu i o cu rioso d ilem a qu e se apre sen ta ao s m ístic o s o cid en ta is e q u e é ab so lu ta m en te estran h o ao B u d ism o, por ex em p lo . U m a v e z q u e n o B u d ism o a R ealid ad e Suprem a n ão se caracteriza por um D eu s p e sso a l, a h ip ó tese de essa realidade se exp rim ir através da fala é in co n ceb ív el. R estrin g im o -n o s aqui à form a m ais elev a d a do m isticism o bu dista, n om ead am en te ao B u d ism o Z en, q u e não dá azo a qualquer tipo d e escu ta de v o z e s. C om certeza q u e o M estre Z en exp erim en tad o sab e que o s seu s d iscíp u lo s p od erão, o ca sio n a lm en te, ter a im p ressão que o u v em v o z e s, e com p reen d e q u e e ssa s v o z e s p od em ser tão co n v in c en te s que o d iscíp u lo se ach e ca p az d e id en ti ficar o ex a cto lugar de on d e p rovêm o s so n s. M as o M estre sab e que, co m o a co n tece na p ercep ção de im agen s invulgares ou noutras e x p e riên cias p aranorm ais, essa escu ta de v o z e s fa z sim p lesm en te parte de um a fa se e sp e c ífic a por on d e d ev e passar o d iscíp u lo n o d ecu rso do seu treino d e m ed itação. O M estre saberá aconselhar q u em quer que se depare co m e ssa s ex p eriên cia s a m anter-se calm o e con cen trad o e, sobretudo, a n ão dar qualquer sig n ifica d o ao fen ó m en o . O s M estres Z en co n tem p orân eos ex p lica m q u e essa s p ercep çõ es sã o de origem sen sorial e são libertadas p elo in co n scien te. A c o n v ic ç ã o seren a co m que estes M estres orientam o s seus d iscíp u lo s entronca, p rovavelm en te, na secu lar fam iliarid ad e desta E sco la co m o m isticism o . C o m b ase na sua lon ga ex p eriên cia histórica, eles sabem o que é m ais útil aos seus d iscíp u lo s na v ia da ilu m in ação espiritual, porque estã o fam iliarizad os co m o s o b je ctiv o s e co m o s m eio s de o s atingir. T udo isto é m u ito diferen te da tradição cristã, na qual a exp eriên cia m ística tom a, m uitas v e z e s, a form a de um d iá lo g o co m um D eu s que fala. O C ristian ism o, em geral, tem -se notab ilizad o p e la d esco n fia n ça com qu e encara tod as as form as de exp eriên cias in vu lgares que pa recem afectar o m ístico , co m o seja o êx ta se, o falar lín g u a s, a le v i tação, etc., m as tem -se m ostrado m uito m en os reticen te perante as 154
v isõ e s e a escu ta d e v o z e s, d esd e qu e esteja n itid am en te assegu rad a a sua p ro v en iên cia d e D e u s, d e Jesus ou d e qualq uer outra figura santa, c o m o a V irg em M aria. Para apurar se qualq uer d essa s v o zes provém realm en te d e um a au tên tica fon te d iv in a , a Igreja C ristã d e sen v o lv eu u m a tradição esp e cia l, co n h ecid a por Ju lgam en to d o s E s píritos, qu e essen c ia lm en te é um a e sp é c ie d e teste d e saúd e p sic o ló g ic a co n d u zid o p elas autoridades eclesiá stica s. O s m ístico s con trib u í ram m uitas v e z e s para este p r o c esso d e a v alia çã o, ao d escrev erem as suas próprias ex p eriên cia s. A ssim , o m ístico in g lês Julião d e N o rw ich d eclarou q u e o sen tid o d e co n v icçã o interior era em si m esm o um a garantia da au ten ticid ad e das in tu ições m ística s. D e igu al m o d o , Santo In ácio de L o io la a co n selh a v a o s seu s p aroq uianos a d ecid ir por si m esm o s, perante um a in sp iração m ística particular (q u e p o d e em si m esm a parecer m u ito sen sata ou m u ito exaltad a), se ela traz real m en te paz interior ou não. D e um m od o geral, o s critérios fu n d am en tais da Igreja para ju lgar da v alid ad e das ex p eriên cia s m ística s c o n sistem em determ inar se essa s exp eriên cia s já foram com partilhad as por outros. Q u ase sem e x c e p ç õ e s, o s m ístico s afirm am q u e têm ou tiveram v isõ e s ao m esm o tem p o qu e o u v em ou ou viram v o z e s, e este facto é m uitas v e z e s citad o co m o testem u n h o da sua c o n v ic ç ã o d e q u e essa s v o z e s sã o captad as interiorm en te. E m sum a, a v o z ex p lica a v isã o que é v ista p e lo o lh o interior. P or v e z e s, a v o z p o d e fazer afirm ações m isteriosa s, ob scu ras, q u e p rovocam um a reflex ã o sob re o seu sig n i fica d o . O utras v e z e s, a v o z p o d e dar a resp osta a um a antiga e pro funda r eflex ã o sob re a vid a, ou satisfazer, m elh or ou pior, d esejo s esp iritu ais in co n scien tes. O elem en to com u m d iz resp eito, in variavel m en te, ao q u e p o d e ch am ar-se o sig n ifica d o o cu lto da realid ad e (por e x e m p lo , a un idade da C riação co m D eu s, a natu reza d o m al ou a certeza de q u e, m esm o na sua so lid ã o , o in d iv íd u o é d irigid o e orien tado por D e u s). P or v e z e s, as v o z e s inspiram sen tim en to s d e profunda m á g oa por co isa s co m o o p eca d o e o sofrim en to, m as, quando isto a co n tece, a ex p eriên cia cu lm in a sem p re n u m irresistível sen tim en to d e bem -aven tu ran ça, qu e en tron ca na e x c e lê n c ia da realid ad e em D eu s. A ev o lu çã o d este p ro cesso d ep en d e da p red isp o sição do in d ivíd u o em 155
causa: em larga m ed id a, a inten sid ad e d o q u e lh e é transm itido é um a fu n ção do grau d e en v o lv im e n to p e sso a l n esta área d e exp eriên cia. M as, um a v e z alcan çada, a paz não m ais abandona o m ístico , que se n ota b iliza p ela sua lú cid a p ersp ectiva m oral e pela d efesa d e um a firm e v isã o op tim ista da vid a. E m resu m o, a escu ta de v o z e s im prim e n essa s p e sso a s um a n otável a u tocon fian ça, um a certeza serena q u e é verd ad eiram ente sentid a, e não um a m era crença con form e co m os en sin am en to s da Igreja. A s v o z e s o u vid as p e lo s m ístico s ten d em a exp rim ir-se na lin g u a g em da ép oca. A s exp eriên cias relatadas p e lo s m ístico s da Idade M édia, p or ex em p lo , estã o fortem en te m arcadas p ela s form as e estilo s de cu lto m ed iev a is. P arece ex istir tam bém um a lig a çã o estreita entre as estruturas so cia is dom in an tes e as form as d e ex p ressã o cultural de um dad o p eríod o. Para H ildegarda de B in g en , n o sécu lo XII, D eu s é o P rin cíp io O rganizador d o C osm os; p o d em o s aí descortinar um reflex o da b em organ izada so cied a d e dos H oh en stau fers (sécu lo s XII e XIII). E m m ead os do sécu lo XIII, em p len a era d o s trovadores, H ad ew ijch encara o m isticism o sob a form a d e um a nob re aventura, co m parti cular ên fa se na ex p eriên cia d o am or in co n d icion a l e da fid elid ad e absoluta. Santa C atarina de S ien a, n o sé c u lo XIV, en con tra-se centrada n o sofrim en to d e Jesus e, em con form id ad e, exp erim en ta a sua a sso cia çã o co m D eu s so b a form a de b ap tism o n o sangue de Jesus. P or vo lta do sécu lo XVI, o s fen ó m en o s m ístico s p arecem tom ar-se m ais m argin ais, surgind o já só relatos o ca sio n a is de v isita çã o divina através d e v o z e s e v isõ e s, em bora o s relatos que ainda aparecem con tin u em a revelar a m esm a m arca d e factores culturais e so cia is. N o sécu lo XIX, as m en sa g en s p assam a fazer parte d e aparições da V irgem M aria, d eixan d o d e referir-se às profundas v iv ên cia s e x iste n cia is com u n s a tod os o s m ístico s até aí, ten den do a restrin gir-se à ex p ressã o d e im perativos m orais - a p elo s e a v iso s que reflectem o sta tus quo, v eicu la d o s d ep o is por um clero con servad or em m eios h u m ild es, p eq u en os e fech a d o s sob re si próprios. N estas circu nstân cia s, a escu ta de v o z e s p assa a estar con fin a d a ao co n tex to das v isõ es relig io sa s e fica à m argem da b ase m ística profunda que de outro m o d o lh e estaria sub jacente. P od e d izer-se q u e esta atitude p revaleceu até aos d ias d e hoje: as v o z e s e as v isõ e s têm vin d o há m uito a ser 156
encaradas co m o ex p eriên cia s r elig io sa s elem en tares. A té certo p on to aceites dentro d este co n tex to , ela s são en caradas, p orém , co m o ten do apenas um sig n ifica d o in d iv id u a l, sem qualquer fu n ção dentro da so cied a d e - ao contrário d os grand es m ístico s d e outrora.
Uma perspectiva metafísica Ingrid Elfferich P od em interrogar-se a q u e p rop ósito um a g ero n tolo g ista co m o eu escrev e sobre m eta física, n u m liv ro q u e trata do fen ó m en o da escu ta de v o z e s. T u d o c o m e ç o u na U n iv ersid a d e, quando eu in v estig av a os m od os c o m o as p esso a s qu e sofriam um a perda im portante se orien tavam na procura d e um n o v o sig n ifica d o para as suas vid as. A s p esso a s q u e m elh or resu ltad o tinh am n este p ro cesso pareciam ter tido - c o m o ela s m esm a s d izia m — co n tacto co m a lg o m ais elev a d o . Era surpreendente verificar co m o e ssa s p e sso a s lid avam m u ito m ais fa c il m en te co m o s seu s p rob lem as qu and o tinham tid o o q u e se p od e cham ar um a ex p eriên cia tran scen d en te. N a m inh a activid ad e p ro fissio n a l tiv e ainda o p riv ilé g io d e lidar co m p esso a s n o seu leito d e m orte. C om o tem p o, fu i d escob rin d o qu e o m oribundo tem um a a g on ia m a is fácil e m ais tranquila quando p assou previam en te p ela ex p eriên cia d e atravessar a m orte. A lgu m as d essa s p e sso a s foram ca p a zes d e m e transm itir q u e estavam a ou vir v o z e s. N orm alm en te, id en tifica v a m e ssa s v o z e s co m o sen d o d e p e s soas que m orreram antes d e la s, a lg u ém qu e ela s con h eceram e am a ram , se b em qu e eu ten ha p len a c o n sciên cia d e qu e m u itos outros o u vid ores d essa s v o z e s n em sem p re fa zia m um a id eia tão clara da sua p roven iên cia. E stas exp eriên cia s lev aram -m e a procurar um sistem a d e referên cia s que fiz e s s e m ais ju stiça a tod os o s qu e o u v em v o z e s m as são p erfeitam en te sau d áv eis d o p on to d e v ista m en tal - ju stiça qu e n ão é feita p elas teorias p sic o ló g ic a s ortod oxas. E sta in v estig a çã o tem sid o inspirad a, p elo m en o s, por três tip os d e co n sid era çõ es. A prim eira é q u e, p elo m en os em algu n s ca so s, as 157
v o z e s transm item um a m en sa g em con creta, sã, q u e está em co n so n â n cia co m o s factos d o n o sso m un do v isív e l, e que traz m esm o in for m ação n o v a para e s s e m u n d o. E stas m en sa g en s co n têm m aterial qu e, tanto quanto n os é d ad o saber, não p od eria residir na co n sc iê n c ia da p e sso a qu e o u v e a v o z. A segu n d a é q u e essa s p e sso a s têm plen a co n sciên cia d e ou vir m en sa g en s q u e m ais n in gu ém ou ve; e ssa s p e s soas n ão falham no ch am ad o teste da realidade. O terceiro fa cto é que algu m as d essa s p e sso a s esta b e lec em um a nítida d istin çã o entre os seu s próprios p en sam en tos e as v o zes. A s v o zes pod em aparecer quando essa s p esso a s se en con tram co m p leta m en te ocup adas co m assu n tos co n cretos e, até, q u and o estã o em brenhadas a falar e a pensar para si m esm as. E stes três fa cto s n ão se ajustam ao m o d elo habitual de co m p reen são da escu ta de v o z e s, q u e d efen d e tratar-se d e um fen ó m en o intrap sic o ló g ic o . C arecem os d e um a n o v a h ip ótese e é fo rço so q u e reco n h eçam os essa n ecessid a d e. A q u eles qu e o u v em v o z e s sen tem -se em d ificu ld ad e quando eles ou aq u eles qu e lh es sã o p róx im o s n ão d isp õ em de um co n tex to de referên cia. A s co isa s p o d em to m ar-se ainda p iores se e le s adoptam um a teoria qu e lh es retire o p rotagon ism o. N este sen tid o, um a teoria alternativa pod erá aju d á-los a alcançar um m odus vivendi co m as suas ex p eriên cia s. A sim p les n o çã o de q u e o u vir v o z e s p o d e ser o resu ltad o d e um a p ercep ção q u e n ão ca b e à P siquiatria n em à P sic o lo g ia orto d oxas p o d e p roporcionar um a lív io con sid erável. A m ed id a q u e eu ia co n h ecen d o essa s p e sso a s e estu d an d o estes asp ectos, aum entava a m in h a co n v icçã o d e que a n o ssa c o n c ep çã o co n v en cio n a l do m un do e das p esso a s é, pura e sim p lesm en te, d em a siad o lim itada. M u itos outros cien tista s ch egaram a co n c lu sõ e s se m e lhantes e acabaram por se aventurar por áreas consideradas estranhas à sua p rofissão, na b u sca d e um a n o v a com p reen são.
Uma persp ectiva m ais vasta G ostaria d e propor um a p ersp ectiva m eta física que enquadre o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s num a v isã o m ais am pla do ex istir h u m ano no m undo. 158
Para co m eçar, gostaria d e ch am ar a terreiro d o is filó s o fo s h o la n d eses. O prim eiro, B erger, escrev eu um a introd ução à M eta física na qual afirm ava q u e o sig n ifica d o literal d e “M eta física ” é visar para além d e” ou “cam inh ar para lá d e” . A h ip ótese m eta física im p lica um a realidade por n íveis: um a realid ad e com p o sta por várias e en trelaçadas d im en sõ es tem p o -esp a ço qu e o s n o sso s sen tid os norm ais d o d ia-a-d ia não p od em apreender. O segu n d o filó so fo , P oortm an, su gere q u e a n ossa m en te ou esp írito tem um a en ergia própria q u e, nu m certo sentid o, é físic a . S en d o assim , p od eríam os adm itir q u e e ssa en ergia espiritual im pregn a por co m p leto o n ív el fís ic o da n o ssa ex istên cia . S egu n d o esta filo so fia , é p o ssív e l a ex istên cia d e p la n o s e d im en sõ es que rod eiam e interpenetram as n o ssa s vid a s físic a s, in flu en cia n d o-n o s por p r o c esso s ainda n ão totalm en te co m p reen d id o s. E sta persp ectiva m eta físic a su gere q u e, a um dad o n ív el da n o ssa c o n sc iê n cia, p o d em o s estar lig a d o s n ão apenas co m o m u n d o d o s v iv o s m as tam bém co m o m u n d o d os m ortos, o s qu ais p od erão ain da continuar a existir num corp o m a is subtil e n e ssa tal outra d im en sã o da reali dade. N esta p ersp ectiv a , a escu ta d e v o z e s p o d e en ten d er-se co m o um acto de co m u n h ã o co m seres h u m an os n o sso s sem elh a n tes, m as num plano d iferen te da realid ad e - co m o algu n s cla rivid en tes d izem ser ca p azes de aperceber. É p o ssív e l q u e um traum a em o cio n a l p o ssa rom per as fron teiras h ab itu ais d o n o sso cam p o d e ex istên cia , abrindo um a p assagem através da qual as v o z e s p roven ien tes d e outra d im en são p od em alcan çar a p e sso a aflita. O s clarivid en tes e o s clariau d ien tes afirm am , por v e z e s , q u e são realm en te ca p a zes d e “v er” essa s p assa g en s m as, d ad o q u e n ão se trata d e ex p eriên cia s v u lg a res, física s ou sen soriais, ta lv e z seja m ais correcto falar d e p ercep ção extra-sen sorial. N o en tan to, e n u m a p ersp ectiva m ais am pla, este s ex tra-sen tid os p od em p erfeitam en te ser o s sen tid os norm ais d e um m etaorgan ism o - organ ism o e s s e ev en tu a lm en te co n stitu íd o por um outro tipo de m atéria. * A este p ro p ó sito v e ja -se a S ec çã o “ C ard u m es, B an d o s e R e b a n h o s , in S held rake, R . (1996), A Ressonância Mórfica e A Presença do Passado - os Hábitos da Natureza, p p. 3 1 9 -3 2 5 .
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A n o ssa in v e stig a ç ã o , p orém , não se lim ita a e ste s d o m ín io s p a ra p sico ló g ico s; p od e vir a ser útil en veredar p e lo s d o m ín io s da físic a ou por um a in v estig a çã o sobre a natureza da co n sciên cia .
F ísica O s fís ic o s con tem p orân eos esfo rça m -se por fazer notar que a n o ssa p ersp ectiva da realidade é inadequada; as estruturas fu nd am en tais d o n o sso u n iverso v ê m -se m ostrando m uito m ais co m p lex a s do que n ós ju lg á v a m o s. C o m o d isse um físic o (C apra, 1982):
“A Teoria Quântica vem mostrando que as partículas subatómicas não são grãos de matéria isolados mas padrões de probabilidade, interconexões num tecido cósmico indivisível que inclui o observador humano e a sua consciência. A Teoria da Relatividade veio ajudar a compreender a vida deste tecido cósmico, ao revelar o seu carácter intrinsecamente dinâmico. A imagem do universo como uma máquina fo i superada por uma perspectiva de um todo dinâmico indivisível, cujas partes estão essencialmente interligadas e que só podem ser compreen didas como padrões de um processo cósmico." V ários outros físic o s con tem p orân eos, além d e C apra, têm tentado aplicar este pon to de vista da F ísica M oderna às áreas da saúde física , m ental e espiritu al (B o h m ,1 9 8 5 ; W o lf, 1986; H ayw ard, 1987; Z ohar, 1990). S egu n d o algu n s d e sses físic o s, o m isticism o - sobretudo o oriental - exp rim e a natureza da realidade m ais correctam ente do que as e x p lic a ç õ e s q u e n os transm item na esc o la , q u e tentam co n v en cer m o s d e qu e o m un do é con stitu íd o por en tid ad es co m p leta m en te in d ep en d en tes um as das outras e de que a n o ssa m en te está tam bém , de algu m a m aneira, separada do un iverso. Ora, as estruturas que p erce b em os n o esp a ço tridim en sional parecem , p e lo contrário, entrançadas na totalid ad e do u n iverso. O m o d elo h o lo g rá fico, por ex em p lo , é um a teoria d e vanguarda que se serve da m atem ática e da ló g ica para dem onstrar que o ch am ad o sobrenatural é , p rov a v elm en te, um a parte da natureza quotidiana. 160
N ão p o d em o s evitar a co n c lu sã o d e q u e p o d e h aver um a ordem transcendente, um p rin cíp io esp iritu al, co m um a in flu ên cia form ativa sobre a m atéria. É sig n ifica tiv o q u e a físic a esteja sen d o forçad a a recorrer à m eta física - um a p ersp ectiv a q u e p ressu p õe um a ord em do un iverso inteiram en te d iferen te da q u e é v eicu la d a p ela ciê n c ia tradi cio n a l. T a lv ez o s tem p os estejam m aduros para tom arm os c o n sciên cia das q u estõ es m eta físicas q u e se o cu ltam nas le is aparentes da natureza e para entrarm os em lin h a d e con ta co m um a versão da realid ad e que abarque n o v o s co n c eito s d e tem p o e d e esp a ço . M u itos físic o s pare cem h o je aceitar q u e a F ísica M od ern a tem im portantes im p lica çõ es nalgun s d os c o n c e ito s fu n d am en tais da P sic o lo g ia e da P siquiatria, pon do em qu estão as n o ç õ e s g eralm en te a ceites acerca d o E u, d os sen tim en tos, da m en te e da realid ad e*.
Investigação na área da consciência A té há p o u co tem p o , a C iên cia O cid en tal esta v a co n v en cid a d e que tod os o s a sp ectos da c o n sciên cia hu m ana se p od iam ex p licar através das in teracções fisio ló g ic a s d o s p r o c esso s celu la res cerebrais. H oje, p o r é m , h á u m a c o n v ic ç ã o c r e s c e n te d e q u e e s ta s a c tiv id a d e s electroq u ím icas se p od em ex p lica r atrib u in d o-as a um p rin cíp io esp i ritual au tón om o. G . R . T aylor, in v estig ad o r d o cérebro, d á-n os in ú m e ro s e x e m p lo s d e p e r c e p ç õ e s q u e su r g e m n a a u sê n c ia d e u m a estim u la çã o sen sorial co m p rov á v el e c o n c lu i qu e a a ctivid ad e cere bral, só por si, é in su ficien te para ex p lica r a d in âm ica da co n sciên cia . A n o ssa c o n sciên cia p arece ter, às v e z e s , u m a en ergia própria ao seu d isp or, q u e se d istin g u e n itid am en te da q u e caracteriza a activid ad e cerebral norm al o b serv á v el. A lg u n s cien tista s q u e in v estig a m a m en te hum ana encontraram in d íc io s m uito segu ros d e qu e a m en te hu m ana se p od e encarar m elh or co m o um prin cíp io espiritu al lig a d o a outras d im en sõ es da realidade,
* Ver Sheldrake, R. (1996) 161
isto é , co m o um a en ergia q u e ao lo n g o da n o ssa vid a físic a é, p e lo m en os em parte, in d ep en d en te da activid ad e cerebral. O psiquiatra am ericano S tan islav G r o f le v o u a ca b o um a in v estig ação d e trinta an os sob re as alterações d o esta d o da co n sciên cia , ten do contrib uíd o, em larga m ed id a, para o estu d o das cham adas ex p eriên cia s transp esso a is. G r o f d e se n v o lv eu um m éto d o para penetrar n os n ív eis m ais profun dos da c o n sciên cia , ten do v erifica d o qu e, a estes n ív eis, a n o ssa m en te p o d e entrar em co n tacto c o m um a realidade e sp e cífica , in a ces sív el à n o ssa m en te norm al n o esta d o de v ig ília . N o fu n d o, G rof repete m uitas das id eias da F ísica M oderna, encarando as alterações do estad o da c o n sciên cia c o m o fo n tes d e in form ação sobre a natureza do un i v erso e da m en te hum ana. A s su as o b serv a çõ es sobre a p sic o se são particularm ente im portantes n o q u e resp eita à escu ta de vozes:
“Todas as definições ocidentais de psicose acentuam a incapacidade do indivíduo para estabelecer a distinção entre a experiência subjectiva e a percepção objectiva do mundo. Na definição de psicose, a ideia chave é o conceito de teste da realidade.” A ssim , to m a -se claro q u e o c o n c e ito d e p sic o se d ep en d e, e sse n cia lm en te, d o s c o n c e ito s c ie n tífic o s correntes acerca da realidade. A P siquiatria tem d efin id o , trad icion alm en te, a saúde m ental co m o um estad o d e con cord ân cia p ercep tiv a e co g n itiv a co m a co n cep çã o m eca n icista d o m undo. S e a ex p eriên cia q u e o in d iv íd u o tem d o u n iverso se afasta m uito d este m o d elo , to m a -se um indicador, em si m esm a, d e um p ro cesso p a to ló g ico do cérebro ou de um a d oen ça. D ad o qu e o d ia g n ó stico de p sic o se é insep arável da d efin içã o de realidade, en tão qualquer m u d an ça d e fu nd o n os paradigm as cie n tí fico s qu e altere o c o n c eito d e natureza da realidade terá um a in flu ên cia crucial no d ia g n ó stico de p sic o se . C on clu i G rof (1985):
“Segundo o novo modelo que aqui se apresenta, as matrizes funcio nais que têm valor instrumental nos episódios psicóticos são parte inte grante da personalidade humana. O problema central da compreensão da psicose é, pois, identificar os factores que distinguem os processos psicóticos dos processos m ísticos.”
162
A experiência m ística “ M ístico ” sig n ifica o q u e está em com u n h ão directa co m a rea li dade absoluta, ou seja, q u e ex p erien cia a un id ad e do u n iverso. U m a exp eriên cia m ística é a p e rcep çã o, para lá do q u e é c o m u n icá v e l, de um a realidade sup erior e é a v ia m ais im portante por o n d e o s seres hum anos p od em captar en erg ia s d e um a fo n te exterior a si m esm o s. A través d essa ex p eriên cia m ística p o d em o s co n clu ir qu e a n o ssa v isã o vulgar da realidad e é ap en as um a entre m uitas form as d e p ercep çã o. Por m eio d e forças origin árias doutra d im en são , p o d em o s ser trans portados para um p lan o m a is elev a d o e ch egar à co n v icçã o d e q u e a n ossa co n sciên cia é in d estru tível. P o d em o s entrar em co n tacto co m um a realidade q u e tran scen d e a qu e estam os h ab ituados a aceitar. Q uem p assa por estas ex p eriên cia s costu m a d escrev ê-la s c o m o e sta dos d e co n h ecim en to, m as e ste co n h ecim en to é d ifíc il d e reproduzir, dadas as lim ita çõ es d o n o sso estad o d e c o n sciên cia habitual; c o n se q u en tem ente, este n o v o co n h ecim en to n ão é trasm issível ao s outros seres hum anos. O im p acto p sic o ló g ic o da ex p eriên cia é evid en te: o con tacto directo c o m a u n id ad e do u n iverso co n d u z à c o n v ic ç ã o im ediata de qu e e x iste m m a is co isa s d eb a ixo do céu e em c im a da terra d o que aqu elas q u e a n o ssa filo so fia p od e im aginar. A versão da realid ad e q u e o s m ístico s têm está m uito p róxim a da que v em sen d o p rop osta p e lo s físic o s m od ern os. E m 1966, o p s ic ó lo g o L eSh an le v o u a ca b o um a ex p eriên cia altam en te reveladora; seleccio n o u 6 2 p r o p o siçõ es acerca da m aneira co m o o m u n d o fu n cio n a e escrev eu cad a u m a d ela s nu m cartão; m etad e d essa s p rop o s iç õ e s fo i fo rm u la d a p o r f ís ic o s (E in ste in , O p p e n h eim e r, B o h r, H eisen b erg, P lan ck ) e a outra m etad e por m ístico s (E ckart, A u rob in d o, V ivek an ad a). B aralhou o s ca rtões e d eu -o s, sem nen h u m a in d ica çã o de autoria da resp ectiv a frase, a um grupo d e p esso a s, em q u e um a parte tinha form ação e m F ísic a e outra parte form ação em D isc ip lin a M ística. Interrogados sob re a id en tid ad e d o autor d e cad a um a das p ro p o siçõ es, as p e sso a s d avam p alp ites q u e n ão iam a lém d e 60% de resp ostas certas. E ram m u ito grand es as sem elh an ças d e p o n tos d e v ista co n tid o s n essa s p r o p o siçõ es e as co n c lu sõ e s a q u e h aviam ch eg a 163
d o físic o s e m ístic o s sob re a natureza da realidade eram d em asiad o próxim as para se p od erem destrinçar co m segurança. U m n o tá v el ex e m p lo da c o n sciên cia d e um ex istir para lá da p siq u e in d iv id u a l é a e x p e r iê n c ia d o s m o m en to s q u e ro d eia m a m orte. A in v estig a çã o sob re a p ercep ção d o s m oribu ndos tem m ostrado que essa s p e sso a s p o d em passar por ex p eriên cia s id ên ticas às ex p eriên cia s d os m ístico s. P orém , a rev ela çã o m ais im p ression an te é , ta lv ez, a da natureza au tón om a, d in âm ica, da n o ssa m en te e da ex istên cia doutras d im en sõ es dentro d o n o sso u n iverso - rev ela çã o q u e tem sid o propor cion ad a p ela exp eriên cia d e p esso a s que estiveram clin ica m en te m ortas. N ã o há ex p lic a ç ã o cien tífica para o fa cto de essa s p e sso a s, após a ressu scita çã o , serem ca p a zes de d escrev er co m p recisão o s a co n teci m en tos q u e en v o lv era m o seu corp o m orto durante o tem p o em que n ão fo i ca p táv el qu alq uer reg isto de activid ad e cerebral. E m qu ase tod os os c a so s em q u e fo i p o ssív e l com provar in d ep en d en tem en te este facto, as p e rcep çõ es d o m orto co in cid ia m p on to por p on to co m os a co n tecim en to s reais. N ã o há qualquer ex p lica çã o sen so ria l para esta p recisão. A lém d isso , o s co n teú d o s d essa s ex p eriên cia s sã o m uito co n sisten tes entre si - m u ito m ais d o que se p od eria esperar se fo ssem um m ero produto d e cad a um d os cérebros isolad am en te. M u itos d os qu e passaram por e ssa ex p eriên cia estã o co n v en cid o s d e q u e tiveram o p riv ilé g io d e ver d e relance um a outra form a d e ex istên cia . O s m u itos cien tista s que estudaram este assu n to em profundidade têm ten d ên cia a supor qu e a ex p eriên cia de passar p ela m orte é um forte in d icad or d e q u e a m en te hum ana p od e estar a ctiva e co n scien te noutra d im en são da realidade, m esm o que não se v erifiq u e qualquer activid ad e cerebral. A c iên c ia co m o um todo não p o d e ignorar o s factos q u e estã o à n o ssa frente.
C onclusão A in v estig a ç ã o con tem p orân ea nas áreas da F ísica e da C o n sciên cia H um ana p arece confirm ar a v isã o m eta física d o m u n d o, n o m ea dam en te, q u e é p o ssív e l ao ser hu m ano transcender o seu ex istir físic o 164
e atingir outras d im en sõ es - q u e são tão parte da criação co m o o inundo v isív e l. E ntão, em qu e p od e esta p ersp ectiva m eta físic a ser útil à p esso a que o u v e v o z e s? A s van tagen s d esta p ersp ectiv a resid em , p o te n cia l m ente, n o fa cto d e ela prop orcionar o en sejo d e as v o z e s rep resen ta rem um fen ó m en o q u e tran scen d e a in d ivid u alid ad e d e q u em as o u v e. Este m o d elo c o lo c a as n o ssa s p ercep çõ es num co n tex to d e com p reen são m ais a m p lo, d e q u e um a das p o ssib ilid a d es é a cap acid ad e de esta b elecer e m anter o con tacto co m outros p la n o s d o ser. N o ca so das v o zes n ega tiv a s, p o d er-se-ia adm itir qu e a p e sso a está a lutar contra algo q u e ex iste d e verd ad e, m esm o qu e essa realid ad e n ão seja per ceb id a p elas outras p esso a s. E n tão, é n ecessá rio q u e o s ou v id o res de v o zes d e se n v o lv a m o p od er e a cap acid ad e m en tais n ecessá rio s para cortar co m e ssa s p ercep çõ es. A principal co n seq u ên cia p sic o ló g ic a d esta p ersp ectiva é a n e c e s sidade d e trabalhar o co n tex to das em o ç õ e s e d os traum as q u e não foram adeq uad am en te reso lv id o s no p assad o — sob retu d o n o ca so das v o zes n ega tiv a s. A harm on ia resu ltan te da aceita çã o d e si m esm o pode ser o m elh or escu d o protector quando se está con fron tad o co m essa s en ergias n ega tiv a s. A q u eles q u e receia m ser tom ad os por lo u c o s p e lo fa cto d e ou vir v o z e s, p od em encontrar um grande a lív io na sim p les m en ção d e qu e as suas ex p eriên cia s n ão sã o anorm ais, antes sã o com p artilh ad as por m uita g en te m en talm en te sau d ável. O pior q u e p o d e a con tecer a um ou vid or d e v o z e s é cair nas m ã o s d e alg u ém q u e ign ora estas co isa s e, por isso , encara co m o p a to ló g ico tod o e qu alq uer ca so d e escu ta de v o zes. P elo contrário, um p sic ó lo g o ou um psiqu iatra q u e co n h eça bem o p o ssív e l im p acto d e exp eriên cia s tran scen d en tes p o d e estar apto a ajudar o s outros n o cam in h o para um a sau d ável in tegração d essa s ex p eriên cia s, n u m p rocesso qu e irá en riq u ecer o sig n ifica d o das suas v id as. P recisa m os d e p roced er a um a in flex ã o d e p o n to s d e v ista q u e n os ajude a escla recer o fa cto d e v iv erm os nu m u n iverso co m p o sto por n ív e is d e realid ad e q u e se interpenetram m u tu am en te. O u vir v o z e s p od e até ajudar a p roced er a essa in flex ã o , d e v id o à riq u eza das 165
in fo rm a çõ es q u e essa s v o z e s p o d em veicu lar. A ju dados p e lo s próprios ou v id o res de v o z e s, p od erem o s vir a d escob rir as leis qu e regem a n o ssa cap acid ad e de sin ton ia co m outras d im en sõ es desta realidade esp a ço -tem p o .
A escuta de vozes e a parapsicologia Douwe Bosga E errado fazer g en era liza çõ es sob re as exp eriên cia s d e ou vir v o zes, c o m o se ela s fo ssem todas igu ais. U m a an á lise m ais co m p leta m ostra q u e a ex p ressã o “ou vir v o z e s ” é um sa co m u ito grande ond e cab e um a vasta gam a de exp eriên cia s m uito d iversas. U m a p esso a que não seja ca p az d e lidar co m e ssa s v o z e s acaba, geralm en te, por n ecessita r de ajuda p siqu iátrica, m as essa ajuda b a seia -se no p ressu p osto de que o clien te teria tudo a ganhar se as v o z e s d esa p a recessem por co m p leto . E sta p o siçã o tem vin d o a m udar a p o u c o e pouco: as p e sso a s estão a co m eça r a tom ar c o n sciên cia de q u e o verd ad eiro prob lem a não é tanto o facto d e se ou vir v o z e s m as, an tes, a incap acid ade de lidar co m ela s. Isso é particularm ente verd ad e na form a d e escu ta d e v o z e s co n h e cid a por clariaudiência - que está ligada aos d om ín ios da parapsicologia. C o m o o próprio term o su gere, a clariau d iên cia é um parente ch eg ad o do fen óm en o, m uito m ais con h ecid o , da clarividência. Para exem p lificar o tip o d e luz que a P arap sico lo g ia p o d e fazer sobre o fen ó m en o da escu ta de v o z e s, co m eça rem o s por tratar resu m id am ente o fen ó m en o da p ercep ção paranorm al em geral.
Percepção extra-sensorial A P a rap sicologia rela cion a -se c o m o estu d o da p ercep ção extra-sen sorial ou paranorm al. “Para” sig n ifica , n este co n tex to , “para lá d e ”; a p ercep ção paranorm al refere-se, en tão, à p ercep ção q u e v em 166
acrescen tar-se à p ercep ção vu lgar qu e se dá através d os c in co sen tid os físicos. O resu ltad o é qu e o s in d iv íd u o s p ossu id o res d este d om são cap azes, por m eio s ex tra -sen so ria is, d e ter a cesso a co n h ecim en tos sobre fa cto s do m un do qu e o s rod eia e sobre as exp eriên cia s doutras pessoas: v ê e m , o u v em ou sa b em co isa s qu e n ão lh es seria p o ssív e l percepcionar se co n ta ssem ap en as co m o s m eio s d isp o n ív eis através d os o lh o s, d o s o u v id o s o u d e q u a lq u er outro ó rg ã o c o n h e c id o . A p ercep ção extra-sen sorial d iv id e -se h ab itu alm en te em d ois grupos: telepatia e clarivid ên cia.
Telepatia- e clarividência A telepatia d e fin e -se c o m o a cap acid ad e d e obter in form ação sobre o con teú d o da c o n sciên cia dou tro ser (h u m an o ou an im al), sem a m ed iação d os c in co sen tid o s. O s co n teú d o s da c o n sciên cia sã o p en sam entos, m as tam bém sen tim en to s e e m o ç õ e s, ou seja, tod os aq u eles elem en to s que con stitu em a c o n sc iê n c ia hum ana. P orque e ste c o n h e cim en to se ob tém sem in term ed iação d os cin co sen tid os v u lgares, a corresp ond ente p ercep ção n ã o está con fin ad a p elo esp aço: as m en sa gen s telep áticas p od em atingir lo n g a s d istân cias. A clarividência é a cap a cid ad e d e obter in form ação sobre p esso a s, co isa s ou a co n tecim en to s se m a m ed ia çã o d os c in c o sen tid os. A d i ferença entre clarivid ên cia e telep atia resid e essen cia lm en te n o ob jecto do con h ecim en to: se o co n h ecim en to n ão d iz resp eito ao con teú d o da co n sciên cia doutro ser m as a a co n tecim en to s - qu e p od em ou n ão en v o lv er p e sso a s ou an im ais fa lam o s en tão d e clarivid ên cia. E stas p ercep çõ es d izem resp eito a a co n tecim en to s p assad os, p resen tes e até futuros. P or d efin içã o, telep atia e cla rivid ên cia estão estreitam en te rela cio nadas, tão estreitam en te q u e, m u itas v e z e s, é im p o ssív el d istin gu i-las. Isto ex p lica por qu e razão as p e sso a s, na prática, p referem d esign ar em conjunto os d o is fen ó m en o s por P E S (P ercep ção E xtra-S en sorial). Seja co m o for, o term o cla riv id ên cia n ão é m u ito satisfatório, na m ed id a em q u e dá a en ten d er q u e o m éd iu m tem um a n ítid a p ercep 167
Ção visu al; ora, co m o irem o s ver, m u itos ca so s d e P E S não im p licam qualquer p ercep ção v isu a l e , quando a in clu em , raram ente a im ag em é nítida. A im p ressão paranorm al p o d e ser m uito v aga e corresp ond er apen as p arcialm ente à realid ad e. W arner T h o len , um m éd iu m m u ito co n h ecid o , d escrev eu , certo dia, o fen ó m en o desta m aneira:
‘‘Deixem-me dar um exemplo de como a clarividência funciona. Imaginem que tinham acabado de passar pelo Piccadilly Circus, em Londres, e tentavam visualizar o cenário mentalmente, pouco depois. Com toda a probabilidade, aquilo que conseguiriam evocar seria apenas uma vaga impressão ou, então, veriam com muita nitidez uma parte da zona, mas não as outras. Uma pessoa veria nitidamente o monumento, outra veria os degraus e as pombas, outra ainda veria a praça apinhada de gente, etc. Isto é muito semelhante à experiência da clarividência: umas vezes podereis ver apenas uma pequena parte, outras vezes vereis vagamente alguma coisa e podereis captar um determinado sentimento, outras vezes vereis diversos fragm entos sem saberdes como se relacio nam entre si."
Classificação da percepção extra-sensorial T êm sid o feitas várias ten tativas para cla ssifica r o fen ó m en o da P E S . U m a cla ssifica çã o ainda h o je largam ente utilizada é a q u e fo i introduzida em 1 9 04 p e lo p ara p sicó lo g o Frederic M eyers. M eyers d iv id iu as várias m o d a lid a d es d e P E S em duas categorias principais: autom atism os sensoriais e autom atism os m otores. E m cada um a d e s tas categorias id en tifico u v ários tip os. C o m o o s au tom atism os m o to res n ão têm qualquer in teresse para o q u e esta m o s a tratar, não irem os d iscu ti-lo s aqui. ,
A utom atism os sensoriais N o s au tom atism os sen so ria is, a in form ação paranorm al é trans form ada in co n scien tem en te num a p ercep ção sensorial. P od em d istingu ir-se seis tipos de a u tom atism os sen soriais, c in co d os q u ais corres p on d em aos cin co sen tid o s, enquanto o sex to se relacion a co m o 168
co n h ecim en to paranorm al, ou seja, co m aq u ilo a q u e p o d erem o s ch a mar clarisciên cia. 1. C larivid ên cia U m a das m od a lid a d es m ais freq u en tes d e ex p ressã o da P E S é a percep ção v isu a l. N e ste ca so , a in form ação extra-sen sorial é transfor m ada num a im a g em visu al. 2. S e n sa çõ es paranorm ais S e é certo q u e a cla rivid ên cia é d e lo n g e a m a n ifesta çã o d e PE S m ais b em co n h ecid a , as sen sa çõ es paranorm ais, p ro v a v elm en te, aco n tecem m uito m ais v e z e s. P or sen sa çã o paranorm al q u erem os sig n ifi car que um in d iv íd u o capta as dores física s e as sen sa çõ es d e outrem , sen d o e ssa in fo rm a çã o ex tra -sen so ria l tran sform ad a e m sen sa çã o corporal. 3. C lariau d iên cia A clariau d iên cia c o n siste na escu ta d e um a v o z interior q u e trans m ite um a m en sa g em relacion ad a co m a realidade. 4. O lfa cçã o paranorm al Q uando o o lfa c to d esem p en h a um p ap el im portante em d eterm i nado tem a, p o d e aparecer na P E S . A ssim , um m éd iu m p o d e su b ita m en te, durante um a con su lta, sentir, por ex em p lo , o ch eiro a estrum e de vaca, in d ican d o qu e a p e sso a a q u em a m en sa g em se d estin a tem um a certa lig a çã o co m vacas. 5. G u stação paranorm al U m a v e z q u e a in cid ên cia da P E S está bastante d ifu n d id a p elo s quatro sen tid os anteriorm ente tratados, é d e supor q u e haja m ais ca so s de en v o lv im e n to d o sen tid o do g o sto do qu e a q u eles q u e têm sid o 169
d o cu m en tad o s. U m d os e x em p lo s p o ssív e is d iz resp eito a um a dona d e ca sa q u e ten tava d ecid ir o que havia de co zin h ar para a fa m ília no d ia segu in te; ainda ela não tinha d ecid id o e já o seu filh o sabia qual o resu ltad o da esco lh a , ao sentir na b o ca o sabor a spaghetti. C asos d e stes, p orém , esc a sse ia m na literatura, p ro v a v elm en te porq ue os p a ra p sicó lo g o s não têm dado grande aten ção a esta área. 6. C o n h ecim en to paranorm al H á c a so s d escritos em que a PE S não é transform ada num a im a g em , n u m so m , n em em qualquer outra im p ressão sen sorial, m as em q u e, ap esar d isso , a p ercep ção penetra na c o n sciên cia . N estes ca so s, fa lam o s d e co n h ecim en to paranorm al. O in d ivíd u o tanto p od e sentir um a d eterm inada sen sa çã o sem saber o seu sig n ifica d o , co m o p od e ficar su b itam en te cien te da ocorrên cia de determ inado facto. E n con tram o-n os aqui num a lin h a de fronteira partilhada por fen ó m en o s co m o a in tu ição e a inspiração, para o s q u ais a ciê n c ia tam bém não está b em eq uipad a em term os de ex p lica çõ es.
C lariaudiência E m P a ra p sico lo g ia, a escu ta de v o zes sem qualquer b ase sensorial está a sso cia d a , por rotina, à v isã o de im agen s, à p ercep çã o de od ores, etc. T in h a in teresse saber em que circu n stân cias se p od eria abordar o fen ó m en o p or form a a revelar-se um ad eq uad o o b jecto d e estu d o p a ra p sico ló g ico . S egu ram en te, h á-d e ser sem p re q u e se p o ssa d e m onstrar q u e a m en sa g em o u v id a corresp ond e a a co n tecim en to s reais do m u n d o m aterial. Para o ilustrar, p o d em o s servir-n os d o segu in te e x e m p lo dram ático:
Um padre fora avisado insistentemente por uma voz interior para não ir ao teatro nessa noite. Obedeceu à voz e não foi. Porém, como já tinha comprado o bilhete, achou mal deitá-lo fora e ofereceu-o a um amigo. Este, radiante por aquela generosidade, aceitou o bilhete e foi ao teatro no lugar do padre. No decorrer da peça, o teatro incendiou-se e foi devorado pelas chamas, tendo o amigo do padre morrido no incêndio. 170
O p a rap sicólogo h olan d ês W . H . C . T e n h a e ff (1 9 7 2 ) co n sid ero u a clariau d iên cia um fen ó m en o d e p seu d o -a lu cin ação veríd ica. N o e x e m p lo acim a, p od e d izer-se q u e o padre tev e um a alu cin ação, na m ed id a em q u e o u v iu qualquer c o isa qu e n ã o tinh a um suporte sen sorial. N o entanto, tratava-se d e um a p seu d o -a lu cin ação , porq ue e le sabia que esta v a a ou vir algu m a c o isa q u e na realid ad e n ão estava p resente. Por fim , trata-se d e um a ex p eriên cia v eríd ica p orq ue o con teú d o d aq u ilo que a v o z lh e d isse corresp on d eu a a co n tecim en to s posteriores.
Condições favoráveis H á certas co n d iç õ e s q u e p arecem p articu larm ente p rop ícias às exp eriên cias d e P E S . H á estu d o s q u e m ostram (S ch m eid ler, 1 988) que quando as p e sso a s estã o num estad o d e c o n sc iê n c ia alterada (co m o na h ip n ose, no son h o, n o relaxam en to p rofu n d o ou no stress extrem o), se dá um aum en to da ocorrên cia esp o n tâ n ea d e exp eriên cia s d e c la rivid ên cia e clariau d iên cia. T em sid o tam b ém dem on strado q u e os c a so s d e P E S são particularm ente co m u n s em p esso a s q u e têm laços em o cio n a is entre si, c o m o é o ca so d os nam orad os, d e fam iliares p róxim os e , ainda, d o s terapeutas e seu s p acien tes (S ch w artz, 1980; d e B ruijn, 1992 - ver tam b ém C ap ítu lo 4). E m 1987, o p sic ó lo g o britân ico S p in elli, da P sic o lo g ia d o D e se n v o lv im en to , form u lou um a h ip ó tese in teressan te. S u geriu qu e n ós só esta m o s em p o siçã o d e falar d o reg isto d e p en sam en to d o s outros se tiverm os c o n sciên cia do n o sso próprio p en sam en to, ou seja, se puder m o s distingu ir o q u e é n o sso d o qu e n ão é n o sso . Por outras palavras, só um in d ivíd u o q u e p ossu a em p len o a sua própria iden tidade pod erá avaliar correctam en te a entrada em cen a d e p en sam en tos ou e x p e riên cias de outrem na sua c o n sciên cia . D aq u i, S p in elli p assou para a h ip ótese de a P E S só ser esp e cia lm en te freq u en te até ao m o m en to em que determ inado in d iv íd u o c o m eça a esta b elecer um a id en tid ad e e s tável. A té aí, as fron teiras entre o E u e o O utro n ão estã o ainda su ficien tem en te esta b elecid a s e , d e sse m o d o , a p esso a en con tra-se largam en te aberta aos outros, e as im p ressõ es p ertecen tes a outrem são v iv en cia d a s co m o próprias. N esta s circu n stân cias, é d ifíc il que 171
essa s im p ressõ es sejam sen tid as c o m o um a am eaça, um a v e z que a n ecessid ad e d e p roteger a id en tid ad e não se encontra ainda d e se n v o l vid a*. D e acordo co m e ste m o d e lo , é de esperar que se en contrem m u itos e x em p lo s d e P E S e m crian ças jo v en s - o que é confirm ad o p elo estu d o d e S p in elli, q u e d em on strou tam bém que o núm ero d essa s exp eriên cias dim inu i co m o avançar da idade. É claro q u e há m uitas ex p e riê n cia s de clarivid ên cia e clariau d iên cia em adu ltos, m as ela s p arecem ocorrer sobretudo em esta d o s de c o n s ciên c ia alterada ou no co n tex to de rela çõ es em o cio n a is. E m qualquer d estas circu n stân cias, o in d iv íd u o tem m en os in clin a çã o para proteger a sua id en tid ad e, en co n tra n d o -se, por isso m esm o , m ais recep tivo ao O u tro. N e s te c o n te x to , é cla ro q u e o s p e n sa m en to s a lh e io s sã o v iv en cia d o s c o m o m en os am eaçad ores do q u e se a situ ação fo sse outra. Seria, sem dú vid a, u m a sim p lifica çã o e x c e ssiv a afirm ar que qualquer exp eriên cia P E S q u e ocorra fora d estas circu nstâncias e sp e c ia is é um a p rova de id en tid a d e fraca; no en tanto, a abord agem sp in ellian a d á-n os um a p ersp ectiv a interessan te para in v estig a ç õ e s futuras. M an tém -se a qu estão d e saber se a p e sso a tem algu m a vantagem n o facto d e saber qu e as su as v o z e s prod uzem in form ação a partir de um a p ercep ção paranorm al. A n o ssa exp eriên cia d iz-n o s que só em parte assim é. N a prática, e ssa s ex p eriên cia s são, m uitas v e z e s, d esa grad áveis e p o d em acarretar p rob lem as m ais ou m en os graves. N o D ep artam ento d e C on su lta d o Instituto de P a rap sicologia de U treque, ten tam os ajudar tod os aq u eles q u e, bem ou m al, acreditam estar a viven ciar fen ó m en o s p síq u ico s ou paranorm ais, e que n ão sabem co m o lidar co m e le s. V ários tip os d e p rob lem as p od em surgir; um a das n o ssa s colab oradoras, M artine B u sch , agru p ou -os em cin co categorias principais:
* Isto é, o adulto, porque tem uma identidade estável, defende-se perante a PES e rejeita-a; a criança, cuja identidade não se encontra ainda suficientemente estabelecida, está muito receptiva à PES, mas não a reconhece facilmente como tal. Dir-se-á que, com o correr da idade, se identifica melhor a PES mas se está menos receptivo para ela. Por outro lado, a PES é geralmente vivenciada como algo desa gradável pelo adulto e como algo indiferente pela criança. 172
1. P roblem as que advêm da p ró p ria experiência O s con teú d os da ex p eriên cia em si são d esagrad áveis. A in form a ção recebida d iz resp eito a assu n tos co m o d oen ça , m orte, etc. Isso pod e despertar sen tim en to s d e cu lp a, m as tam bém con fu sã o - p orq ue é m u ito d ifícil às p e sso a s com p reen d er a natureza d essa s ex p eriên cia s. M uitas p esso a s sen tem -se au ten ticam en te a v iv er em d o is m u n d os separados. 2. P roblem as que advêm da reacção da fa m ília e conhecidos Q uando têm ex p eriên cia s d estas, as p esso a s acabam por se sentir diferentes e incom p reen didas e as reacções d os seu s sem elh an tes fazem -nas sentir-se só s. A ssim , ten d em a sen tir-se m u ito in segu ras, co n fu sas e desam paradas. 3. P roblem as que advêm da p rá tica de jo g o s pa ran orm a is F oi sem pre um p a ssa tem p o bastante pop ular tentar esta b e lec er con tacto co m o s m ortos. In d ep en d en tem en te d e se saber se isso é p o sív el ou não, é e v id en te q u e e s s e tipo d e jo g o s p od e, em certas p esso a s, con d u zir a terrores, o b se ssõ e s e esta d o s d e a lien ação. 4. P roblem as errad am ente atribuídos a um a causa p a ra n o rm a l Q uando um a ex p e riê n cia paranorm al isolad a a co n tece n o m eio de um gen u ín o so frim en to m en tal, a p esso a p od e agarrar-se a essa e x periên cia paranorm al para ex p lica r tudo o resto. D o m esm o m o d o , as q u eix as p sico sso m á tica s p od erão ser erradam ente atribuídas a um a p resu m ível sen sitiv id a d e paranorm al. 5. P roblem as de assim ilaçã o O in d ivíd u o n ão sa b e o q u e fazer n em o qu e p o d e ser fe ito perante as exp eriên cias paranorm ais; procura o crescim en to in d ivid u al, quer d esen v o lv er as suas ca p a cid ad es paranorm ais ou d eseja en contrar um a 173
m aneira d e incorporar o paranorm al na totalidade d o seu d e se n v o lv i m en to p esso a l. S e aceitarm os q u e p od e haver fen ó m en o s d e escu ta de v o z e s que reflectem um a cap acid ad e activa de p ercep ção paranorm al, resta, ainda a ssim , controlar a in flu ên cia das v o z e s. O d o m ín io da situ ação é essen cia l para tod os a q u eles qu e, dotad os efectiv a m en te d e cap acid a d es paranorm ais, sejam con fron tad os c o m im p ressõ es in d esejá veis. N ão n os p arece p o ssív e l im ped ir que essa s im p ressõ es in d esejá veis acon teçam , m as é p o ssív e l aprender a lidar co m ela s. Isto lev a-n o s para áreas q u e estã o para lá do n o sso p rop ósito, p e lo q u e bastará deixar aqui um a breve nota. T o d o s a q u eles q u e são, ou acred itam que estão a ser, in co m o d a d os por im p ressõ es extra-sen so ria is, p od em , em larga m ed id a, b en eficia r d e um períod o de cerca d e 10 m in u tos de rela x e, um a a d u as v e z e s p or dia; iss o d a r-lh es-á o p o rtu n id a d e d e recon h ecer e aceitar todas as im p ressõ es receb id as. S e lh e juntar m os um a in stru ção p o sitiv a , n o sen tid o de um m an ejo e fic a z d essa s p ercep çõ es, e s s e tipo de ex e r c íc io p o d e aliviar grande parte da ten são qu e estão a sofrer.
A escuta de vozes e O Caminho O C am inho (The P ath, P athw ork) é um m o v im en to fu nd ad o em 1952, em b ora o n o m e só fo sse adoptado m ais tarde. A o s 37 an os de idade, a sua fundadora, E va Pierrakos (então co n h ecid a por E v a B roch), sentiu qu e lh e p ega v a m n o braço e a lan çavam para a escrita autom á tica. E m bora n ão se sen tisse particularm ente perturbada por isso , teve a sen sib ilid a d e su ficien te para contactar um a m ig o m a is fam iliarizad o co m estes assu n tos. A p rin cíp io, E va não se sen tia m u ito cap az de enfrentar essa ex p eriên cia so zin h a e, por isso , tod os o s dias ped ia co n selh o s ao seu am igo. A p esso a q u e é sen sitiv a para fen ó m en o s co m o e ste s tem , por assim dizer, um a abertura no seu ca m p o en erg ético , por o n d e p od em penetrar d eterm in ad os en tes. E va d escob riu que estes en tes p o ssu em várias características: o b em e o m al, a agradabilidade e a falsid ad e, 174
a sim p atia e a cru eld ad e. Q u and o se é recep tiv o , tod as estas caracte rísticas se p o d em m anifestar: tanto se p o d e ser in flu en cia d o para o bem c o m o se p o d e ficar co m p letam en te fa scin a d o ou p erd id o n este processo. E vid en tem en te, ex iste tod o um m u n d o d e seres para lá das n ossas p e rcep çõ es q u otid ian as h ab itu ais - m u n d o e s s e q u e é tão m ultifacetad o co m o o n o sso próprio m u n d o h u m an o. D e in ício , E va estava ex p o sta a e s s e outro m u n d o através da escrita au tom ática - era a form a d e e s s e m u n d o penetrar n ela. O a m ig o fe z -lh e v er q u e, por m aior q u e fo s s e a ten tação, nu n ca d everia ced er o con trole a essa s entidades: um m un do tão e x ó tic o e tão m á g ico p o d e ser d em asiad o fascinante; é um rein o d e m aravilha do qual é m u ito fácil ficar refém . O s en tes que m ais con ten tes fica m co m essa p o ssib ilid a d e são o s seres inferiores, q u e se d elicia m em poder penetrar nu m ser h u m an o e ocu p á -lo. A o lo n g o d e m u itos an os, E va aprendeu a ser selectiv am en te recep tiva para o s en tes n ob res e sup eriores, q u e lh e p rop orcion avam um a com p an h ia p a cífica e am ável. A judada por e ste s seres, lev o u a cab o um p ro cesso d e an á lise extrem am en te penetran te e p rofun do, que durou c in c o a n o s, até q u e a n o to ried a d e p ú b lica a fo rço u a interrom pê-lo, para orientar outras p e sso a s na m esm a situ ação. E m resu ltad o d e sse p r o c esso , E va en treg o u -se n as m ãos d o seu G uia - co m o d esign aria m ais tarde o seu C om p an h eiro - e, já n o seu próprio pap el d e g u ia d e m u itas outras p e sso a s c o m o ela, d escob riu que a p rogressão d e cad a um d ep en d e d o tip o d e en te qu e v e m em b u sca d e m orada. C ada um d e n ó s é um ca m p o d e en ergia q u e atrai outra en ergia. A s características n egativas q u e to d o s n ós trazem os no n o sso cam p o d e en ergia d ão azo a qu e n e le p o ssa m entrar n o v a s e in d esejá v eis en ergias - qu e p od em até ser m ais d esco m ed id a s. Para se ser o m elh or m éd iu m p o ssív e l, é im portante pu rificar-se ao m á xim o; o p ro cesso d e p u rificação lev a an os, às v e z e s a vid a inteira. A o contrário da an á lise ortod oxa, qu e p od e ser relativam en te rápida, este é um p ro cesso d e crescim en to con tín u o (P ierrak os, 1978). N esta situ ação, há im portantes esco lh a s a fazer, d e entre várias p ossib ilid ad es: se o s en tes são para utilizar ap en as para p rop ósitos elev a d o s - isto é, ao serv iço d o p rocesso d e crescim en to p e sso a l de 175
cad a um e d o s outros en tão é n e cessá r io q u e se esco lh a ficar sin ton izad o apen as co m o s seres b en ig n o s. O s en tes c h eio s d e falsid ad e, q u e com an d am as a c ç õ e s das p e sso a s sem respeitar a livre vontad e d ela s, n ão d e v e m ser a co lh id o s. O s seres que bajulam e elo g ia m e x cessiv a m en te tam bém n ão são d ig n o s d e aten ção, o que não quer d izer q u e um esp írito b en ig n o não p o ssa contribuir para ajudar um a p e sso a , afirm an d o-lh e o seu Eu ou ap on tan d o-lh e as suas m elh ores q u alid ad es. H á que estar tam bém em guarda contra o s esp íritos que fa zem p rofecias: p o d em levar ao esg o ta m en to de en ergias e é p reciso correr co m e les. A o a p ren d er a lid a r c o m v o z e s o u c o m o u tr o s fe n ó m e n o s paranorm ais, é e sse n c ia l procurar a ajuda de um terapeuta com p eten te na m atéria. V arrer e s s e s en tes para d e b a ix o d o tapete não é solu ção; um a v e z despertada e s s a sen sitiv id a d e, n ão é p o ssív e l fazer de con ta qu e n ão ex iste. A cim a d e tudo, essa sen sitiv id a d e é um d om e é vital q u e cad a um recon h eça o s seu s próp rios traços n eg a tiv o s, o s d om in e tanto quanto p o ssív e l e aprenda a fu n cion ar co m o s seu s traços p o sitiv o s, sem se tom ar v ítim a das arm adilhas que essa sen sitivid ad e con tém . Por m u ito q u e isso cu ste, cada um d e nós é resp on sável por si próprio. P or isso , ao aprender a lidar co m as v o z e s, é req u esito essen c ia l ser-se um a g en te livre e resp o n sá v el co m total cap acid ad e d e esco lh a . H averá im en sas p e sso a s para q u em as v o z e s representam partes fragm entárias da p erson alid ad e (ver C ap ítu lo 10) e para quem o s en tes a qu e m e v en h o referin do pura e sim p lesm en te não ex istem . A própria E v a P ierrakos ad m ite n ão ter a certeza absoluta de que a sua inter pretação esteja correcta. O G uia, de qu em ela tão próxim a fo i durante 23 an os, seria um en te au tón om o ou era, antes, um a parte m ais e le vada d ela própria? C reio q u e am bas as alternativas têm um fu nd o de verd ad e. N o s seu s m elh o res m o m en to s, ou tros m éd iu ns m eu s co n h e cid o s ad m item q u e um as v e z e s se co n fu n d em com o seu G u ia, e n q u a n to q u e n o u tr a s o c a s iõ e s e x p e r im e n ta m u m a e s p é c ie d e d istan ciam en to. E v a d e sc rev e e ssa situ ação co m o “esq u izo fren ia p o sitiv a ”, fen ó m en o q u e fa z parte do crescim en to rum o à integração. C reio q u e o d e stin o d e m u ito s d o s q u e têm te n d ê n c ia para a 176
m ed iu nidad e, e q u e ex p erim en ta m esta estrutura d e carácter a lg o fendida, é cam inh ar para a u n idade. Pela m inha própria ex p eriên cia , in clin o -m e a pensar qu e quando o iço v o z e s m e en con tro nu m p lan o d e n ív el m ais elev a d o . Para ser m ais claro, e s s e tipo d e o corrên cias a co n tece num p lan o em qu e eu , a bem dizer, n ão e x isto en q u an to Eu: isto é , d á -se nu m a d im en são da ex istên cia em q u e a m inh a co n stitu içã o é feita d e um a en ergia su p e rior e em qu e, por isso , n ão há qualq uer d istin çã o entre o E u e o O utro. D urante m uito tem p o, serv i-m e d e um p ên d u lo para esta b elecer c o n tacto co m e s s e plano. S em p re q u e o fazia tinha a n ítid a sen sa çã o de que a en ergia era m ais b aixa q u an d o esta v a a orientar algu ém d o q u e quando procurava orien tação para m im ou para outra p essoa; e q u e, neste ca so e n este plan o m ais alto, era d e lo n g e m ais d ifícil lidar co m a situação. A escu ta interior q u e d ia a d ia p reen ch e a m inh a vid a situa-se algures entre o plano m ais elev a d o e o plano inferior e é freq u en tem ente m uito concreta; in esp erad am en te, ta lv ez, está relacion ad a co m qu estões do qu otid ian o, c o m o a estrada qu e d e v o tom ar para um determ inado sítio , avisar-m e d e q u e o s tem p os estão m aduros para fazer determ inada co isa , ou lev ar-m e a com prar qualquer c o isa no superm ercado. M uitas v e z e s lu to contra isso . P or ex em p lo , p o sso ouvir d izer que é p reciso com p rar um a c o isa sem grande in teresse para m im - d ig a m o s, um a garrafa d e leite, q u e é c o isa qu e n orm al m ente não bebo. A lg u n s d ias m a is tarde, se aparece alg u ém e m e p ed e um co p o de leite, fic o m u ito co n ten te por ter tid o em con ta o q u e a v o z m e tinha dito, ou fic o c h e io d e pena por a ter ignorado. P o sso não actuar em co n form id ad e co m as su g estõ es da v o z , tanto m ais que estou c o n v en cid o d e q u e d e v o ser resp on sável p elo s m eu s próprios actos. A lgu m a s co isa s q u e o iç o sã o p erfeitam en te esp a n to sa s, sobretudo quando se referem a fa cto s q u e ta lvez n ão p u d esse saber à partida. C om vários a m ig o s m eu s a co n te ce exactam en te o m esm o; n ão é um fen ó m en o assim tão raro c o m o algu m as p esso a s p od eriam pensar. T am b ém é verd ad e q u e qu anto m a is p reocu p ad o se está co m o pro c e sso d e p u rificação, m ais s e d e se n v o lv e um a form a ou outra de p ercep ção extra-sen sorial. Para grand e prazer m eu , ten ho a sen sação 177
d e v iv er dentro d e u m a p ersp ectiv a m u ito m ais am pla e sei q u e e x is tem m u itos outros m u n d o s em redor d o m eu . S ei que para algu n s isso é um fardo m uito p esa d o , m as o en orm e p oten cial que tem n ã o d e v e ser n eglig en cia d o ; ten h o esp eran ça q u e h a v em o s de co n seg u ir criar um clim a favorável para q u e as p e sso a s p o ssa m aprender a lidar co m essa s exp eriên cias. A lgu n s terapeutas, sobrecarregados em m aior ou m en or grau p elas suas v o z e s, estão c o n sc ie n te s d e ter um a brecha n o seu ca m p o m a g n ético, através da qual p o d em penetrar livrem en te o s m ais d iv erso s en tes. Encerrar e ssa b rech a con stitu i um co n sid erá vel d e sa fio e c o s tum a acon tecer em resu ltad o dum a ex p eriên cia de cura, durante a qual a aura p o d e ser encerrada d e n o v o . A certa altura da terapia p o d e ev id en ciar-se a e x p e riê n cia traum ática qu e p rov o co u a brecha; o e n cerram ento desta d ar-se-á quando o traum a é adeq uad am ente id en ti fica d o e p rocessad o. T en h o o u v id o falar d e um h osp ital su l-am erican o qu e p o ssu i um a eq u ip a d e terapeutas co m d otes paranorm ais; sem pre qu e n ecessário , e s s e s e sp e cia lista s en tabu lam co n v er sa çõ es co m o en te perturbador e p e d em -lh e q u e d e ix e o p acien te em p az - e é exactam en te o q u e a co n te ce. N a H oland a e na Inglaterra ex istem algu n s grup os d e terapia d e sse tipo. O s leitores que d e se jem um a ex celen te ex p lica çã o d o ca m p o en erg ético hum ano e das resp ectiv as estruturas p sic o ló g ic a s p od erão ler M ão s d e L u z (H ands o fL ig h t), de Barbara A nn B rennan, q u e fo i a m inha m estra durante algu m tem p o. É tam bém fu nd am en tal prestar a m áxim a aten ção ao corp o físic o . Para se p od er esta b elecer um a b ase de trabalho só lid a e segu ra co m essa s en ergias, é e sse n c ia l estar b em lig a d o à terra e rem over tod os o s b lo q u eio s. Por isso , O C am in h o sub lin ha a n ecessid a d e d e en sin ar as p esso a s a fu n cion ar e m harm onia co m o seu corp o, e o m étod o esco lh id o é o ch am ad o trabalho de en ergia fundam ental. O p rin cíp io essen cia l desta ab ord agem é q u e o corp o físic o , as e m o ç õ e s, o in te lecto e o esp írito sã o parte integrante d e um todo: tudo está rela cio nado e tudo é in teractivo e , por isso , é p reciso trabalhar to d o s o s a sp ectos. Q u e tem O C am in h o a o ferecer aos o u vid ores de v o zes? A n tes de m ais nada, através dum a co m p ila çã o das con ferên cias de E va P ierrakos, 178
O C am in ho o fe r e c e um a p ersp ectiva m ais am pla das p o ssib ilid a d es da vida; em si m esm o , isto p od e ser m u ito e fic a z na red u ção d o s sen ti m entos de in certeza e p od e servir d e tram p olim n u m p r o c esso d e m ovim en to p o sitiv o para a fren te. E x iste ainda a o p çã o d e participar no sem in ário ou nas jorn ad as b ien ais d ’0 C am in h o q u e se realizam na H olanda. E stá sem p re d isp o n ív el a orien tação por p eritos em ajuda, algu ns dos quais têm ex p eriên cia p e sso a l d e escu ta d e v o z e s ou d e qualquer outra form a d e P E S (se b em qu e p o u co s en carem essa ex p eriên cia p essoal co m o o a sp ecto m ais im portante da orien tação q u e d ão). O s peritos em ajuda da organ ização O C am in h o são preparados para exercer a fu n çã o d e terapeutas e têm sem p re a p o ssib ilid a d e d e recor rer a reu n iões d e con su ltad oria. E sp ero q u e este b reve apanhado da abord agem seg u id a n ’0 C am i nho p o ssa ser útil a tod os o s ou v id o res d e v o z e s q u e procuram m a neiras d e aprender a lidar co m ela s, ou a todas as p e sso a s qu e g o s tariam d e ajudar outras a atingir e s s e o b jectivo .
Uma perspectiva kármica Han vati Binsbergen A o abordar este assu n to, partirei d o p rin cíp io d e q u e toda a vid a hum ana é anim ad a por um esp írito q u e assen ta resid ên cia n u m corp o e n e le habita até à m orte. A o lo n g o d esta o cu p a çã o , o esp írito d ev e cum prir um d eterm in ad o nú m ero d e tarefas, d e acord o co m o d estin o outorgad o p elas leis do K arm a. Q uando o corp o m orre, o esp írito regressa ao seu rein o, pronto a reincarnar noutra form a corporal. Os m édiuns, esp e cia lm en te o s qu e são sen sitiv o s para as v o z e s, estão h ab ituados a com u n gar ora co m o s esp íritos d o s v iv o s, ora co m aq u eles qu e já regressaram ao rein o esp iritu al. N e ste co n tex to , a e s cuta de v o z e s n ão tem d e ser n ecessariam en te um a in tim id ad e in d e sejável. Para um m édium , é da m aior im portância a cap acid ad e de dialogar co m o s esp írito s, tanto para d e les receb er as m en sa g en s que 179
pod erá transm itir aos seu s destin atários, c o m o para tom ar co n sciên cia d os p rob lem as q u e pod erão surgir no eq u ilíb rio entre o espírito e o corp o. S e este eq u ilíb rio se alterar, o esp írito a ssin ala o fa cto ao seu co rp o, através de um a dor ou de um a d o en ça - q u e de outro m od o serão in ex p licá v eis. U m m édium co m o eu , se n sitiv o para as v o z e s, p od e ajudar à com p reen sã o d e sses sin a is, fa cilita n d o a sua tradução para a lin g u a g em hum ana, fa zen d o co m q u e a perturbação se p o ssa reso lv er n o m ais curto esp a ço de tem p o p o ssív e l. N o ca so d e um d oen te grave, atorm entado p ela dor e p ela ap roxi m ação da m orte, o m édium poderá entrar em con tacto c o m o espírito v iv o d o p acien te. E claro que isso só se pod erá fazer co m o co n sen tim en to e x p r e sso do p a cien te ou da p e sso a resp o n sá v el por e le . O m éd iu m poderá indagar até que pon to e sse esp írito se encontra perto d e saldar as suas d ív id a s kárm icas: o esp írito p o d e revelar o p on to ex a cto da situação e , em estreita co o p eração co m o m édium , assegu rar q u e o corp o fiq u e liberto da dor. A co rd a -se en tão co m o esp írito o ferecer-lh e um a esco lta para q u e p o ssa regressar ao seu rein o. E ste ap oio espiritual é , em tod os o s seu s a sp ecto s, um a das e x p e r iê n c ia s m a is m a ra v ilh o sa s e m ira cu lo sa s q u e ao terap euta paranorm al é dado ter. C o m o se v ê , nem todas as v o z e s são m alig n a s, n em todas p rov o cam sofrim en to, p o d en d o , p elo contrário, prop orcionar grande sa tis fação.
Vozes asso ciad as a dívidas kárm icas Q u alq uer um de n ós p od e perder a vid a em qualquer m om en to e das m aneiras m ais diversas: aciden te, su icíd io , guerra, a ssa ssín io , etc. E m qu alq uer d os ca so s, o espírito deparar-se-á co m um facto co n su m ado: ex cep to nas raras situ a çõ es em q u e o K arm a se encontra já totalm en te sa tisfeito , a m issã o d o esp írito na p resen te en carnação estará ainda por cum prir. N o entanto, por já n ão ter um corp o ond e m orar, o espírito é obrigado a regressar ao rein o espiritu al. M as, co m o o esp írito só pod e regressar d ep o is de feito s o s n ecessá rio s prepara
tivos n o seu rein o para o receber, até q u e isso se v erifiq u e terá de vaguear em d e sa sso sse g o . N esta s circu n stân cias, é fá cil com p reen d er que e s s e esp írito d e se je com u n icar co m outro qu e ainda hab ite um corp o, trocando co m e le m en sa g en s através d o in co n scien te - m en sagen s qu e pod erão ser trazidas à c o n sc iê n c ia d ep o is d e vertidas para a lin gu agem hum ana. A o p rin cíp io, por n ão estar fam iliarizad a co m e sse con tacto e só estar habituada a falar co m p esso a s, a p e sso a esco lh id a p od e ficar atem orizada. M u itas v e z e s, d iz-se qu e o fen ó m en o é co m p letam en te im agin ário e p rocu ra-se outro tipo d e ex p lica çõ es para aqu ilo q u e se o u v e. S ó qu and o a ex p eriên cia aparece repetidam en te se c o m eça a p erceb er qu e a im ag in a çã o n ão ex p lica tudo e que, na verd ad e, se trata d e um a v o z au d ível; ev id en tem en te, a d ificu ld ad e é q u e essa v o z é in au d ível para to d o s o s d em ais. N a altura d evid a, isto é, lo g o que ten ham co m u n ica d o a su a im portante m en sa g em e en co n trado o cam in h o d e regresso ao rein o d o s esp íritos, essa s v o z e s, em geral, desap arecem .
V ozes de satisfação do destino kárm ico A ssim q u e o esp írito co n clu i as tarefas da sua en carnação e satisfaz o K arm a, receb e autorização para vagar o corp o. E n este p reciso m o m en to q u e a co n te ce a m orte, seja o p ro cesso d e m orte gradual ou súb ito. N o p rocesso d e abord agem d a m orte, quando se ap roxim a o m om en to de partir d e ju n to d os en tes q u erid os, o esp írito en contra-se ocu p ad o na sa tisfa çã o das d ív id a s k árm icas. A m orte por cau sas naturais só a co n tece qu and o o esp írito tiver term in ad o as suas tarefas e abandonado o corp o. É m u ito surp reen dente q u e em m u itos d e sses c a so s o esp írito n ão con tin u e a m an ifestar-se, em b ora haja e x c e p ç õ e s, c o m o v erem o s. Q u and o a partida d o esp írito é súbita, o p rocesso p od e to m a r-se m u ito a flitiv o para o s parentes: nada está preparado, as d e sp ed id a s n ã o s e fizera m e o s p a ren tes e stã o m u ito c o n fu so s. O casio n a lm en te, um d o s parentes o u v e , sem a v iso p révio, a v o z in co n fu n d ív el d o d efu n to dan d o in stru ções, por ex em p lo , a resp eito de d o cu m en -to s im p ortan tes; e ssa v o z p o d e tam b ém tran q u ilizar o s parentes, d izen d o -lh es q u e se sen te m u ito fe liz no reino d o esp írito.
V ozes p ro voca da s p elo luto N atu ralm en te, a m orte de um a p e sso a cau sa grande pesar aos seus parentes. N as d ifíc e is fa ses in icia is d o p ro cesso d e luto, são norm ais in ten sos sen tim en tos de dor, d e v a z io e de perda. D o p on to d e vista d o esp írito , a qu estão é totalm en te diferente. Partindo d o prin cíp io d e q u e o K arm a se encontra sa tisfeito , o esp írito, d ep o is d e ter vagad o o co rp o, aborda o reino espiritual. A sua entrada n este rein o é acom pan hada p ela esc o lta espiritu al, e p od e d izer-se que o esp írito ren asceu para o m un do d o s esp íritos, on d e há grande reg o zijo p elo seu regresso. P orém , na terra, o s parentes contin uam a chorar a perda do seu en te querido. T en d o cu m prido o seu árduo d estin o n o d ecu rso da sua e x istên cia hum ana, o esp írito torn ou -se m erecedor de d escan so, m as a in ten sid ad e d o pranto terreno não o perm ite. É co m o se os parentes do d efu n to ten ta ssem m a n tê-lo v iv o . A ssim , o esp írito não tem outra alternativa sen ã o com u n icar co m um ou m ais parentes do fa lecid o e, através du m a v o z a u d ív el, im plorar-lhes que se r esig nem co m a sua partida e o d e ix e m d escan sar em paz.
V ozes de ego-espíritos A fa se in icia l d e c r e sc im e n to d e cad a esp írito é a fa se e g o . A fin alid ad e d este p eríod o d e crescim en to é fazer co m qu e o esp írito aprenda a “cam inhar p e lo seu próprio p é ”, sen d o esta a b ase de toda a ap ren d izagem segu in te. D urante este períod o d e treino, porém , há sem pre o p erigo d e o esp írito adquirir qualquer d efeito , co m o o ciú m e. U m eg o -esp írito é aq u ele q u e não é capaz d e tolerar a ideia de que há outros esp íritos, que hab itam num plano m uito m ais elevad o; e que fará tudo o q u e estiv er ao seu a lcan ce para desalojar qualquer esp írito superior do corp o hu m ano que esco lh eu habitar - por outras palavras, um eg o -esp írito arrebatará para si um corp o que não lhe p erten ce d e direito, não só para se m anifestar, m as tam bém para neutralizar o seu ocu p an te leg ítim o . É a isto que se ch am a p o ssessã o . E stas situ a çõ es p od em ser ex trem am en te desagrad áveis e são ex a cer badas, m uitas v e z e s, p e lo s e fe ito s de um d ia g n ó stico p sic o ló g ic o
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errado: n este sen tid o , u m a m ed ica çã o p o d e ter co n seq u ên cia s d e sa s trosas quer para o corp o qu er para o seu habitante leg ítim o . O resultado da p o sse ssã o é , m uitas v e z e s, n ão m ais, a v ítim a , ser capaz de reagir e d e fu n cion ar d e acordo co m a sua própria vontad e; privada da sua d irecçã o n orm al, as su as cord as v o ca is fa lam -n o s n u m a v o z estranha. N a m in h a própria ex p eriên cia , há o e x e m p lo d e um aluno do 5.° ano d e esco la rid a d e qu e d ava ao p rofessor resp ostas qu e não tinham qualq uer rela çã o co m a aula em cu rso. U m c a so m ais grave era o de um a m iú d a qu e v iv ia num subúrbio tranquilo e q u e, subitam ente, se lan ço u p ela ja n ela aberta, soltan d o um a torrente de ob scen id ad es e co m eça n d o a insultar os seu s pais n os m esm o s term os. N este ex em p lo , fo i p reciso ch am ar a p o lícia para levar a m iú d a. F ica claro, por estes e x e m p lo s, q u e o s eg o -esp írito s são tu rb u len tos e m a licio so s e são to d o s á v id o s, tam b ém , d e se fazer ouvir.
Vozes no leito de m orte A s exp eriên cias v iv id a s n o leito d e m orte com b in am , m u itas v e z e s, a escu ta de v o z e s c o m v isõ e s d os esp íritos d e a m ig o s e p aren tes já fa lecid o s. O m orib u n d o p o d e pron un ciar d istin tam en te n o m e s d e p esso a s e sorrir p razen teiram en te; a su a fa ce p o d e ganhar v id a su b i tam ente e os seu s o lh o s ilu m in a m -se. O s parentes p od em achar in com p reen sív el o qu e estã o a ver e, freq u en tem en te, d izem un s para os outros que o m orib u n d o está delirante e alu cin ad o. N o en tan to, é de notar que o d elírio c e s s a e o m orib u n d o v o lta a d irigir-se ao s p resen tes - o espírito p erm ite q u e o p od er da razão v o lte a operar n o reino m undano e se cen tre e x clu siv a m e n te na terra e n os seu s hab itan tes. E ste p rocesso , n o qual o esp írito, alternad am ente, sin to n iza co m o lad o de lá e v iv e n o p lan o terreno, p o d e rep etir-se várias v ezes: a co n sciên cia tem a c e sso a lam p ejo s do m un do q u e aguarda o esp írito assim que abandonar a sua form a terrena. P en a é q u e o m orib u n d o, a qu em estas v is õ e s sã o co n c ed id a s, seja tantas v e z e s tom ad o por d em en te ou esteja alu cin a d o por e fe ito da m ed ica çã o . Isto é ainda m ais triste se tiverm os em lin h a d e con ta o com ité d e recep çã o q u e, aos portões do rein o d o esp írito , aguarda o s en tes qu eridos q u e vão partindo de ju n to d e n ós.
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C onclusão C om o v im o s, há várias m aneiras d e ou vir v o z e s, in clu in d o m uitas outras qu e n ão abordei aqui. H á m uita g en te q u e se sen te grata p elo ap oio qu e receb e das suas v o z e s e tam bém porque, sem ela s, as suas vid as seriam m en o s fe liz e s e m en os realizad as. P orém , tod os os ou vid ores d e v o z e s se deparam co m o m esm o prob lem a de fundo: a q u estão da prova. M esm o quando um m éd iu m está em co n d iç õ e s de confirm ar a e x istê n c ia das v o z e s, con tin u a a ser im p o ssív el prová-la às outras p e sso a s, dada a falta de ev id ên cia ab solu ta d e natureza cien tífica . P or isso o s ou v id o res se en contram sob grand e p ressão, já que o s outros ou n ão lh es ligam ou o s encaram co m o lou co s. E sp erem o s q u e o trabalho p ion eiro qu e está a ser lev a d o a cab o co m o s o u v id o res d e v o z e s ven h a um dia a dar o s seu s frutos, por form a a q u e as p e sso a s recon h eçam que o espírito im ortal, q u e habita cad a um d e n ó s, é o factor m ais im portante sobre a terra.
8 CRESCER À MARGEM DA PSIQUIATRIA “Porque os médicos insistem em recolher dados e mais dados, em ver e tornar a ver, em ser mais objectivos, mais científicos, os seus pacientes sentem, muitas vezes, que eles não os ouvem.” (Stanley W. Jackson, 1992, American Journal of Psychiatry)
Introdução Marius Romrne N e ste C ap ítu lo, c in co in g leses e um a h o la n d esa, tod os co m um a lo n g a história d e seg u im en to p siq u iátrico, d esc rev em -n o s a sua e x p e riên cia de o u vir v o z e s e d e aprender a lidar co m ela s. O s autores d os se is contrib utos qu e se seg u em form am um a se le c ç ã o m u ito rep resen tativa d e tod os a q u eles qu e encontraram as su as próprias m aneiras de lidar co m as v o z e s e co m outras ex p eriên cia s fora d o co m u m . N u m a ou noutra o ca siã o , tod os foram , ou têm sid o , u ten tes regu lares d os serv iço s d e P siquiatria e passaram m u ito tem p o internados. P elo m en os um a v e z , to d o s foram d ia g n o stica d o s c o m o esq u izo frén ico s e , do 184
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p on to d e v ista p siq u iátrico, ainda h o je seriam con sid erad os d oen tes graves. N o entanto, apesar d e contin uarem a ouvir v o z e s e a ter outras exp eriên cia s e x cep cio n a is, tod os co n seg u iram encontrar m aneiras de fu n cion ar co m e fic iê n c ia na esfera so cia l. T o d o s o s seis recon h ecem q u e con tin u am a ter as suas d ificu ld a d es o ca sio n a is, durante as quais n ecessita m do ap oio d e outrem . N a verd ad e, o seu ê x ito em levar um a vid a ind ep en dente é d ev id o , p e lo m en o s em parte, à sorte que tiveram d e pod er contar co m um com p an h eiro, fam iliares ou a m ig o s, d isp o s tos a aceitar a presen ça das v o z e s e d e outras p ercep çõ es fora do co m u m . T o d o s eles acham q u e isso fo i um factor essen cia l para qu e se tiv esse m id en tificad o co m as suas v o z e s, co m vista a con trolá-las e a m an tê-las afastadas de um a interferên cia in d evid a na luta por um estatuto so cia l e p ela realização p rofissio n a l. In felizm en te para n ós, psiquiatras, isso o b rig o u -o s a distan ciar-se da P siquiatria, a qual con tin u a a n ão estar preparada para perm itir aos ou vid ores d e v o z e s id en tificar-se co m as v o z e s que o u v em . A atitude ortod oxa perante este fen ó m en o não c o n se g u e observar adequada m en te a ex p eriên cia tal co m o e la é, dan do assim p ou ca ou nenhum a aten ção à reso lu çã o d o s prob lem as so cia is ou de relação que c o stu m am estar a sso cia d o s a essa exp eriên cia.
Contributos pessoais O s autores d os seis contrib utos que se seg u em m ostraram um a coragem e um a en ergia extraordinárias na luta p ela recuperação do con trole da sua vid a. Para n ós, fo i um prazer im en so reunir e trabalhar co m e le s e gostaríam os de lhes agradecer, calorosam en te, a c o la b o ração en tu siástica que deram ao p rojecto d este livro.
passando a o u v i-la s regu larm en te em 19 84 , d ep o is d e se terem v eri ficad o prob lem as raciais n o seu em p reg o . N o s d o is an os seg u in tes fo i internada por duas v e z e s e d e u -se o d iv ó rcio . A senh ora M . L. é rastafariana*: o q u e para ou tros seria um a relig iã o , para ela con stitu i um a form a de estar na vid a.
"Suponho que teria 3 anos de idade quando um primo meu, que teria então os seus 12 anos, abusou sexualmente de mim. O meu primo pare cia-me enorme. Na altura, a minha fam ília vivia nas Pequenas Antilhas, na ilha Dominica. Tinha eu 7 anos quando nos mudámos todos para Inglaterra, o que haveria de constituir para mim muito mais do que um simples choque cultural. Nas ruas, as pessoas mais velhas - que eu tinha aprendido a respeitar - viravam-se para mim e diziam-me coisas do género: ‘Sua negra porca’; e ‘Vai para a tua terra, macaca.’ Ficava muito chocada. No princípio, os meus pais não me deixavam ir brincar lá para fora mas, quando ganharam mais confiança, começaram a deixar-me ir para a rua. No entanto, eu não tinha ninguém com quem brincar; era uma situação horrível. Aos 9 anos voltaram a abusar sexualmente de mim. Vivíamos numa parte de um prédio onde, no andar de cima, vivia um homem com a sua família. Ele não só abusou de mim como o vi fazer o mesmo com as próprias irmãs. Ele avisou-me: ‘Livra-te de contar alguma coisa aos teus pais’, e eu não contei. Logo que ele se fo i embora do prédio, contei tudo à minha mãe e ela fo i fazer queixa à Polícia. M as a Polícia disse que isso era uma questão que tinha de ser provada em tribunal. E claro que uma coisa dessas nem sempre é fá cil de provar e, ainda por cima, não era de excluir que dissessem que eu tinha, de algum modo, provocado o comportamento do senhor. Quando eu tinha 12 anos, mudámo-nos para um apartamento num prédio muito velho. Era véspera de Todos-os-Santos (no que me toca, acho que a véspera de Todos-os-Santos fo i feita para tornar os medos respeitáveis). Nessa noite ouvi umas gargalhadas horríveis que vinham
Oitavo contributo pessoal M . L. é um a m ulher d e raça negra, d e 40 anos de idade, m ãe de três filh o s e a v ó, q u e o u v iu v o z e s p ela prim eira v e z ao s 12 anos, 186
* A seita rastafari, de origem jamaicana, defende que os negros constituem o Povo Eleito e que o último imperador da Etiópia, Hailé Selassié, Deus Encarnado, conduzirá a raça negra de volta à sua Pátria Africana. 187
do jardim. Pareciam risadas de bruxas*. O jardim teria, pelo menos, uns 15 metros de comprido e as voz.es vinham lá do canto. Rezei a Deus; nessa noite, rezei com toda a devoção para que Deus fizesse parar aquele barulho. A minha experiência de ouvir vozes na cabeça era Deus a dizer que aquele barulho era o meu medo, e que eu devia deixar de ter medo do escuro. Aos 12 anos conheci o meu ex-marido, que foi também o meu primei ro namorado propriamente dito. Aos 16 anos fiquei grávida por duas vezes e de ambas as vezes perdi a criança. A minha mãe meteu na cabeça que eu não ia ter filhos. Disse-me para usar o duche e eu obedeci. Da segunda vez que abortei perdi muito sangue e fui às escadas chamar pela minha mãe. Desmaiei e bati com a cabeça na soleira da porta. Ao desmaiar, ainda vi o meu pai subir as escadas a correr e senti que ele me pegava ao colo. Perdi os sentidos. Nessa noite o meu espírito abandonou o meu corpo. Para ser franca, pensei que tinha morrido. Quando estava a meio caminho entre o céu e a terra, perguntei a JAH (O Imperador Hailé Selassié) ‘Posso ir ter Convosco?’ Então, vi uma grande esfera oca e enrolei-me nela como um bebé. Aconcheguei-me naquela cápsula como um pintainho no ovo e quis saber se já não teria de regressar mais. Mas JAH disse: ‘Terás de regressar, porque irás ter gémeos.’ E eu disse: ‘Oh, JAH, se assim é, então regressarei’; e ondeei esvoaçando de regresso ao meu corpo. Sonhei do Além e vi dois bebés embrulhados num carrinho. Então decidi voltar. Despertei e disse à minha mãe que vinha para ter gémeos. Ela julgou que eu tinha estado a delirar. Os gémeos nasceram quando eu tinha 18 anos. Quando engravidei, ainda não era casada. Mas queria os bebés e não dei ouvidos à minha mãe. Casei aos 20 anos e quis ter outro filho. Nessa altura, eu e o meu marido discutíamos um bocado, mas eu queria ter outro filho. Pedi a Deus o meu filho Sam e supliquei-Lhe que fizesse com que o meu marido estivesse de acordo. Quando Sam fez 3 anos, comecei a ter problemas no emprego. Sou auxiliar de acção educativa, num jardim de infância. Uma das educado ras andava a tentar provar que eu era agressiva e o resto do pessoal dizia ámen com ela. Eu tinha a impressão de estar a falar para as paredes, mas elas diziam que a culpa disso era toda minha. Se abria a boca, diziam que eu era demasiado emotiva. Se não falava, também * “ H a llo w e e n ” , lite ra lm e n te “ V é sp e ra d e T o d o s-o s-S a n to s ” , é ta m b é m o d ia d as b ru x a s.
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tinham que dizer de mim (isto punha-me completamente fula). Por isso, senti que estava a precisar de um sítio só para mim. Senti necessidade de deixar o meu marido. Não é que fosse muito mau viver com ele, mas eu estava a passar por um grande sofrimento. A principal razão por que me fui embora é que andava com demasiado ódio dentro de mim. E a questão era: ou deixava que esse ódio se soltasse, e sofreria as consequências, ou tentava mantê-lo sob controle. Decidi mantê-lo sob controle, de uma forma justa e aceitável - o que levava o seu tempo." Melhorar o controle ‘‘Regressei ao trabalho mas, passado um ano, estava com o mesmo problema: questões raciais. Comecei a pôr-me à defesa. Tive que deixar de ir ao trabalho, porque no emprego resolveram participar de mim. Este facto motivou o meu primeiro colapso nervoso. Entretanto, divorciei-me. Quando comecei a ficar adoentada, disse para mim mesma: ‘Desta vez tens que pôr um ponto final nesta história. ’ O tempo urgia. Eu tinha de responder à carta de denúncia para conseguir voltar ao trabalho. Por isso, sabia que ia melhorar. Um primo entendido ajudou-me a responder à carta. Segui o parecer dele. No emprego, a minha resposta foi com preendida e aceite. Resolveram organizar um curso de sensibilização racial, dando a cada trabalhador uma semana de licença para frequen tar o curso. Terminado este, regressei ao trabalho. As coisas mudaram e passei a sentir-me mais aceite pelas colegas. Queria ser independente, porque não estava disposta a que os meus filhos me vissem novamente em crise. Eles já tinham sofrido coisa que chegasse. Mas havia ainda outra razão. Embora a minha mãe estivesse farta de o saber, eu tinha que lhe provar que não era tão doente como toda a gente pensava. Queria ser independente. Nunca tinha vivido sozinha. A cama era toda a mobília que eu tinha. Fui internada pela segunda vez. A minha mãe mandou chamar uma ambulância. Ficou muito aborrecida porque não a deixei ir comigo. Lia-Ihe os pensamentos e achei que ela queria ir comigo para mandar dar uma injecção que me matasse. Desta vez estive mais tempo doente que da primeira. Estive bastante mal, de Janeiro a Novembro. Parti as janelas todas e por isso mantive ram-me isolada durante 28 dias. Ouvia vozes por todo o lado. Até ouvia os meus pensamentos fora da minha cabeça. Medicaram-me, mas nin guém me deu qualquer ajuda psicológica. Um psiquiatra falou comigo, 189
mas eu não confiava nele. No entanto, a medicação reduziu o meu nível emocional e eu já não sentia medo. Assim, já era capaz de separar as coisas, já não me irritava. O pior é que agora ouvia constantemente um ruído de vidros partidos. Fui à Etiópia, em pensamento, contar tudo ao Imperador. Mas Ele disse: ‘Já sei. ’ Ofereceu-me um livro de Educação Infantil. Quando olhei para o livro vi que tinha capas pretas, mas as páginas estavam em branco. E eu disse ao Imperador: ‘O livro não tem nada escrito.’ E Ele respondeu: ‘Tu é que o vais escrever. Escreve a tua própria história.’ Tudo isto aconteceu há já algum tempo. Continuo a ouvir vozes. Continuo a ouvir a voz de Deus. Não é uma voz falada, é uma intuição. A í minhas vozes dão-me instruções úteis, do género: ‘Tem cuidado ao atravessar a estrada.’ A minha voz disse: ‘N ão, tu és capaz de ser inde pendente.’ A minha doença é ouvir vozes fora da minha cabeça. Normal mente, oiço os meus pensamentos dentro da cabeça, mas quando estou doente oiço-os fora da minha cabeça. Continuo a tomar a medicação: tomo um comprimido de duas em duas ou de três em três semanas. Das duas vezes que estive doente, o problema era viver num país que não aceita as pessoas de raça negra. Vocês fazem ideia que uma grande parte da História da Raça Negra tem sido sistematicamente silenciada? Os Mouros eram africanos. Os Egípcios eram africanos. O branco só sabe falar de servidão. É assim que eles falam de nós. O problema é que não podia ser eu mesma, vivendo num país que não aceita as pessoas de raça negra. Através das vozes, encontrei-me, descobri a minha iden tidade, que tem tudo a ver com a minha história racial e com o meu próprio passado. A memória dos abusos sexuais de que fui vítima man tém-se, mas aprendi a distanciar-me dela. Sei agora que numa situação humilhante me excluo dela, embora a memória da situação permaneça. Como é que sobrevivi à minha guerra? Sem dúvida, porque confiei em JAHOVIAH! Todos os meus pensamentos estão dentro da minha cabeça.”
Nono contributo pessoal A . G . é um a m ulher de 3 6 anos co m um filh o d e 4. C o m eço u a ou v ir v o z e s quando a sua relação a fectiv a d e ix o u de correr co m o sonhara. E ste v e internada por cin co v e z e s e está agora a fazer um a 190
m ed icação regular. D e sd e o n a scim en to d o filh o , sen te-se co m m ais controle sobre a vid a. “A minha experiência de ouvir vozes começou em 1980, quando tinha 25 anos. Nessa altura andava a fazer experiências de telepatia. Acredi tava que podia, com o meu pensamento, levar as pessoas a fazer deter minadas coisas. Pouco depois, comecei a ouvir vozes. Pensava que os meus vizinhos falavam de mim; estava no quarto e ouvia vozes através das paredes: tinha mesmo a sensação de estar a ouvir alguém. Não pensava estar a ouvir vozes dentro da minha cabeça; pensava que eram vozes reais. Não sabia nada de problemas de saúde mental, só imaginava que as pessoas não gostavam de mim e andavam a dizer coisas a meu respeito nas minhas costas. Na altura, andava muito deprimida, paranóide; não podia concen trar-me no trabalho porque sentia que toda a gente estava contra mim. Pensava que isso tinha que ver com a minha relação, que não estava a correr bem. Eu tinha vivido com um estudante, em Cambridge, durante 4 anos. Esse homem dava cabo de mim. Fazia comentários sobre a minha maneira de vestir e estava sempre a criticar-me. Eu imaginava que não iria encontrar mais ninguém na vida se as coisas não corressem bem entre nós. Ficaria sozinha e entregue a mim mesma para sempre. Ima ginava-me com 80 anos, sozinha e sem filhos. Por isso, decidi aguentar as coisas com ele. Quando fui ao médico da empresa, ele mandou-me ao clínico geral, que, por sua vez, me enviou ao psiquiatra. Não lhe disse que ouvia vozes, porque não me apetecia falar do que as vozes andavam a dizer de mim —não fosse dar-se o caso de serem mesmo vozes de pessoas. Por isso, só lhe disse que andava deprimida e me fartava de chorar, o que era verdade. A conselho de pessoas amigas, fui passar o fim-de-semana a casa dos meus pais, em Bolton. Tive uma espécie de colapso físico, que atribuí às drageias de dotiepina que o psiquiatra me receitou. Perdi completamente o controle das minhas emoções. Pensei que ia morrer e fui assaltada por um sentimento de culpa esmagador: pensava que tinha matado alguém, embora não soubesse quem. Os meus pais chamaram um médico. Fui internada na terça-feira. Ninguém me disse para onde me iam levar e nunca pensei que me levassem para um hospital psiquiátrico. Odiei a minha estadia naquele velho edifício: parecia-me uma espécie de campo 191
de treino militar. Pensei que, para o Governo me ter mandado para aquele sítio, é porque, se calhar, eu tinha feito algo de mal. Tive o pressentimento de que estava envolvida numa conspiração qualquer e que me tinham destinado um protagonismo específico: uma espécie de missão. Este primeiro internamento foi nubloso. Não me lembro de muitas coisas, só sei que estava sempre a procurar escapar-me, a tentar fugir. Ao fim de três semanas, deram-me alta e mandaram-me para um Centro de Dia. Eu ainda não fazia a mais pequena ideia do que fossem doenças mentais, não imaginava que ouvir vozes fosse um sintoma de esquizofrenia. Estava a tomar imensa medicação e continuava convencida de que me estavam a tratar de uma depressão. Ao fim de 7 meses de frequentar o Centro de Dia, arranjei emprego num campo de férias, em França. Contudo, voltei a ouvir falar de mim, nomeadamente duas pessoas minhas conhecidas, que diziam: ‘Faz o que tens a fazer’. Julguei que elas me queriam destruir para salvar a Ingla terra de um ataque nuclear - pelo que deitei fogo a mim própria. A seguir a esta tentativa de suicídio, regressei à Inglaterra para fazer um enxerto de pele e passar mais 3 meses internada num hospital psiquiá trico. Enquanto permaneci no hospital, tiveram-me debaixo duma grande dose de clorpromazina e eu passava a maior parte do tempo em sonhos fantásticos, que depois contava à psiquiatra. Ela dominava mal o inglês, pelo que, certamente, se devia interrogar sobre que diabo se estaria a passar comigo. Nessa mesma altura, cheguei a ter alucinações visuais, coisa que nunca me tinha acontecido fora do hospital. Devem-me ter alterado a medicação para flupentixol, e então comecei a sair do estado psicótico em que a clorpromazina me tinha posto. Após a alta, voltei a frequentar o Centro de Dia. Mas era-me muito difícil sair da cama, sobretudo nos dias em que não tinha de ir ao Centro. Frequentei um curso da Escola Superior Técnica de Sulford, após o que passei a trabalhar numa firma de artigos desportivos, durante 1 ano. Voltei a ter uma vida normal, mas passei a ter que me haver com o estigma de ser uma ex-internada da Psiquiatria. Em Psiquiatria, metade do problema de estar doente é lidar com esse estigma: pouco importa como a questão da doença se resolve. Apesar de doente, tentei manter o contacto com os meus amigos e a maior parte deles lidou muito bem com a situação. 192
À parte algumas semanas de internamento, continuei a sentir-me bem até aos 31 anos. Nessa altura, encontrei um companheiro por quem me senti verdadeiramente atraída. Vamos chamar-lhe Tom. Depois de uma amizade de alguns meses, em que o único contacto físico que tínhamos era através de beijos nas bochechas, apaixonei-me por ele. Escrevi-lhe uma série de cartas e, quando me apercebi de que ele não as lia, saí de Bolton e, na sequência de um namorico fugaz no Sul da Inglaterra, engravidei. Durante algum tempo fui viver para casa de um irmão meu, no Sul. Ouvia a voz do Tom na minha cabeça e imaginava que tinha sido ele que me engravidou. A voz de Tom misturava-se com outras que diziam coisas terríveis dele e das outras pessoas. Como não conseguia livrar-me dessas vozes, tomei uma série de comprimidos para me matar. Voltei a ser internada por mais algumas semanas, mas, como estava grávida, davam-me uma medicação numa dose muito reduzida. Ao longo da minha gravidez, sempre desejei encontrar-me com o Tom. Julgava estar em comunicação telepática com ele. Estava constan temente a ouvir vozes. Parecia que ele estava sempre a dizer-me, na minha cabeça, tudo o que se passava com ele. As coisas que ele me dizia faziam-me gritar para lhe responder, mesmo que alguém estivesse comigo no quarto." Melhorar o controle “Depois de o meu filho nascer, a minha vida melhorou. Se queria tomar conta do meu bebé como devia ser, tinha que me reunificar. Embora ainda ouvisse vozes, comecei a dar-lhes menos atenção. Pensei que, se não fosse capaz de cuidar do meu bebé, poderiam tirar-mo e, quem sabe, levá-lo para adopção, e eu perdê-lo-ia para sempre. Após uma permanência voluntária de 4 meses no hospital (voluntária no sentido em que não fui obrigada a ir; mas, na realidade, não-voluntária, porque o meu filho carecia de cuidado, e eu não voltaria a vê-lo se não tivesse optado por ir para o hospital), fomos os dois para casa, em 17 de Outubro de 1988. Ele continua ao pé de mim. A medicação que estou afazer é apenas uma ampola de 20 mg de decanoato de flupentixol, de 4 em 4 semanas. Oiço vozes através dos meus ouvidos, mas as vozes estão dentro da minha cabeça e não fora. Agora preciso de fazer algum esforço para as 193
ouvir. Se estiver a fa ze r qualquer coisa, como, por exemplo, ver televi são, não as oiço. Num certo sentido, as vozes são uma companhia. Acho que costumava sintonizá-las, como se sintoniza uma emissora no rádio. Creio que elas me ajudam um bocado a pensar nas coisas. É como se fossem pessoas na cabeça a explicar-nos as coisas. M uitas vezes elas são verdadeiras e dão realmente ajuda e, às vezes, espero por esse conforto antes de desligar e ir para a cama. Normalmente, as vozes fazem mais comentários do que críticas. M esmo quando dizem coisas do género ‘Faz o que tens a fazer’, a escolha fina l é minha. Nunca me dizem coisas do tipo ‘Vai ver se o teu filho está bem .’ A explicação mais plausível que encontrei para as vozes é a telepatia. E a única explicação com que me entendo. Muito mais que a da loucura. Telepatia com seres humanos vivos ou mortos. Às vezes, oiço a voz da minha falecida avó: essa voz tem o mesmo toque de humor que ela tinha quando era viva. Às vezes, as vozes dizem o que vai acontecer; mas nem sempre acer tam. Outro dia, tive uma experiência estranha: ouvi uma amiga minha e o marido que falavam de ter um bebé; e efectivamente, dois dias depois, a minha amiga abordou-me para me dizer que ia ter um bebé. Por vezes, as vozes dizem coisas aborrecidas a meu respeito, criti cam-me de uma modo desagradável e fazem -m e sentir que as pessoas andam a dizer coisas de mim nas minhas costas - coisas que nem sequer são verdade, a respeito da minha sexualidade e da minha moral. Ultimamente tenho andado a ouvir a voz do Tom, na minha cabeça, dizendo, entre outras coisas, que vai voltar para mim, que me vai escre ver ou telefonar - tudo coisas que ele não faz. Creio que a origem do meu problema ainda não fo i verdadeiramente compreendida, nomeada mente o meu am or pelo Tom e a rejeição que ele me faz. Certo dia, quando eu confessava o que sentia por ele, a minha assistente social disse imediatamente: ‘N ão estás doente outra vez, pois n ã o ...? ’ Ainda hoje creio que uma situação psiquiátrica coloca ao paciente um problema com o qual não é capaz de lidar de uma maneira normal, problema esse que se manifesta sob a form a de comportamento anormal. Penso que os psiquiatras deveriam tentar fazer algo mais pela identifi cação desses problemas e ajudar os pacientes a resolvê-los por si. Então sim, acredito que a cura para os problemas de saúde mental seria mais simples. À medida que o tempo passa e a dose da medicação vai sendo pro gressivamente reduzida, vou-me tornando mais confiante na minha ca194
pacidade de lidar com o facto de ouvir vozes. Só espero que os psiquia tras aprendam a ser mais comedidos na prescrição de medicamentos e tentem reduzi-los ao mínimo, mesmo quando o paciente está internado."
Décimo contributo pessoal A . B . é um h o m em d e 3 4 an os, solteiro , c o m u m filh o . T rabalha por con ta própria, fa zen d o e v en d en d o jó ia s e en sin an d o f ai chi* em diversas a g rem iações e cen tros d e ed u ca çã o d e adu ltos.
“Terminado o liceu, não me apetecia ir trabalhar, de maneira que fu i para a universidade estudar Geografia Social. Quando acabei o curso, não havia nada que verdadeiramente eu quisesse fazer. Então comecei a fazer trabalhos incertos, do género vender tapetes. Quando passei a trabalhar 5 dias por semana, pensei que talvez pudesse arranjar um emprego decente. E fo i assim que comecei a trabalhar num jornal, em Oxford. Decidi que não gostava da vida que estava a levar e fu i passear pelo estrangeiro. Quando voltei, fu i ter com o meu irmão a M anchester e instalei-me em casa dele. Arranjei um emprego do género trabalhador de saúde. Na altura, eu encarava as coisas muito negativamente e an dava muito confuso sobre o rumo a dar à minha vida. Não me via como um homem de sucesso, andava um bocado ao deus-dará. Passados nove meses, comecei a ouvir vozes. Lembro-me, quando esta experiência excepcional aconteceu pela primeira vez, que estava num quarto e me senti invadido por uma estranha energia. Entrei em ligação com uma força relacionada com a morte, uma força que tinha a ver com entes. Compreendi subitamente uma nova dimensão global das coisas. Coisas que eu tinha lido separadamente umas das outras passa vam a estar agora, de repente, relacionadas com esta nova experiência. Sentia-me muito bem e muito feliz com a experiência que estava a ter. Da primeira vez que fiquei psicótico, isolaram-me. Disseram à minha mãe que o meu diagnóstico era esquizofrenia paranóide. Tinha eu 24
* Tai chi - Sistema chinês de exercícios físicos e de autodefesa, caracterizados pela prática de movimentos rítmicos lentos. 195
anos. Poucos dias depois, comecei a ouvir vozes. Para mim, ouvir vozes era apenas uma parte do conjunto de fenóm enos que vivi durante aquilo a que a Psiquiatria chama episódios psicóticos. Esses fenóm enos têm-me acontecido nos últimos dez anos. Entre eles incluo ouvir vozes (que sinto como pensamentos que pa recem projectados na minha mente a partir de uma fonte exterior), de lírio e ideias paranóides de todo o tipo, alucinações visuais, estados de grande clareza de consciência, depressão, etc. E embora essas experiên cias não se excluam mutuamente, fu i forçado a lidar com cada uma delas de per si.”
Ouvir vozes “Essas vozes interiores pareciam vir de fontes do exterior. Muitas vezes, a fonte era desconhecida, mas eu julgava que as vozes vinham (ou eram elas que me diziam que vinham) duma fonte identificada. Essas fontes incluíam uma grande variedade de pessoas, vivas e mortas (um aborígene da Austrália, um índio americano, pessoas de várias confissões religiosas, figuras ocultas, animais, plantas, extrater restres, antepassados, personagens mitológicas, Belzebu, espíritos do céu e do inferno, outros pacientes do hospital e pessoas que eu encon trava casualmente). A maioria dessas vozes era benigna. Às vezes, davas e a comunicação e eu podia conversar com elas; outras vezes, não. Uma voz, de origem desconhecida, anda quase sempre à minha volta, mas eu sei que está do meu lado. Acompanha os meus pensamentos com comentários e conselhos como ‘Sim’, ‘Não’, ‘Talvez’, ‘Bem’, ‘Mal’, ‘Muito bem’, ‘Tem cuidado’, ‘Está certo’, ‘Está errado’, etc. Não ligo muito aos conselhos que as vozes me dão, e muitas vezes até faço o contrário do que elas me dizem, sem consequências de maior. Àv vezes, comunico com essa voz, embora isso possa ser um bocado difícil e até frustrante. É frequente a voz dizer-me ‘Não te preocupes. Vai dar tudo certo’ - o que me dá algum consolo, embora isso seja dito em situações tais que tenho que ficar na dúvida acerca da sinceridade do que ela me diz. Uma vez por outra, as vozes são negras e diabólicas e a experiên cia torna-se desagradável, especialmente quando sinto a presença do dono da voz. Outra coisa é quando deixo que as vozes falem por meu 196
intermédio, o que pode ser um pouco preocupante, sobretudo quando dizem coisas que metem medo. Mais raramente, a pressão que fazem para que as deixe falar por intermédio de mim é tão forte que o melhor que posso fazer é deixá-las falar, e tapar a boca para esconder das pessoas presentes o movimento dos lábios. Nalguns casos fo i a única maneira de as suportar. Por ocasião da Guerra do Golfo, tive realmente uma experiência muito estranha, deste tipo, quando uma voz, num tom insolente, teimava em dizer que tinha chegado a hora de fazer sangue e que estavam todos a pedi-lo. Se alguém a ouvisse, ficava chocado. Uma outra form a de comunicar vem sendo fazer perguntas que re cebem resposta simlnão através de acenos da minha cabeça comandados por elas. Isto acaba por se tornar bastante desagradável, porque parece im plicar uma certa possessão. Algum as destas experiências são involuntárias, embora eu tenha bastante interesse em saber o que as vozes têm para dizer - e, por isso, ando a investigar o fenómeno.
Alucinações “As alucinações podem ser boas e más: o mundo pode transformars e num céu ou num inferno, num abrir e fechar de olhos. O meu tipo de experiência mais frequente envolve pessoas que ganham, subitamente, características demoníacas. É mais frequente quando há muita gente à minha volta: por exemplo, no centro de uma cidade. Esse tipo de expe riências pode adquirir aspectos bastante estranhos e assustadores, em bora sejam tão frequentes que a gente acaba por se habituar a elas. Como sei que mais tarde ou mais cedo têm um fim , acabo por ignorá-las sem dificuldade. O lado agradável da experiência é proporcionado por certos momentos cheios de vida, que desembocam num passeio pelo parque ou, aqui e além, numa viagem pelo paraíso. Os dois tipos de alucinações que referi são estados de percepção alterados. Surgem espontaneamente e com frequência durante os episó dios psicóticos. Nessas alturas, oiço e vejo coisas que não existem, mas que, naquele momento, são reais para mim. Agora sei que não são reais. Por exemplo, um dia encontrei um disco no meu quarto. A capa do disco tinha a fotografia de alguns amigos meus que formavam um grupo. Eu tinha ideia de que eles tinham gravado um álbum. Pus o disco a tocar. Noutra altura encontrei uma carta mas, quando a fu i verificar, afinal não 197
era carta nenhuma. Agora confiro tudo e, sobretudo, tenho o cuidado de não desconcertar as pessoas nem desconfiar delas. Então o que faço é dizer, por exemplo: ‘Sonhei que vi gente à porta’. E observo a reacção: se a pessoa com quem fa lei pensa que é um sonho engraçado, não falo mais nisso; se essa pessoa diz que de facto está gente à porta, então sei que é mesmo real. ”
Delírios e ideias paranóides “Há imensos tipos. As vezes penso que nunca mais vou cair noutra. Já passei por tanta coisa que me parece pouco provável existir outro tipo qualquer que eu nunca tenha experimentado. Porém, o princípio da criatividade não tem limites e um novo delírio ou ideia paranóide, cui dadosamente arquitectados para parecerem plausíveis, vêm bater de novo à minha porta. Quando se está num estado delirante, delírio e realidade são a mesma coisa. Leva-se a coisa a sério, mesmo que o nosso mundo se torne absurdo à reflexão. O delírio e as ideias delirantes podem ser bons, no sentido em que o mundo se torna mágico, estimulante, e onde tudo acaba em bem; também podem ser maus, no sentido em que o mundo se torna um lugar sombrio e perigoso. Alguns delírios e ideias delirantes são realmente uma coisa boa, que me inspira. Gosto de ser criativo e, por isso, sempre que estou num estado desses ponho-me a pintar. O mais grave de tudo é ser espiado, perseguido, acusado e am ea çado por todo o género de coisas terríveis que me acontecem. Esses delírios e ideias delirantes põem-me em pânico. Alguns deles contêm um factor de forte plausibilidade e são muito difíceis de afastar. Sobrevivem sob a form a de teias subconscientes, muitas vezes bem complicadas. Sempre que surge o elemento de prova que parece completar o puzzle, o delírio surge subitamente na sua máxima pujança e subjuga-me por completo durante algum tem po.”
Fenómenos físicos “Quando fico psicótico, experimento, do ponto de vista físico, um forte sentimento de bem estar e tenho uma inacreditável sensação de imensa energia interior, que possui características de realidade e 198
de reacção a forças invisíveis. Sinto-me tão saudável e tão cheio de energia que me acho capaz de feitos incríveis de força e de agilidade. E não devo andar muito longe da verdade, tanto mais que faço coisas que em condições normais não sou capaz de fazer. Por exemplo, sobre vivo a dormir muito pouco. Contudo, o fenómeno físico mais incrível é a capacidade de reagir a forças exteriores invisíveis. E claro que se trata de forças interiores, mas não é isso que parece quando estou nesses estados. Investiguei este fenóm eno até onde pude, o que me levou a factos bizarros e misteriosos. Descobri que, sempre que prescindo da autoria dos meus movimentos, fico transformado num autómato. Chamo a isso movida*. Esta m ovida faz-m e executar uma dança estranha parecida com o T a i chi - que só mais tarde viria a aprender. Noutras ocasiões, era levado a adoptar posições semelhantes às do yoga. Um padrão de movimentos que se costuma repetir, e se tornou uma espécie de ritual, consiste em fazer-m e dobrar até tocar os dedos dos pés e, inversamente, dobrar-me para trás arqueando as costas. Em seguida, os meus braços abrem-se para fora e eu giro para um lado e para o outro, de maneira a que as-m ãos descrevam um círculo completo. Uma vez nesta posição, conjuro vários espíritos animais - já não me lembro como é que esta ideia me surgiu. Os espíritos desses animais entrariam em mim e eu passaria a movimentar-me como se compartilhasse algumas das suas características. As mais interessantes experiências de m ovida são, de longe, as que me fazem caminhar. A mais notável durou uma noite inteira e traduziu-se numa jornada de cerca de 25 km. Tudo começou quando, estando sozinho no quarto, resolvi tentar praticar um pouco de m ovida. Depressa dei por mim a andar em círculo no quarto; depois comecei a girar em torno de mim próprio, cada vez mais rápido, como se fosse um dervixe rodopiante **. De facto, parecia-me estar a girar a uma velocidade
* Following, na versão inglesa. No sentido em que é utilizado no texto, trata-se de um neologismo, que entendemos substituir por um neologismo português o mais equivalente possível. ** Dervixe: membro de uma das várias ordens religiosas esotéricas muçulmanas sufis, que fazem voto de pobreza e austeridade. Algumas dessas ordens praticam rituais extáticos, entre eles o canto e a dança. Por isso, se designam também, con forme o caso, por dervixes dançarinos, dervixes rodopiantes e dervixes gritadores. 199
louca. Subitamente, fiquei parado, quase imóvel, enquanto o quarto passou a girar à minha volta. Nesse momento, senti um impulso para sair e dar um passeio. Estava com curiosidade de saber onde isto ia parar, e lem bro-me de ter imaginado os possíveis destinos do passeio. Umas horas depois, convencido, pelo tempo que tinha passado, de que estava perto de Londres, saí da estrada e cheguei casualmente a uma povoação. A aldeia tinha um pequeno relvado triangular com uma cerca de espinhos. Dei comigo a andar em volta desta cerca. A certa altura, virei-me para ela e arqueei-me para trás; pensei que estava prestes a estabelecer contacto com qualquer coisa e que esse, se calhar, era o tal destino do passeio. Então, súbita e rapidamente, fui sacudido da posição em que estava e a minha cabeça subia e descia na minha frente. Parei abrup tamente e dei com os meus lábios beijando um dos espinhos da cerca. Isso alarmou-me um bocado e deixei de praticar movida.” Medo e vulnerabilidade “As minhas experiências surgem espontaneamente e começam por me dominar. Podem acompanhar-se de estados de humor que vão do êxtase a um medo enorme. O pior ainda é o medo e a vulnerabilidade. A vulnerabilidade é mais difícil porque, durante a minha experiência, vivo num mundo mais abstracto. Para as minhas psicoses a paixão não existe, mas elas são influenciadas pelo que se passa no mundo real. Por vezes, são tão intensas que chego a esquecer-me das circunstâncias concretas. Quando passo por elas, faço por não me ralar. Ai minhas psicoses são influenciadas pelo mundo que me rodeia e torno-me mais vulnerável à influência das outras pessoas.” Melhorar o controle “A princípio, não fazia ideia nenhuma de como lidar com as minhas experiências. No entanto, com a repetição da experiência, fui aprenden do, excepto em crise, a lidar com a maior parte desses fenómenos. Para mim, como já tive a ocasião de dizer, ouvir vozes é apenas uma parte da vasta gama de fenómenos que tenho vivido nos últimos 10 anos. Por exemplo, pretender intervir sobre as vozes pode levar-nos a meter outras 200
pessoas ao barulho, o que habitualmente cria uma situação desagradá vel e um comportamento bem esquisito. Ao arrastar as pessoas para os meus delírios, posso incomodá-las a sério. E também posso incomodar as pessoas na medida em que elas me atacam. Ao longo de todos estes anos, cheguei à conclusão de que esses fenómenos têm um padrão e que esse padrão é do tipo montes e vales. Na fase inicial, passei muito tempo no vale. Digamos, tinha experiências dessas cerca de I hora por dia. Sobravam 23 horas para mim. Depois passaram a ser 2 horas por dia, 3 horas por dia. A certa altura, eu já estava no cimo do monte e, então, já só tinha 1 hora por dia livre dessas experiências. Mas como, ainda assim, tinha 1 hora para reflectir, con seguia manter uma certa distância. Nunca tomei medicação nenhuma. Quando atinjo o cume do monte, não tenho tempo para mim, mas ando mais activado e dedico-me a explorar tudo. O que de mais importante me aconteceu nestes anos todos foi ter conseguido escapar aos cuidados psiquiátricos. Não quero medicação. Assim, quando estou psicótico, evito as pessoas do meu círculo familiar. Não quero ter as minhas experiências à frente dos meus pais, porque pode acontecer que eles me fechem em casa. Os meus amigos ficam preocupados quando me vêem em crise, mas agora já me conhecem. Quando se está com alucinações não quer dizer que não se possa sair de casa para comprar roupa e, mesmo que estejamos delirantes, conti nuamos a precisar de comer. De certo modo, a vida quotidiana continua. Agora, quando oiço vozes já sou, em certa medida, capaz de as pôr um pouco de lado, como se fossem uma segunda natureza. Se é certo que há ocasiões em que a voz ainda me domina por completo, também é certo que chega um ponto em que ela perde força. E há também sempre um ponto onde ainda consigo manter a capacidade de decisão. Como da última vez que decidi que não queria fumar marijuana, porque o delírio estivera demasiado forte, demasiado real, no dia anterior. E, se me pusesse a fumar marijuana, tinha receio de mergulhar no delírio e não sair mais dele. Aprendi a ser muito cuidadoso no que digo. A princípio, quando tinha contados espirituais, sentia necessidade de falar deles. Agora tento comunicar mais por anedotas e pequenas histórias e acho que as pessoas se interessam mais e se assustam menos. Às vezes não é possível evitar o envolvimento dos outros. Muitas vezes eles querem ser envolvidos. Chegam e interessam-se. E um proble ma quando se tem um delírio e se quer contá-lo a alguém, porque se 201
deseja que alguém diga ‘Isso não é bem assim ’. Então aprendi a dizer que estou a ter uma ideia maluca e, logo a seguir, conto o que se passa. Vejo qual é a reacção das pessoas. As vezes sinto que, se alguém me dissesse ‘Sim, é verdade’, ficava chocado, porque estava com vontade que fosse imaginação minha. Muitas vezes podem os alimentar a nossa própria paranoia, porque se dissermos a alguém ‘Passa-se isto assim , assim ’, esse alguém pensa ‘Por que é que ele pensa aquilo?’ Então vai contar a outra pessoa o que acha daquilo que nós dissemos e vai alterar um bocado. E, quando ouvimos de uma terceira pessoa essa história já toda modificada, ficam os adm i rados como é que isso aconteceu. É difícil explicar. As pessoas exage ram, a história começa a engrossar e foge ao nosso controle. Outra barreira a que nos possam os entender com essas experiências e manter os pés bem assentes no chão é a natureza aditiva das experiên cias superlativas. É uma espécie de droga, é algo que as pessoas dariam dinheiro para experimentar: delírios de grandeza, o ego agarrado a um exagerado sentido do self. Os delírios negativos não são coisa que se deseje a ninguém mas, na verdade, não há maneira de impedir que coisas dessas aconteçam. Talvez se possa fazer alguma coisa por preveni-las ou, pelo menos, dificultá-las. Estar acordado até muito tarde, beber e fum ar demasiado, abusar da cerveja e do café — essas coisas levam à exaustão e provocam mais confusão. Como o alcoólico, talvez bebamos simultaneamente o bem e o m al que estas coisas fazem . Há muitas des cobertas valiosas que surgem durante estes estados. Os exploradores involuntários do subconsciente (ou como lhe queiram chamar) estão em óptima posição para trazer qualquer coisa à superfície. Algumas dessas explorações conduzem aos confins da morte. Outras podem levar à descoberta de ideias, de jóias sem preço, de novas maneiras de ver as coisas, de instrumentos criativos, etc. Esta maneira de pensar fa z aumentar as minhas capacidades. Já que isto me está a acontecer, tenho de encarar a situação da melhor maneira que puder. Tendo em conta os pontapés que levei, os embaraços por que passei, os prejuízos que tive por causa do que acontece comigo, podia ser uma pessoa muito ressabiada. No entanto, considero-me o mais afor tunado dos homens e estou muito satisfeito com a cabeça que tenho. No mínimo, sou um explorador das florestas-virgens da ilusão. A minha vida é uma aventura, não necessariamente segura nem confortável, mas sem pre aventura. Aquilo que sou não depende da maneira como os outros 202
me vêem. Rejeito todos os rótulos. Quando encontro os que gostariam de me classificar, o mais provável é que veja neles uma gente muito pequenina, de mente raquítica, que não posso levar muito a sério. A minha situação é bastante estável e creio que hei-de ser capaz de lidar com o próximo episódio ou momento de crise que venha a acontecer.”
Décimo primeiro contributo pessoal L. P. é um a m u lh er d e 2 6 an os, cu jo d ia g n ó stico m éd ico in clu ía a esq u izofren ia. A p ó s um p eríod o d e 5 an os em q u e ora esta v a fora ora dentro d o h osp ital p siq u iátrico, d esem p en h a agora as fu n ç õ e s de presid en te d ’A V o z d o s S o b rev iv en tes (Survivors Speak O ut).
“Na minha vida sempre tive uma intensa actividade espiritual, a que sempre dei muita importância. Tenho necessidade de contacto espiritual. Lembro-me de, por volta dos meus 10 anos, ter tido um ano de sonhos sucessivos, como se fosse uma telenovela. Todas as noites a sintonizava. Nesses sonhos, eu era indestrutível e o personagem que me perseguia também. Cada um de nós esforçava-se por aterrorizar mais o outro. Eu tomava sempre o mesmo tipo de form as físicas: um crucifixo ou uma caixa metálica. Por essa mesma altura, comecei a sentir uma presença espiritual do lado de fora da porta do meu quarto. Felizmente, havia qualquer coisa à porta que impedia essa presença de passar e entrar. Mas eu sabia que se esse espírito pudesse entrar ia ser nocivo para mim. Sentia que ele fazia pressão sobre a porta e às vezes até via a porta ceder um pouco à sua pressão. Durante 7 anos, permaneci dentro do meu quarto, dia e noite. Não creio que alguém pudesse acreditar em mim e por isso é que, nos últimos 7 anos, nunca falei a ninguém sobre o assunto. Aos 17 anos, entrei em contacto com um terapeuta espiritual. Conhe ci-o literalmente por acaso; não andava à procura dele. Ele era amigo dum amigo meu que notou que eu andava perturbada, cada vez mais perturbada desde os meus 14 anos. Esse amigo sugeriu-me que um terapeuta espiritual talvez me pudesse ajudar. Quando vi o homem, falei-Ihe do espírito que está à porta do meu quarto. E ele perguntou-me: ‘Por que não falas com ele? ’ - e assim fiz. Falei com o espírito e ele foi-se embora. Então, um dia acordei e senti-me como se o meu próprio espírito 203
tivesse morrido. Foi devastador. Senti-me uma nave vazia. Pensei que, se o meu espírito tinha morrido, o meu corpo devia ir com ele - e fiz uma tentativa de me matar. Quando recuperei, tudo tomou uma aparência nova. Reparei que um espírito substituto tinha entrado no meu corpo. Senti que esse ente era muito mau: o meu corpo sentia-se contaminado, era como se alguma coisa estivesse a apodrecer dentro de mim. Quis-me ver livre daquilo e fui a um padre, que me fez um exorcismo. Também aqui foi um amigo dum amigo meu que me disse: ‘Bom , conheço um padre assim , assim; porque não vais ter com ele?’ - e assim fiz. Falei-lhe do ente que habi tava em mim, e ele fez-me o exorcismo. Eu nem imaginava que ele era, nem mais nem menos, o exorcista-mor da Igreja de Inglaterra. Fiquei bem por uns tempos, mas o ente voltou. Agora já sei por que é que voltou: tenho uma abertura na minha aura, e essa abertura situa-se no meu peito; sei o ponto exacto. Aprendi a detectar quando é que a aber tura surge, de maneira que, quando ela abre, é-me fácil tapá-la com as minhas mãos ou com o meu companheiro. Se fizer isso, os entes não podem entrar; sou capaz de os deter. É tão simples como isso. Voltemos atrás, aos meus 19 anos: tinha então aquele ente mau dentro de mim. Mas havia ainda um outro espírito, que me seguia de perto: era um espírito masculino, que me disse chamar-se Fred. Disse-me que era o advogado do Diabo e eu sentia-o sempre junto do meu ombro direito. Nos anos imediatos, tudo ficou um tanto obscuro; é-me difícil trazer à memória qualquer coisa que tenha acontecido nessa altura. Não sei se Fred tinha alguma coisa a ver com o ente que estava dentro de mim. Era muito raro mandar-me fazer coisas. Os seus comentários a meu respeito eram persecutórios e punham-me sempre em baixo. Fred nunca me re velou por que tinha vindo, mas dizia-me que eu era uma merda, que era gorda, feia e estúpida. Dizia-me o que pensava de mim e cada uma das palavras que dizia caía dentro da minha cabeça. Era como se a minha cabeça fosse uma taça, alguém lançasse um objecto para dentro dela e o objecto batesse no fundo. Nunca falei do Fred a ninguém. Ele às vezes fazia coisas absoluta mente pavorosas. Mandava cobras para me atacar, e foi quando fiquei muito alterada. Nesses momentos, era como se eu ficasse catatónica, por estar completamente aterrorizada. Ele mandava as cobras de uma ma neira muito própria: dava-me conhecimento, dizendo: ‘M andei-tas, aí 204
vão ela s.’ Fred também me dizia a cor delas. Então, sentava-me e pen sava: ‘Merda! o que é que eu vou fazer?’ Então, ouvia o bater das
cabeças das cobras contra a porta. Mas era por baixo da porta que elas entravam. Às vezes, via-as literalmente a assobiar no quarto, para cá e para lá. Não era um ver exactamente como ver esta cadeira ou esta mesa. É difícil explicar como é que eu via, porque não era desse tipo de visão que se tratava: era mais do género de conhecer as dimensões delas, a sua forma e a sua envergadura - era uma espécie de visão diferente. Por vezes, era um par de pequenas cobras que entrava na minha bebida. Quando começava a engolir, imaginava que tinha uma cobra no meu estômago, que me mordia por dentro e depois se dissolvia. As vezes, elas iam para as minhas pernas e de vez em quando uma delas mordia-me o pescoço ou o punho e ficava aí. Então, eu ficava imobilizada, apavorada e sem fala. Às vezes, via a cobra entrar no fogão a gás aceso e ficar queimada. Eu sentia o cheiro a cobra queimada. Os assobios delas eram horríveis. Quando se juntavam muitas, o som saía mais abafado. Enquanto estas coisas se passavam, era muito difícil dizer às pessoas o que estava a acontecer; por isso, sentia-me muito desampa rada e não sabia o que fazer. Comecei a ter outros tipos de experiências sonoras e visuais com cores. Ia pela rua fora e tudo o que fosse vermelho saltava em direcção a mim: uma luz vermelha de semáforo, umas meias ou um colete que alguém trouxesse vestido, tudo saltava em direcção a mim. E diziam: ‘Contam inada!’ Simplesmente isto: ‘Contam inada!’ Ou, então, saltava em direcção a mim tudo o que fosse verde, e dizia: ‘Estás viva!’ O verde foi a primeira experiência verdadeiramente positiva que tive. Ia pela rua fora e sentia-me eufórica. Vocês já ouviram falar da Marks & Spencer? Na frontaria do edifício há um reclame verde. Pois as letras mudaram e formaram a frase ‘Estás viva!’ E senti-me encantada, feliz com esta experiência. Havia uma certa alternância entre vermelho e verde, mas eu quase sempre preferia que fosse verde. Por vezes, observava o meu corpo a aumentar. Acontecia em minutos: quase sempre começava pelas mãos e alastrava ao resto do corpo; dava-me a impressão de que estava a sofrer uma mutação. Quando isto sucedia eu não ouvia vozes, mas era uma coisa muito aflitiva. Gostava de contar-vos uma experiência muito importante que tive com cobras. Foi a primeira premonição que tive a respeito delas. Uma noite, veio uma cobra que me fez passar um mau bocado: forçou a 205
entrada na minha boca e penetrou no meu corpo, de onde saiu pelo canal do parto. Eu sabia que tudo isso tinha a ver com a minha irmã, que estava grávida. Quando telefonei à mamã para saber como estavam as coisas, ela disse que a minha irmã tinha dado à luz um bebé com um ligeiro defeito na face: a menina tinha lábio leporino. Eu tinha pressen tido que alguma coisa estava a correr mal quando resolvi telefonar à mamã e senti que tinha a ver com a minha irmã, por a cobra ter saído pelo canal do parto. Foi uma experiência horrorosa, mas ao mesmo tempo incrível, por ter um significado autêntico. Foi a primeira e única vez que uma cobra me disse verdadeiramente alguma coisa. Com o passar dos anos, tornei-me capaz de captar um mal-estar geral, e não estou sozinha nesta aptidão - outros ouvidores de vozes passam por essas experiências. Somos capazes de captar se algo de mal está para acontecer; é um mau pressentimento que depois se confirma nos noticiários: um avião que se despenhou, uma pessoa que se aleijou, etc."
A Psiquiatria “Entrei em contacto com a Psiquiatria aos 17 anos. Fui-me queixar que comia e vomitava, e puseram-me o rótulo de transtorno alimentar. Quando falei de ir a um exorcista, eles começaram a duvidar do diag nóstico que tinham feito. E caí na asneira de falar ao psiquiatra no Fred e nas cobras. E o psiquiatra disse: ‘A h, muito interessante... Estou a v er... Sei de que é que m e estás a fa la r...’. Rotulou-me de esquizofrénica e, sem eu saber, informou os meus pais. Lembro-me de ele dizer: ‘Apa nhaste uma doença para m uitos anos’, mas eu não percebi onde ele queria chegar. Durante 5 anos, até fazer os 21, a minha vida continuou nessa em brulhada. Nesse tempo, andava fora e dentro do hospital. Estivesse eu internada, em ambulatório ou na urgência, estava sempre a fazer mal a mim própria. Para onde fosse, quase sempre ia o Fred também. O es pírito maligno estava ainda no lugar do meu espírito. Sentia-me como morta: como podia estar viva, se o meu espírito não estava dentro do meu corpo? Eu não existia. Comecei a fa ze r mal a mim mesma porque me sentia impotente - o que era uma reacção ao tratamento que me estavam a fazer. Cortei os pulsos para exprimir a minha dor e a minha 206
raiva. E, para lá da minha frustração, também como uma form a de resolver tudo o que me estava a acontecer, nomeadamente o Fred e as cobras. Não fo i o espírito nem o Fred que me mandaram fazer isso: fiz isso de minha livre e espontânea vontade. Por essa ocasião, ouvia também uma voz fem inina a guinchar. Esse barulho estava junto dos meus ouvidos, mas fora da minha cabeça. Era como se fosse uma mulher de cada lado, a guinchar. Creio que era uma metáfora do meu próprio grito interior. Por vezes, não era capaz de gritar nem de chorar. É claro que num hospital não se pode fazer isso, mas mesmo fora do hospital sentia que não era capaz de o fazer. Assim, creio que o que eu ouvia era o meu próprio grito, do qual me tinha dissociado. Porque, quando o sangue corria de uma ferida, sentia uma espécie de lágrimas. O ferim ento causava-me o choro. Como é óbvio, não recebi grande ajuda da Psiquiatria. Quando estava congelada, rígida, na altura em que as diferenças perceptivas eram muito grandes, picaram-me o corpo todo. Submeteram-me a técnicas de modificação do comportamento e administraram-me fármacos. Não ten do qualquer controle sobre a minha vida, era-me muito difícil saber o que fazer. No entanto, tentava comportar-me de acordo com aquilo que esperavam de mim. Estando a ser tratada como uma criança, tinha de comportar-me como uma criança. Era o que eles esperavam de mim e, por isso, tinha de corresponder às expectativas deles. Quando saí do hospital e fu i para o hospital de dia, tentaram fazer chantagem para eu tomar injecções de tranquilizantes. Foi quando eu disse ‘N Ã O ’. Foi a primeira vez que realmente me impus. Foi a primeira vez que fu i auto-afirmativa. Tomei então a decisão de pôr a Psiquiatria de lado. Entrar em contacto com outros ‘sobreviventes’ viria a ser o ponto de viragem da minha vida. Foi quando pude começar a reparar em todo esse inferno que estava a acontecer. Só quando deixei a Psiquiatria, deixei de ser medicada e deixaram de me controlar é que pude reparar no que me tinha acontecido. Só quando entrei em contacto com outros sobreviventes é que me fo i possível falar da minha raiva e validar os meus sentimentos. Senti-me à vontade para falar das minhas experiên cias, sem medo de ser julgada ou de que me achem estúpida ou doente. Foi um alívio enorme. Fiz alguns amigos que me aceitaram tal como sou. Se sentisse as cobras a chegar, já não tinha que fugir precipitadamente. Já era capaz de ficar onde estava. 207
Penso que fo i quando o Fred se fo i embora que aumentou a minha compreensão do que se estava a passar. No entanto, não fo i uma coisa súbita, do género de acordar um belo dia e verificar que já não havia Fred. Foi um processo gradual, em que a presença de Fred se tornou cada vez menor. Todavia, as cobras ficaram . Fred já não as envia e custa-me a perceber por que é que elas ainda continuam a incomodar-me. Mas agora a minha maneira de lidar com o problema é muito diferente."
Melhorar o controle “A princípio, eu não era capaz de falar do que estava a acontecer. Mas, a pouco e pouco, fu i ganhando coragem. Um dia, disse a um amigo: ‘A s cobras estão no quarto.’ Ele falou com elas e disse-lhes: ‘Vá, saiam daqui, deixem a L ouise em paz!’ A té que enfim alguém acreditava em mim! Até que enfim alguém me levava a sério e fazia alguma coisa! Talvez isso não convencesse as cobras a ir embora, mas já não me sentia tão isolada. Talvez isso não me ajudasse a dizer que as cobras não eram reais, porque eram. Não há nenhuma maneira de negar o que me estava a acontecer. Realmente libertador para mim é o facto de o meu companheiro ser particularmente bom a ajudar-me a lidar com as cobras. Se alguma se agarra ao meu corpo, digo ao meu companheiro: ‘Está uma na minha m ão.’ Digo-lhe o tamanho que ela tem e ele ajuda-me a correr com ela; pega nela fisicam ente e atira-a pela porta fora. Ele resolve por mim esse tipo de problemas, porque ainda não sou capaz de o fazer sozinha. Contudo, a minha capacidade de lidar com as cobras foi-se desenvol vendo. E muito raro que esteja completamente incapaz de o fazer; se estou, é apenas por algumas horas. Sei que, mais tarde ou mais cedo, acabam por ir embora, o que me dá força para ser mais auto-afirmativa com elas. Na semana passada havia cobras por toda a cama e eu disse: ‘V ão-se foder, ponham -se a andar daqui!’ Quando fico zangada, elas vão-se embora, ainda que isso leve a noite inteira. O ano passado, quando eu estava num congresso, o vestíbulo estava repleto de cobras. Eu andava por ali, completamente transtornada, tentando pôr os pés nos espaços entre elas. Alguns amigos meus ficaram ao p é de mim a noite inteira. Não havia nada que os obrigasse a estar ali. Não fu i capaz de dizer nada acerca das cobras até de manhã. Os meus amigos perm anece 208
ram junto de mim para impedir que alguém pensasse: ‘Esta m ulher é bem estranha, é m elhor chamar um m édico ou uma am bulância.’ Os meus
amigos protegeram-me disso. Levei a noite inteira mas consegui desembaraçar-me das cobras. A maneira como lido com elas depende, pois, do estado de perturba ção em que me encontro, isto é, da maneira como a vida esteja a correr. Se me sinto mais perturbada, tenho mais dificuldade. Quando me sinto mais forte, sou capaz de me desembaraçar delas dizendo-lhes, simples mente, que se ponham a andar. Agora sinto-me com mais força; sei que elas podem vir a qualquer momento e morder-me, e as mordeduras delas fazem mal, mas sei que elas mais tarde ou mais cedo se vão embora. A certa altura, comecei a acreditar que havia de chegar o momento em que elas já não se dirigiriam mais fisicam ente para mim, o momento em que eu as poderia mandar embora antes que elas fossem longe de mais. Sei que já atingi esse ponto. O meu espírito voltou ao meu corpo. É difícil precisar o momento exacto em que ele regressou. Mas, sem dúvida, fo i quando eu já estava a pôr a Psiquiatria de lado. O meu espírito abandona-me periodicamente, mas isso já não constitui uma catástrofe para mim. Cada vez que o espírito me abandona já não sinto necessidade de me matar. Se o meu espírito não está comigo, sinto-me muito deprimida, mas sei que ele há-de voltar, mais tarde ou mais cedo. Tenho aprendido imenso com o meu companheiro, porque ele próprio tem uma grande experiência pessoal de vozes e entes. E óptimo falar com ele sobre essas coisas: é isso que fa z a diferença. Ganhei domínio sobre as minhas experiências e encontrei o meu próprio significado para elas.”
Décimo segundo contributo pessoal A . L . tem 4 2 an os e o u v e v o z e s d esd e o s 10. C o m eço u agora a d e se n v o lv e r u m a série d e estra tég ia s q u e o aju d am a lid ar co m a situ ação. P resen tem en te, é o C oorden ador do F orum L am b eth para a Saúde M ental. “Lembro-me de ouvir vozes desde a mais tenra idade, sempre asso ciadas à visão de uma cara ondulante de sorriso malicioso. Agora já não tenho essa visão. Tinha eu cerca de 10 anos quando as vozes se tornaram agressivas e difíceis de lidar. Ao longo da minha infância e adolescência, 209
um membro da minha fam ília abusava sexualmente de mim. Nessa altura, as vozes estavam sempre presentes e lembro-me que elas me arreliavam, falavam para mim e me faziam ameaças. Lembro-me de viver mergulha do dentro de mim próprio: se é certo que eu ia à escola, a verdade é que me sentia de fora da corrente principal de actividade. Tinha um amigo chamado Trevor, que estava ao corrente das minhas vozes. Ele dizia que isso o assustava, mas não me rejeitava e éramos muito amigos. No entanto, as vozes começaram a dominar-me de tal maneira que passava horas a responder-lhes e andava sempre distraído por causa disso. Aos 14 anos levaram-me a um pedopsiquiatra que me internou num hospital enorme, que tinha uma unidade só para crianças. A verdade, porém, é que me puseram numa enfermaria de adultos. Puseram-me o diagnóstico de esquizofrenia e deram-me injecções de decanoato de flufenazina. O efeito real dessas injecções fo i tirar-me a capacidade de lidar com as vozes; as minhas emoções ficavam embotadas e a minha mente não era capaz de me ajudar a controlar as vozes. Estavam sempre a mudar-me de um hospital para outro. Nunca nin guém procurou saber o que eu pensava ou sentia, e sempre que dizia que ouvia vozes, ou mandavam-me fazer um esforço para melhorar, ou da vam-me vários coquetéis de medicamentos. A Psiquiatria, para mim, tem o hábito muito desagradável de transformar experiências vulgares em experiências extraordinárias. Ela confisca-nos a experiência, obscurece-a, desfigura-a e, por fim , devolve-a à procedência, esperando que lhe fiquem os muito gratos por isso. Nunca ninguém me perguntou como ia a minha vida em casa. Na vez de estarem a cuidar de mim, parecia que me estavam a gerir: eu não passava de uma das muitas almas humanas ali armazenadas. As experiências de abuso sexual por que passei deixa ram marcas físicas, emocionais, espirituais e psicológicas, e estou em crer que esses quatro elementos estão estreitamente relacionados com as quatro vozes que oiço. Em boa verdade, o problema não estava nas minhas vozes, mas mais na atitude da sociedade para com elas. Ao tentar abafá-las ou exorcizá-las, através de medicação ou de electrochoque, a Psiquiatria reforçou o ciclo de abuso e repressão. Fossem quais fossem as intervenções te rapêuticas, eu continuava a ouvir vozes. O sistema psiquiátrico parecia que só ficaria satisfeito quando eu negasse a minha experiência. Este processo de negação significa que teríamos de nos transformar em pa cientes-modelo e jogar o jogo com as regras da Psiquiatria. Teríamos de enterrar todos e quaisquer sentimentos, emoções e pensamentos emba-
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raçosos para ficarm os bem adaptados, isto é, sem quaisquer veleidades de rebelião.”
Quebrar o silêncio Em 15 anos de intervenção psiquiátrica, só uma vez — tinha eu 36 anos de idade - encontrei alguém disposto a ouvir-me. Isso viria a constituir para mim um ponto de viragem e, a partir daí, deixei de ser uma vítima e comecei a tornar-me senhor da minha própria experiência. Esse alguém fo i uma enfermeira, que, na verdade, arranjou tempo para me ouvir fa la r da minha experiência e dos meus sentimentos. Ela fez-m e sentir sempre bem-vindo e arranjava maneira de nunca sermos incomo dados. Desligava o bip e punha o telefone fora do descanso e, às vezes, como havia sempre gente no corredor, corria as cortinas do gabinete. Tudo isso me fazia sentir mais à vontade. Em vez de se pôr atrás de uma secretário, sentava-se ao p é de mim. Dizia-me que tudo o que fosse conversado entre nós era confidencial, excepto se e quando eu decidisse o contrário. A pouco e pouco, à medida que aumentava a confiança entre nós, tornei-me capaz de lhe fa la r dos abusos que sofri e das vozes. Â.v vezes, quando eu descrevia o que tinha acontecido comigo, ela dizia-me que essas coisas buliam com ela e que, por isso, precisava de parar por momentos. Finalmente, encontrava alguém que dava valor à dor que eu sentia. Ela ajudou-me a perceber que as vozes eram parte integrante de mim mesmo e tinham um sentido e um valor próprios. Passado um p e ríodo de 6 meses, fu i capaz de desenvolver uma estratégia de base para lidar com as minhas vozes. O mais importante nessa enfermeira fo i a honestidade das suas motivações e as respostas que me deu ao que eu lhe dizia. Gostaria aqui de afirmar que talvez outros profissionais de Saúde M ental ou de Intervenção Social possam aprender com a abordagem seguida por essa enfermeira - que pode resumir-se como segue: - ser honesto sobre a motivação e as razões para intervir; -estabelecer regras de base à partida; -g a ra n tir e preservar uma atmosfera de segurança; - não forçar a agenda - garantir um espaço para respirar, de modo a que a pessoa possa decidir o que dizer ou não dizer; - deixar que a pessoa decida quais devem ser os objectivos a atingir e se pretende a mudança ou não.
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Vozes: sobreviver e lidar com elas “Graças ao apoio dessa profissional, fu i capaz de desenvolver uma série de mecanismos de entendimento com as vozes. Um desses mecanis mos consiste em lhes conceder diariamente um certo tempo para que elas se possam manifestar e para que eu me possa ocupar delas. Para que isso aconteça, preciso de me preparar. Há determinadas condições que podem ajudar nesse objectivo, por exemplo, estabelecer um padrão re gular de sono. Apesar de lhes conceder um tempo só para elas, mesmo assim as vozes continuam a fazer-se ouvir, mas já não me oprimem. Uma das coisas que aprendi fo i a entrar em contacto com as minhas emoções e, por vezes, fico com medo dos meus sentimentos e das minhas vozes. Nos últimos 4 anos, tornei-me capaz de reconhecer os acontecimen tos, factos ou situações que fazem disparar as vozes. Por vezes, fico mais consciente da profundidade e da tonalidade das cores: o seu brilho parece muito intenso. Esta fa se dura cerca de 20 a 25 minutos e, então, de um mar de sons emerge a voz. Por vezes, quando a voz se torna dominante, sinto-me assustado. Há quatro vozes distintas na minha vida e tenho notado que, à medida que avanço na idade, a sua tonalidade e volume vêm sofrendo alterações. Cada uma das quatro vozes parece ter o seu desencadeante próprio; porém, há alguns acontecimentos mundiais que funcionam como um desencadeante comum de todas elas. Por exemplo, durante a Guerra do Golfo, tinha dificuldade em dormir de noite e em concentrar-me de dia, dado que as vozes passaram o tempo a gritar comigo 3 dias a fio."
Aqui vão as minhas vozes... e os seus desencadeantes Voz n.° 1: a Voz de Prata. Esta é uma voz suave, habitualmente toma a form a de murmúrios, muitas vezes com frases fragm entárias e comentários sobre pessoas que encontro ou com quem mantenho rela ções. Desencadeantes: fa la r com pessoas ao telefone; se tenho de me deslocar a novos lugares ou se conheço novas pessoas, torna-se dom i nante; muitas vezes fa la quando toco em alguém pela primeira vez, por exemplo, com um aperto de mão. —Vozes n.° 2 e n.° 3: os Dois Irmãos. Estas duas vozes falam uma com a outra, mas também falam para mim, num padrão rítmico. São muito agressivas e abusadoras e falam comigo acerca das outras vozes. 212
É com estas duas vozes que eu tenho mais dificuldade em lidar. Desencadeantes: estas vozes parecem dominantes a seguir a qualquer actividade sexual; por vezes irrompem quando toco em antiguidades, como móveis, jóias e espelhos. - Voz n.° 4: a Voz Mecânica. Esta voz surge habitualmente de noite e é activa e dominante quando está escuro. Repete habitualmente o mesmo conjunto de frases - muitas vezes, diz-me que outros seres, em geral animais, são capazes de ouvir todas as vozes e que os gatos são os que as ouvem melhor. Parece ter a sua graça, mas esta é a voz que mais me assusta; mas eu engendrei um mecanismo de lidar com ela, deixando-me assustar - o que fa z a voz desvanecer-se. Desencadeantes: a escuridão, a lua cheia, gatos sentados ao meu colo, ficar na cama acordado en quanto toda a gente dorme. Para ser capaz de funcionar e de reagir ao mundo, tive de ganhar controle e de me tornar razoavelmente disciplinado. O que eu não faço é tentar bloquear as vozes pondo-me a tocar música ou a ouvi-la através de auscultadores, como alguns terapeutas têm proposto. Sempre que eu fazia isso, as vozes esperavam que estivesse numa situação social em que não me pudesse escapar para se fazerem ouvir, de maneira a que me sentisse tonto e completamente desorientado. Alguns terapeutas propõem esse tipo de métodos, mas, pessoalmente, acho que esses métodos são uma mera form a de negar a experiência, uma maneira de dizer que ela não tem qualquer valor ou significado. Por mim, rejeito totalmente essa atitude. Acho mais fá cil viver com as vozes, agora que desenvolvi um equi líbrio de energias e me perm ito sentir a incerteza, a ansiedade e às vezes também o medo - por form a a tornar-me senhor da minha experiência, respeitar-me a mim próprio e conseguir o máximo de controle possível. Como disse, descobri uma série de coisas que tornam mais fácil a tarefa de lidar com as vozes; no entanto, cada voz necessita de ser tratada de uma form a especial."
Treinar as vozes: pô-las em equilíbrio com a minha vida A Voz de Prata: M uitas vezes acho que fazer desenhos ou repe tir em voz alta o que a voz está a dizer ajuda a reduzir a sua potência (esta voz aparece por períodos de cerca de 10 minutos). 213
- Os D ois Irmãos: Estas são as vozes que mais exigem de mim emocionalmente. Quando começam, tenho de procurar um refúgio e deixá-las fa la r (duram mais de 3 horas). - A V oz M ecânica: Habitualmente reajo a esta voz pondo-lhe ques tões que julgo serem de resposta difícil para ela. Deixando-me assustar sou capaz de a questionar, perguntando-lhe, por exemplo: ‘N ão és capaz de m e magoar, ou és?’ Ao arreliar a voz, provo-lhe que sou mais forte do que ela. Se não lhe respondo, ela torna-se por vezes muito abusadora e diz coisas estranhas, mas só dura cerca de 10 minutos por hora ao longo da noite.
Descobri que para viver a minha vida tinha de conseguir o controle da situação e pôr de lado o costume de me ver como vítima. Vocês poderão descobrir o mesmo se falarem com outras pessoas acerca das vossas vozes. Essas vozes podem provocar-vos durante alguns dias, podem incomodar-vos e perturbar seriamente a vossa rotina diária: não cedam. Quando conseguirem impor um padrão e mantê-lo, as vozes tornam-se menos poderosas. Aqui vão algumas sugestões que podem ser úteis: - Tentem criar um espaço ou um horário em que possam ocupar-se das vozes. Estabelecer um horário certo em cada dia, ao longo de um determinado período, reduz o tempo em que vocês perm item que as vozes estejam em contacto convosco. - Não tentem bloquear as vozes; em vez disso, tentem descobrir se elas têm um fio comum: quando e onde é que elas se manifestam?, conseguem identificar algum facto ou situação que as desencadeie? - Pode ser útil aprender algumas técnicas elementares de relaxamen to. Podem mostrar-se particularmente úteis quando as vossas emoções se complicam fa ce ao tiroteio permanente das vozes. Usem essas técnicas de relaxamento quando as vozes começam. - Dominem a vossa experiência: vivam-na e respirem-na, desfrutem-na no vosso próprio tempo e no vosso próprio espaço. Não fo i fá cil escrever isto. A i minhas vozes disseram-me que, assim que isto fosse lido por outras pessoas que ouvem vozes, se tornariam mais fortes e voltariam a incomodar-me. E claro que isto me assusta um bocado, mas, enfim, estou vivo. Estou contente por haver pessoas que dão ajuda, mas é necessário que essa ajuda, esse cuidado ou essa assistência, seja dada nos nossos próprios termos, porque, ao fim do dia, 214
somos nós que temos de viver e de lidar sozinhos com as nossas vozes. Não precisamos de entrar em competição uns com os outros, porque cada uma das nossas experiências é única e válida em si mesma. De um mar de sons, de um caldo de emoções, uma força irrompe e o mundo fica cheio de vozes, vozes que murmuram vozes que se riem, vozes que me comprimem na escuridão do dia mas eu tenho uma canção no meu peito que diz que elas podem viver em paz ao pé de m im ”
Décimo terceiro contributo pessoal E sta é a história d e um a m ulher (P. H .) q u e M arius R o m m e c o m eço u a tratar em 19 83 . T in h a ela en tão 2 6 an os d e id ad e e ou via v o z e s d esd e o s 14 ou 15. Procurou o Prof. M arius R o m m e p orq ue as v o z e s lh e davam ord en s, proib iam -n a d e fa zer certas co isa s ou d e se encontrar co m p e sso a s - e d om in avam -n a p or co m p leto . F o i internada várias v e z e s, co m o d ia g n ó stico de esq u izo fren ia . O s n eu rolép ticos não lh e acalm aram as v o z e s, em b ora ten ham red u zid o a an sied ad e provocad a por ela s. In felizm en te, a m ed ica çã o tam b ém a fectava o seu esta d o d e alerta p síq u ico , p elo qu e ela o p tou por n ão a tom ar por p eríod o s m uito p rolon gad os e por evitar estad ias dem orad as n o h os215
pitai. P orém , as v o z e s iso la v a m -n a cad a v e z m ais, proib iam -n a de fazer as co isa s q u e sem p re gostara d e fazer e, in clu siv e, m andavam -na in su ltar-se a si própria. N o P rim eiro C o n g resso para O u vid ores de V o z e s, em 1 9 8 7 , con tou a sua h istória co m o segue:
“Tanto quanto sou capaz de me lembrar, teria 7 ou 8 anos quando ouvi vozes pela primeira vez. Nessa altura, elas eram amistosas, conta vam-me histórias, davam-me conselhos e protegiam -m e de situações desagradáveis, como discussões, por exemplo. Mas quando cheguei aos 15 anos tornaram-se maldosas e começaram a dar-me ordens. A prin cípio, essas ordens eram inofensivas, por exemplo fazer determinadas coisas por uma certa ordem, de manhã ao levantar. Com o decorrer dos anos, foram -se tornando cada vez mais coercivas e importunas. Come çaram a proibir-me as amizades ou a dar cabo delas, fazendo as outras pessoas sentir-se totalmente ridículas. Muitas vezes não me deixavam atender o telefone, nem abrir a porta quando a campainha tocava, nem visitar fosse quem fosse. Elas tinham um comentário sobre tudo e as observações que faziam eram negativas por sistema. Perturbavam-me sempre que estivesse a estudar, a ler ou a conversar. Durante anos, evitei sistematicamente falar do assunto, porque as vozes também me proibiam de o fazer. Se não lhes obedecesse, faziam um barulho ensurdecedor que não me deixava ouvir o que se passava à minha volta. Apareciam e amedrontavam-me. Se as coisas chegassem a extremos, faziam -m e insul tar a mim mesma. Eu costumava pensar que as vozes eram deuses omniscientes e om nipotentes que orientavam e determinavam tudo sobre a terra. Âs vezes tentava ludibriá-las, mas elas eram demasiado espertas para se deixarem enganar. Outras vezes, procurava aliar-me a elas, fazendo-lhes conces sões - mas as vozes não desapareciam. Comecei a pensar que as vozes tinham alguma coisa a ver com o que se passava em casa e fui-m e embora. Comecei a ser tratada na Secção Juvenil do Departamento de Psiquiatria Social mas não conseguiram livrar-me das vozes. Durante um breve período pensei que tinha enlouquecido, mas de pressa pus essa ideia de lado. As vozes são demasiado reais para serem alucinações. Quatro anos depois, conheci o Professor Romme. Passei o primeiro ano de terapia com ele a tentar convencê-lo de que o meu problema não era clínico, que as vozes eram exteriores a mim. Tentámos ambos averiguar se haveria alguma relação entre determinados senti216
mentos e as vozes que eu ouvia, mas, no máximo, essa relação consistia em as vozes poderem reforçar um determinado estado de humor. Por exemplo, se não me sinto muito bem, as vozes assanham-se e fazem tempestades num copo de água. Fizemos então algumas tentativas de treino. Com o Professor Romme aprendi a criar as condições necessárias a um melhor controle sobre mim própria, e agora sou menos fá cil de impressionar pelas vozes. Não consegui ver-me livre delas, mas as con versas que tive com o Professor Romme ajudaram-me muito. Ele fez-m e pensar com clareza e obrigou-me a usar o cérebro. Aprendi a descobrir relações entre os meus sentimentos e aquilo que as vozes dizem e, ainda, a estruturar a minha rotina diária. Reservo a noite para as vozes, de maneira que, assim, durante o dia, sou menos atormentada por elas e funciono melhor. Aprendi também a usar adequadamente a medicação neuroléptica. A utilização desse tipo de medicamentos é algo a que resisti durante muito tempo, na medida em que provocam o embotamento do pensamento e do sentimento. Actualmente, tomo-os em baixas doses e sinto-me menos perturbada pelos seu efeitos secundários; e quando as vozes parecem querer dominar de novo, aumento a dose temporariamente. Desde que pus a minha fam ília ao corrente das vozes que oiço - o que, aliás, a ajudou a compreender melhor o meu comportamento -, ela passou a dar-me muito mais apoio. Este ano, estando eu a passar ainda um mau bocado, fu i viver com a minha mãe. As coisas correram bem. Esbateu-se o medo que sentia de nunca mais ser capaz de cuidar de mim própria. E também me ajudou muito o optimismo da minha mãe. Disse ela: ‘Enquanto isto se resolve, sempre passam os o tem po.’ Não sei de onde vêm as vozes nem o que significam, mas sei que elas são parte de mim e estão para ficar. Se bem que possa agora lidar melhor com a situação do que há alguns anos atrás, ainda tenho uma certa dificuldade em viver com elas.”
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OUVIR VOZES: A PERSPECTIVA DA PSIQUIATRIA E DA PSICOLOGIA
“Os fenómenos psicológicos são qualitativos e insusceptíveis de medida; são subjectivos, pessoais e im penetráveis, só conhecidos por quem os experimenta. Estas características são bastantes para os considerarmos como bem diferentes dos fenómenos fisiológicos. [...] A distin ção entre categorias de fenómenos psicológicos toma-se útil para fins didácticos mas a sua independência na re alidade é bem hipotética. Sabemos das relações íntimas entre o psíquico e o somático mas as relações dos fenómenos psíquicos entre si são mais íntimas ainda: ‘Quem o feio ama bonito lhe parece’, ‘Quem corre por gosto não cansa’, etc.
A recordação destes conhecimentos é indispensável para entrar na ‘compreensão’ de uma psicose.” Professor Doutor Herménio Cardoso (Aulas Teóricas de Psiquiatria: Dementia Praecox, 1944)
Introdução Marius Romme E d ifíc il calcu lar o nú m ero de p e sso a s qu e o u v em v o z e s, m as a verd ad e é q u e, num a ou noutra fa se, grand e parte d elas acaba por entrar em con tacto co m o m un do da P siquiatria. P or isso , in clu ím o s aqui um a sele c ç ã o das linhas d e referên cia u tilizad as p ela P siquiatria, o u qu e se d esen v o lv eram em nítida relação co m ela. O utras razões ex istem para aqui apresentarm os essa s perspectivas: u m a parte d elas fo rn ece algu m as das estratégias p o ssív e is para se aprender a lidar co m a escu ta d e v o z e s, se b em qu e, in felizm en te, não se p o ssa m aplicar a tod os o s ca so s. A s várias S e c ç õ e s d este C apítu lo ap resen tam so b rep o siçõ es em d iversas áreas e , a lém d isso , não são m u tu am en te ex clu siv a s; em term os g erais, cad a um a d elas, de per si, ex a m in a e p õ e em relev o um asp ecto d iferen te e particular do m esm o corp o teórico. N a P siquiatria C lássica é vulgar p en sa r-se q u e as v o z e s são sin tom as d e um a d o en ça ou d e um a d isfu n çã o cerebral, em esp ecia l a esq u izo fren ia . É claro q u e esta abordagem p o u ca ou nenh um a atenção c o n c e d e às v o z e s em si m esm a s e im p lica um tratam ento que co n siste em su p rim i-las através da adm inistração d e n eu ro lép tico s. A A ná lise fu n cio n a l cen tra-se naq uilo qu e as v o z e s d izem , reunindo ab ord agen s ao d iá lo g o co m as v o z e s e m ostrand o d e que form a essa s ab ord agen s se p od em utilizar para d escob rir o sig n ifica d o das m en sa g en s v eicu la d a s p ela v o z e s, n o co n tex to da h istória b iográfica de q u em as ou ve. E m P ersonalidade dissociada interpreta-se a escu ta d e v o z e s co m o a e v o lu ç ã o d e um m eca n ism o p sic o ló g ic o p o sto em m archa para se p od er lidar co m situ a çõ es am eaçad oras, em esp e cia l na infân cia. O resu ltad o, seg u n d o se d iz, é separar da person alid ad e certas e m o ç õ e s e m em órias, as quais ten dem a reaparecer sob a form a d e v o zes. N a Secção T raum as d iscu te-se a ex p eriên cia infantil de abu sos sex u a is ou outros e apresenta-se o resu ltad o d e in v estig a ç õ e s que p arecem dem onstrar um a correlação entre e sse s ab u sos e o apareci m en to d e a lu cin a çõ es aud itivas, m ais tarde.
Em P sicologia C ognitiva o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s é v isto co m o sen d o um a interpretação esp e c ia l das p ercep çõ es, isto é , por outras palavras, co m o sen d o u m a v ia particular d e p rocessa m en to da inform ação q u e p o d e ser esp e cia lm en te d escon fo rtá v el ou d ifíc il d e assim ilar. A P siq uia tria Social co n sid era as v o z e s co m o um a ex p ressã o m etafórica da h istória e da situ ação b io g rá fica d e q u em as o u v e. S egu n d o este m o d elo , as v o z e s reflectem as in teracções do in d ivíd u o no âm bito das su as rela çõ es e n o co n tex to so cia l m ais am plo. E m Interacções fa m ilia res e p sico se ex a m in a -se a con trib u ição do m eio d o m éstico quer para o desp ertar das v o z e s quer para o seu m anejo. A atm osfera em o cio n a l e a d in âm ica interna d e um a d eter m inada fam ília p arecem con stitu ir d o is factores fu n d am en tais para dificu ltar ou favorecer o en ten d im en to co m as v o zes. Em P sico se p rop orcion am -se as re fle x õ e s d e B rian D a v ey sobre d iversas abord agen s da perturbação m en tal e em o cio n a l, in clu in d o -se tam bém aí o n o tá v el relato q u e n o s fa z das suas batalhas co m a p sico se. B rian estu d ou em p rofu n d id ad e a teoria p sic o ló g ic a e p sican alítica, o ferecen d o -n o s um a agrad ável teoria p esso a l a ssen te na sua própria exp eriên cia. E m C ari Jun g e a p ercep ção extra -sen soria l ex p lo ra -se o co n c eito de in co n scien te c o le c tiv o c o m o p o ssív e l fo n te d e p r o v en iên cia das v o z e s. P siquiatra, e le m esm o o u v id o r d e v o z e s, Jung acred itava qu e ela s p od iam ser a ex p ressã o d o co n tacto , a um n ív el m ais p rofun do, co m o reino in co n scien te da v id a esp iritu al qu e n os é com u m a tod os. E sta id eia fo rn ece um a ex p lic a ç ã o p o ssív e l para o facto, m u ito fre qu en te, de a ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s ser v iv en cia d a co m o não-E u. E m Ja yn es e a consciência a n a lisa -se o pap el da ev o lu çã o h istórica n o d e se n v o lv im en to da c o n sciên cia . O fu nd ad or d esta teoria, o p sic ó lo g o Julian Jayn es, acredita q u e tem p o s h o u v e em q u e ou vir v o z e s era um a ex p eriên cia hum ana d e rotina, e q u e o fen ó m en o representaria h oje um atavism o e v o lu tiv o . E sta é um a p ersp ectiva m ais p esso a l do que a m aioria das q u e são ap resen tad as n este C ap ítu lo, tanto m ais que raram ente é in v o ca d a n o ca m p o da P siq uiatria - e, d ig a -se em abon o
da verd ad e, tam bém n ão é particularm ente corrente noutros ca m p o s do saber. P orém , d e cid im o s in clu í-la aqui, num texto de P atsy H a g e (ela própria ou vid ora d e v o z e s ), porque tiv em o s o ca siã o de verificar o qu anto esta teoria p o d e ser útil a m u itos o u vid ores d e v o z e s q u e procuram form as de com p reen d er as suas exp eriên cias. E p en a que o s o u v id o res d e v o z e s raram ente en con trem na P siq u ia tria lin has de referên cia teórica cred ív eis e con form es co m a sua própria ex p eriên cia p e sso a l. P or isso , to m a -se im p eriosa um a troca de exp eriên cia s e de teorias o m ais livre p o ssív e l entre p ro fissio n a is e o u vid ores de v o z e s. Para já , porém , con tin u a a sub sistir um ab ism o en tre a teo ria e a e x p e r iê n c ia p e ss o a l - en tre o b je c tiv id a d e e su b jectivid ad e — que to m a ex trem am en te d ifíc e is a coop eração e fe c tiva e a ajuda m útua. A q u estão fundam ental não é, p o is, a de saber qual d os ca m p o s tem razão, m as, antes, de q u e m aneira se p o d e transpor ou reduzir e s s e a b ism o . E sp eram os que este C apítu lo p o ssa contribuir para sugerir a lg u m a s abordagens a esta tarefa e ssen c ia l.
A Psiquiatria Clássica Alec Jenner V er qualquer c o isa q u e n ão está presente ou ou vir a lg o que n ão fo i dito p od e parecer, n o m ín im o , incorrer em erro. E stes d o is tip os d e exp eriên cia são co n h ecid o s em P siquiatria por a lu cin a çõ es v isu a is e aud itivas, resp ectivam en te. Para o psiquiatra c lá ssic o , essa s ex p e riê n cias sig n ifica m q u e a lg o está errado co m a p esso a que as tem , u m a v e z qu e ela não p o d e fia r-se n os seu s sen tid o s, p e lo m en os em d eter m inadas circu nstâncias. Q u and o esta m o s b em , p ressu p õ e-se q u e s o m os cap azes d e separar a n o ssa p e sso a e o s n o sso s p en sa m en to s d aq u ilo qu e a co n tece à n o ssa v o lta , isto é, esta b e lec em o s b em a d i ferença entre ou vir e im aginar. S egu n d o se d iz, não co n seg u ir esta b elecer essa d iferen ça co n stitu i um a perda das fronteiras do E u (a l gu n s psiquiatras usam m esm o um a ex p ressã o ainda m ais técn ica: “falh a da d ia crese”).
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N o entanto, u m sim p les erro d os n o sso s o lh o s e o u v id o s n ã o c o n s titui ex p lica çã o su ficien te para a p ercep ção, por e x em p lo , d e u m a fala na n ossa própria lín g u a . A haver um a ex p lica çã o físic a , e la diria respeito a determ in ad as partes d o cérebro q u e, por n ão estarem a funcionar correctam en te, n os ind uziriam em erro - partes d o cérebro essa s que d everiam ter p reviam en te aprendido a n o ssa lín g u a . O s psiquiatras c lá ssic o s sab em q u e há m uitas situ a çõ es na v id a e m que a n ossa im agin ação entra e m torvelin ho: quando esta m o s c h e io s d e m edo ou so zin h o s, q u an d o b eb em o s d em ais, quando p ressen tim o s que algu ém está a falar d e n ó s, quando esta m o s a co m eçar a d orm ir ou a acordar. N o en tan to, para o psiquiatra, ex p eriên cia s d este tip o, n estas circu nstâncias, n ão co n stitu em verdadeiras alu cin a çõ es. O s psiquiatras esfo rça m -se por d istin gu ir as a lu cin a çõ es q u e o co r rem em estad os d e p erfeita v ig ília d aq u elas q u e a co n tecem em esta d o s de so n o lên cia ou d e feb re elev a d a , n o s in d iv íd u o s sen is e n o s d oen tes co m le sõ e s cereb rais ou em certas d oen ça s física s. Q u an d o as a lu ci n açõ es ocorrem n u m estad o d e co m p leta v ig ília , co n sid era -se q u e são sinal de um a d o en ça p síq u ica grave - aq u ilo a qu e se ch am a psicose. N ão ex iste c o n se n so sob re a n atu reza das ch am ad as p sic o se s fu n c io nais m as a cred ita-se gera lm en te q u e são d evid as a certas d o en ça s a q u e se é su scep tív el d e v id o a um a d e fic iên cia hereditária d o cérebro. São d oen ças nas q u ais se perd e o con tacto co m a realid ad e. Já m ais controverso é aq u ilo q u e efectiv a m en te fa z deseq u ilib rar a balança: tanto pod e en glob ar d iversas co m b in ações d e d efeito s co n g én ito s co m o in fec çõ es virais ou d eterm in ad os p eríod os d ifíceis da v id a - em e s p ecia l no se io da fam ília . N a essên cia , há d o is tip o s recon h ecid o s d e p sic o se s fu n cio n a is. N a d o en ça m a n ía co -d ep ressiva , p en sa -se q u e o hum or d o in d iv íd u o o sc ila num ou noutro sen tid o p orq u e se en co n tra ’ avariad o o resp ectiv o m eca n ism o d e regu lação: as a lu cin a çõ es p od em surgir n o s esta d o s de hum or extrem os, sen d o então encaradas co m o um a co n seq u ên cia d esses hum ores. A esq u izo fren ia seria, n o en tan to, a d o en ça e m q u e m ais nu clearm en te está im p licad a a escu ta d e v o z e s. A té certo p on to, esta en tid ade p o d er-se-ia en ten d er c o m o um a perda das a sso c ia ç õ e s de p en sam en tos e id eia s m ais habituais: há q u em veja n isso um a co n fu 223
são de circu ito s cerebrais, a lg o sem elh an te a um a troca d e fio s num aparelh o d e telev isã o . A lé m d isso , o s psiquiatras ob servaram qu e as p esso a s esq u izo frén ica s tinham ten d ên cia a deteriorar-se p rogressiva m en te, en q u an to q u e as m a n ía co -d ep ressiva s o sc ila m habitualm ente entre a m an ia (ela çã o e h ip eractivid ad e) e a d ep ressã o . E m bora haja um fu n d o d e verd ad e nesta o b servação, e la só é v á lid a parcialm ente, na m ed id a em q u e um a parte da ev o lu çã o deteriorante p arece d evid a à natureza das in stitu içõ es para on d e essa s p e sso a s costu m am ser en viad as. Sin tam as d ificu ld a d es q u e sentirem , o s psiquiatras d everão esfo r çar-se p or cla ssifica r o s tip os de estad o m ental qu e as p e sso a s esperam qu e eles tratem . É p o ssív e l qu e o s psiquiatras ten ham co m etid o o erro d e acreditar que ex istem d o en ça s b em d elim itad as - o u q u e d isp õem da cla ssific a ç ã o correcta, ca so essa s d oen ça s b em d elim itad as e x is tam . N o en tan to, o s esfo rço s para esta b elecer um a c iê n c ia da P siq u ia tria c o n d u z ira m a o s e stu d o s d as c o r r e la ç õ e s - o q u e é q u e se correlacion a c o m o quê. E a b em dizer fo i o h o m em da rua, e não os psiqu iatras, q u e id en tificou prim eiro o s p rob lem as m en tais que care ciam d e ex p lica çã o . A C lín ica d e H eid elb erg , na A lem an h a, tev e, h istoricam en te, um a esp ecia l im p ortância na ten tativa de d escrev er as d o en ça s m en tais e o s seu s sin a is e sin tom as. E m particular, n ela se esta b e lec eu que a escu ta d e v o z e s falan d o na terceira p esso a , co m o p a cien te em v ig ília total, era d ia g n ó stica de esq u izo fren ia (a p rop ósito, “E u so u ” está na prim eira p esso a ; “T u é s ” está na segunda; “E le ou E la é ” está na terceira p e sso a ). T am b ém se afirm ou que o d ia g n ó stico fic a v a con fir m ado se as v o z e s p areciam pertencer a grup os d e p e sso a s falando um as co m as outras acerca d o ouvidor, esp ecia lm en te se fa zem co m en tários d ep recia tiv o s a seu resp eito. A m aioria d o s psiquiatras m oder n os ainda cla ssifica ria co m o esq u izo frén ico tod o aq u ele q u e referisse ter ex p eriên cia s destas. M uita g en te p od e achar estran ho que esta p reocu p ação co m o d ia g n ó stico p o ssa sig n ifica r qu e o m éd ico esteja m ais in teressad o na form a co m o as v o z e s d izem o q u e d izem d o que, prop riam ente, naq u ilo qu e ela s realm ente d izem . M as isso d e v e -se aos esfo rço s d o s psiquiatras no sen tid o de esta b elecerem a d istin çã o entre 224
aqu ilo a que e le s ch am am fo rm a e aqu ilo a qu e e le s ch am am con teú do : neste c a so , a form a é o u vir v o z e s falan d o na 3 .a p esso a , en qu an to qu e o con teú d o é aq u ilo q u e ela s d izem . Q u an d o o u v im o s p e sso a s a falar c o n n o sco , de duas um a: ou ela s estã o d e fa cto a falar c o n n o sco , e a form a é a dum a p ercep ção; ou n ão estã o , e en tão a form a é a du m a alucinação. E m am b os o s c a so s, o co n teú d o é o m esm o , em b ora as form as sejam d iferen tes (e o in v erso , o b v ia m en te, tam bém se p o d e aplicar). Para e fe ito s d e d ia g n ó stico , a form a é , en tão, m ais im portante do q u e o con teú d o. T entar fazer um d ia g n ó stico é sem pre nu clear em M edicina: aliás, é por isso q u e se co stu m a ir ao m éd ico. S ó p o d e haver tratam ento adeq uad o se h o u ver antes um d ia g n ó s tico correcto. E p reciso n ão esq u ecer q u e a P siq u iatria é um ram o da M ed icin a e, por isso , é natural qu e tenha um a lin g u a g em m éd ica. A qu estão do q u e d e v e ou n ão d e v e cair n o s d o m ín io s da M ed icin a toca a sp ectos que estão fora d os p rop ósitos d esta S ecçã o . O qu e esto u a fazer é tentar ajudar o c lien te a com p reen d er a m aneira de pensar d os psiqu iatras e aq u ilo q u e e le s fazem ; isto é , por q u e é q u e e le s fa zem esta pergunta e n ão aq u ela e por q u e é q u e e le s dão m a is im portância a um a parte da resp osta e n ão a outra. O p si quiatra passa a p en te fin o a con v ersa co m o p acien te, entre outras co isa s para cham ar alu cin a çõ es esq u izo frén ica s às tais v o z e s q u e falam na 3 .a p esso a . O que vem a ser ser-se hum ano é, sem d ú vid a, extrem am en te c o m p le x o , e m uita da ciê n c ia qu e está por detrás da M ed icin a P sic o ló g ica im p lica um a ten tativa d e com p reen d er co m o é q u e um ob jecto fís ic o - o céreb ro - p rod u z o s p e n sa m en to s, a im a g in a çã o e as v iv ê n c ia s. V ista s assim as co isa s, é claro q u e, qu and o o s m eca n ism o s fís ic o s não fu n cion am co m o d e v e ser, o m esm o d everá a con tecer aos p en sa m en to s. E m bora seja an tip ático d izer-se q u e n ão há p en sam en to retorcid o sem m o lécu la s retorcid as, um a c o n c ep çã o assim n ão d eix a de ser um a das atitud es p o ssív e is perante a d o en ça m en tal. D e um m o d o m uito sim p lista, p o d em o s ob servar isso m esm o em p acien tes q u e ten ham tido um a h em orragia cerebral: a p resen ça d e san gu e no lad o esq u erd o d o cérebro (d e um a p e sso a dextra) lesa a cap acid ad e de encontrar as palavras correctas para dizer, ain da qu e o p acien te co m 225
preend a p erfeitam en te o q u e lh e d izem . E ste ex em p lo dá um a id eia d e co m o a m en te é afectad a p elo fu n cion am en to de determ inadas partes d o cérebro. O utra razão para esco lh er o e x e m p lo acim a é assin alar as d iferen tes fu n çõ es d os lad os esq u erd o e d ireito do cérebro. N a m aioria das p e sso a s, o lad o esqu erd o d o cérebro está d e se n v o lv id o para asp ectos co m o a lin g u a g em , a ló g ica , a teoria e a m atem ática; o lad o d ireito tem m ais a ver co m a arte, a im ag in a çã o e as rela çõ es esp a cia is entre ob jecto s. T em h avid o um a in v estig a çã o co n sid erá vel para tentar apu rar esta s id eias, m as é d ifíc il ser-se ca teg ó rico - antes do m a is, porque há m uitas varia çõ es individuais: o co m a n d o da fala n em sem p re se d e se n v o lv e n o lad o esq u erd o d o cérebro, m esm o em p e sso a s dextras. A in d a assim , todas as id eia s n o v a s q u e v ã o surgindo a resp eito da fu n ção cerebral têm sid o estu d ad as ao porm enor, n o sen tid o d e se d esven d ar a natureza da esq u izo fren ia . H á provas d e q u e a lesã o ou m alform ação d e determ inadas partes d o cérebro, em esp ecia l d o ch am ad o lo b o tem poral, ten de a produzir e fe ito s p s ic o ló g ic o s ca ra cterístico s, in clu in d o a lu cin a çõ es - parti cu larm en te em p e sso a s co m ep ilep sia . A s p esso a s co m d e fic iên cia s d o céreb ro esqu erd o ten dem a ter um forte sen tid o do d estin o p e sso a l, um a grande cu riosid ad e filo s ó fic a e fortes escrú p u los m orais. S ã o cu rio sid a d es interessan tes d este tipo, nas rela çõ es entre fu n çõ es cerebrais e v iv ê n c ia s, qu e p o d em fa c ilm e n te in flu en ciar o psiquiatra quando en trevista um p acien te. Será que esta p esso a , e le ou ela tanto fa z, p o d e ter um a m a n ifestação p sic o ló g ic a d e um quadro fís ic o cerebral - u m a ep ilep sia tem p oral, por ex em p lo ? S e a ssim é, e s s e quadro fís ic o p o d e ter m ais im portância do q u e as d ificu ld ad es da vid a q u e o p a cien te esteja ev en tu a lm en te a atravessar. “E sq u izo fren ia ” é um a palavra tão con creta na n o ssa lín g u a co m o “bruxa” ou outra palavra qualquer. N o entanto, é frequente esq u ecerm o-n os d e q u e as palavras n em sem p re representam co isa s esp e cífica s; algu m as rep resentam conjun tos d e co isa s co m o , por e x e m p lo , a p a lavra “ a n im ais”. E claro que sem palavras ficaríam os lim ita d o s na n o ssa cap acid ad e d e pensar, m as tam b ém é claro que ela s n o s p o d em 226
fazer incorrer em erro. O term o “esq u izo fren ia ” é essen c ia lm en te um guarda-chuva qu e se u tiliza para abrigar d eb a ixo d e si um con ju n to de esta d o s n os q u ais as p e sso a s o u v em v o z e s d e determ inada m an eira e têm d elírios qu e n ão sã o fá c e is d e com p reen d er em fu n ção d o s seu s fundam entos raciais, r e lig io so s ou ou tros. E ssa s ex p eriên cia s e cren ças p od em m uitas v e z e s ced er a certas drogas a n tip sicóticas, em b ora, in evita v elm en te, à cu sta d e d eterm in ad os efe ito s colaterais - e sp e c ia l m ente certos m o v im en to s corp orais in d esejá veis. Q uando a vid a d e u m a p e sso a co m outrem se to m a p en o sa ou m esm o im p o ssív el por ca u sa d essa s v o z e s e d essa s id eias, o s p siq u ia tras, e bem , sen tem -se ju stific a d o s ao fazerem o q u e pu derem por m elhorar a situ ação. M as q u an d o n ão há in có m o d o para o próprio n em para o s outros, o sim p les fa cto d e o u vir v o z e s não autoriza a in terven ção, esp ecia lm en te se n ão se tratar d e um sin al p reco ce d e um a e v o lução m ais grave.
Análise funcional Jan van Laarhoven A tecn o lo g ia m od ern a v e m to m a n d o cad a v e z m ais fá cil a n o ssa co m u n icação a lo n g a d istâ n cia un s co m o s outros. U m as v e z e s, essa com u n ica çã o tom a a fo rm a d e d iá lo g o , por ex em p lo através d o te le fo n e, e outras v e z e s trata-se d e m en sa g en s u n id ireccion ais, por e x e m p lo através da rádio ou da tele v isã o . P orém , co m o se fora um a lei da natureza, p arece q u e, à m ed id a q u e se ex p an d e essa fa cilid ad e d e com un icar à distân cia, m a is as p e sso a s vão sen tin d o n ecessid ad e d e lh e pôr lim ites. A n e c e ssid a d e d e p az, tran qu ilidade e p rivacid ad e, a n ecessid ad e d e um e sp a ç o p e sso a l reservad o, é , m uitas v e z e s, con tra riada p ela falta d e m e io s fin a n ceiro s, p e la sob rep op u lação ou , sim p lesm en te, p ela in trom issão d a q u eles qu e n o s rodeiam . N o ca so das p e sso a s q u e o u v em v o z e s, lid a -se co m um a form a de com u n ica çã o q u e raram en te é volu n tária ou desejad a. P elo m en os ao p rin cíp io, as v o z e s sã o g era lm en te exp erim en tad as co m o v in d o d e 227
fora, co m o sen d o intru sivas; apresentam um a co m u n ica çã o unilateral q u e, n estas fa ses, to m a im p o ssív e l qualquer d iá log o . É p reciso q u e se d iga qu e esta perda do co n tro le sobre a privacidad e p o d e provocar grande an sied ad e, in d ep en d en tem en te d e o con teú d o das v o z e s ser am eaçador ou não. A lgu n s ou vid ores d e v o z e s co n seg u em encontrar ex p ed ien tes que os ajudam a lidar co m as v o z e s que o u v em e é p o u co p rov á v el que o s p o ssa m o s en con trar n o s lo c a is o n d e se p restam cu id a d o s p s i q u iátricos - tal c o m o su c e d e , a liá s, c o m a q u eles q u e p rocuram delib erad am ente ter ex p eriên cia s d e v o z e s e , ainda, a q u eles outros que encaram as v o z e s c o m o fen ó m en o s p o sitiv o s. O s psiquiatras são c o n su ltad os por p e sso a s q u e, d e um a form a ou de outra, se sen tem per turbadas p elo fa cto d e o u vir v o z e s o u q u e têm co m ela s um con tacto d ifícil. M as isto n ão n o s d e v e fazer cair na tentação d e tirar co n c lu sõ e s apressadas: o n o sso o b je ctiv o não é reduzir as v o z e s ao silê n c io , m esm o q u e iss o fo s s e p o ssív e l. O im portante é ajudar o p a cien te a aum entar o seu co n tro le sobre as v o z e s, tirando o m á x im o partido de um a situ ação p o ten cia lm en te d esvan tajosa. O m eu contrib uto para este livro con sistirá em deixar aqui um certo núm ero d e ex p ed ien tes qu e ju lg o ú teis, ten d o aqu ela fin alid ad e em vista, e sugerir algu ns instrum entos que p od erão servir para d esen v o lv er o d iá lo g o co m as v o z e s (e a resp eito das v o z e s), co m v ista a detectar, em co o p eração co m o p acien te, o sig n ifica d o e a fu n ção das v o z e s na v id a d e quem as ou ve. Sem pre que o p a cien te so licita a ajuda do terapeuta, a sua história clín ica p siq u iátrica, o seu ca so , vai passar a letra de form a, o q u e tem a fin alid ad e de s e saber s e por detrás das v o z e s não estará um quadro d e an sied ad e, d e d ep ressã o ou de p sic o se (isto é, o resu ltad o ca ó tico da tentativa de p rocessar determ inado tipo de in form ação). Q ualquer d estes quadros p o d e co n d u zir à p rescrição de p sico fá rm a co s ou de qualquer outra form a d e tratam ento. Para se pod er d etectar um a p o s sív e l d o en ça orgân ica, é igu a lm en te im portante um a h istória c lín ica m éd ica qu e in clu a o ex a m e físic o . A o in vestigar a p erson alid ad e, o terapeuta terá de dar u m a esp ecia l aten ção a tod o e qu alq uer acon tecim en to d ifícil e m arcante da história 228
da vid a d o p acien te. E tam b ém a form as d e ab u so (con tin u ad o), de natureza sexu al ou outra, durante a in fân cia (v er S e cçã o Traum as deste C ap ítu lo). U m a m aneira d e interpretar a escu ta d e v o z e s é in clu í-la s nas P erturbações D isso cia tiv a s, ou seja, en cará-las co m o um a form a de organ ização através da qual a m en te se fragm en ta em várias partes, de um a form a m a is v isív e l do qu e é habitual. N o d ecu rso d e qualquer ob servação, o terapeuta d e v e estar alerta para ou tros sin a is d e pertur bação d isso cia tiv a , co m o a alteração da p ercep ção tem p oral (in clu in d o m esm o a perda da n o çã o d o tem p o), a u tilização d o “N ó s ” m ajestático, a n eg a çã o da e v id ên cia d o com p ortam en to próprio e , ainda, sen tim en tos de d esp erso n a lização e d esrealização. S e porven tu ra h ou ver gran des flu tu a çõ es ulteriores d e sin tom as p siq u iátricos ou d e d ia g n ó stico s, há ra zões acrescid as para se pensar qu e esta m o s a lidar co m um a perturbação d isso cia tiv a (ver S e cçã o P ersonalidade dissociada d este C apítu lo). À s v e z e s , a fu n ção d esem p en h ad a p elas v o z e s é im ed iatam en te v isív e l, em term os da eco n o m ia m ental d o p acien te; na verd ad e, o p acien te é ca p az d e ex p lica r essa fu n ção ao terapeuta, lo g o à prim eira sessão . N o en tan to, o m a is p rovável é qu e o p a cien te so zin h o não interprete as suas v o z e s, em term os da fu n ção q u e d esem p en h a m , ou não seja ca p az d e a descortinar. A s p erturbações d isso cia tiv a s não aparecem sem m ais n em m en os: m uitas v e z e s têm um a fu n ção protectora. P or isso , m esm o qu e o terapeuta tenha um a id eia clara sobre o sig n ifica d o e a fu n ção das v o z e s, n ão d everá con fron tar im ed iata m en te o p acien te c o m ela. Para fazer um a id eia da fu n çã o das v o z e s, é im portante ter em co n sid eração as seg u in tes q u estões:
C ircunstâncias - Q u and o e em q u e circu n stân cias surgiram as v o z e s p ela prim eira vez? - A s v o z e s são as m esm a s q u e da prim eira v ez? S e n ão, o qu e é que m udou? - A s v o z e s ocorrem em d eterm in ad o tip o d e o ca siõ es? 229
-
A s v o z e s ocorrem em determ inado tipo d e lugares? O correm quando o p acien te está em determ inada com pan hia? O correm durante determ inado tipo d e activid ad e? O correm quando o p acien te está so b d eterm inado tipo de hum or?
Id en tid a d e -
A s v o z e s id en tificam -se? A s v o z e s são d e p esso a s, ou de esp íritos? S ã o m ascu lin as, ou fem in in as? S ã o de p e sso a s co n h ecid a s, ou d esco n h ecid a s?
O rganização interna - Q uantas v o z e s sã o ao todo?
- A s v o z e s sab em da ex istên cia um as das outras? - A s v o z e s form am entre si um siste m a organizado? - A p areceram todas ao m esm o tem p o, ou um as prim eiro e outras d ep o is? - A s v o z e s são todas p esso a s, ou todas esp íritos?
C ontrole - O p acien te sen te q u e as v o z e s v êm de dentro, ou d e fora? - E stá d ep en d en te das v o zes? - E cap az, deliberadam ente, de fazer co m q u e as v o z e s en trem em acção? - P ressen te a entrada das v o z e s em a cção? S e sim , o que é que a co n tece? E capaz de entrar em d iá lo g o co m elas? - A s v o z e s o b ed ecem -lh e quando as m anda calar? - E cap az de não lh es ligar? - A s v o z e s ocu p a m -lh e a m en te por co m p leto ? - A s v o z e s são se n sív e is aos argum en tos d ele? - O p acien te é cap az de d eso b ed ecer às ordens das v o zes? 230
C onteúdo - E m geral, o p acien te exp erim en ta as v o z e s co m o p o sitiv a s, ou negativas? - A s v o z e s têm todas o m esm o sig n ifica d o em o c io n a l, ou e sse sig n ifica d o é variável? - A s v o z e s têm um p rop ósito d efin id o? - A s v o z e s co n têm um a m en sa g em clara, ou am bígua? - A s v o z e s a v isa m o p acien te a resp eito d e certas co isa s? - A s v o z e s in citam o p a cien te a fazer certas co isa s? S e sim , e sse s in citam en tos v isa m actos con cretos?
P ap el das vozes - A s v o z e s sab em ou fa zem algu m a c o isa q u e o p a cien te n ão seja capaz de sab er ou fazer? - O p a cien te sab e ou fa z algu m a c o isa q u e as v o z e s n ão sejam cap azes d e sab er ou fazer? - O que m u d ou na vid a do p acien te d e sd e q u e apareceram as v o zes? - O q u e m udaria na vid a d o p acien te se as v o z e s d esap arecessem ? C om b ase nas resp ostas a estas q u estõ es, ten tarem os d escortin ar o padrão das v o z e s e explorar a sua fu n ção e sig n ifica d o na vid a do p acien te. S e p o s s ív e l, e co m a ajuda d o p acien te, o terapeuta deverá tentar exp licita r claram en te essa fu n ção. O s d o is em con ju n to tentarão defin ir até q u e p on to essa fu n ção é a ceitá v el para a p e sso a do p a cien te. S egu id a m en te, d everão avaliar o grau d e ê x ito ou in êx ito das estratégias adop tadas p elas v o z e s. E , fin alm en te, d everão avaliar se há ou não m aneiras m elh ores ou m ais fá ceis d e alcan çar o s o b jectivo s prop ostos. E m q u e m ed id a aqu elas q u estõ es n o s p o d em ajudar a clarificar as fu n çõ es das v o z e s? B em , há bastantes lin h as d e referên cia teórica que n os p od em orientar e , de um m o d o geral, só p o d em o s encontrar um 231
padrão se co n h ecerm os a referência teórica corresp on d en te. S e tiver m os várias lin has d e referên cia, p o d em o s ser m a is fle x ív e is na n ossa in terven ção. Isto sig n ific a que o p acien te n ão d e v e ser v isto apenas na p ersp ectiv a do terapeuta. P elo contrário, d e v e -se , tanto quanto p o ssív e l, atender à ex p eriên cia p esso a l e à lin g u a g em do p acien te. N o en tan to, um a dada lin ha de referência p o d e ser u tilizad a c o m o orien tação g en érica e d e ap oio às in terven ções q u e v isa m ajudar o p acien te. V eja m o s em seg u id a algu m as das fu n çõ es m ais co m u n s das v o z e s, ten d o em con ta as linhas de referência teórica m a is im portantes. A s p ersp ectiv a s a segu ir descritas de m od o n enh um se ex clu em m utuam en te; antes se fundam entam , em geral, e m m a is d o q u e um a lin ha d e referên cia ao m esm o tem po.
T eoria freu d ia n a do inconsciente P artirem os do p ressu p osto da ex istên cia da c o n sc iê n c ia e d o in co n scien te. A lg u n s m od ern os d efen so res d este m o d elo acreditam que o in co n scien te se lo c a liza no h em isfério cerebral d ireito, q u e apenas d isp o n ib iliza ao h em isfério esqu erd o verb al um a parte da inform ação q u e co n tém . S e não estiv er em co rresp on d ên cia co m aqu ilo que o h em isfério esq u erd o pensa, a inform ação oriunda d o h em isfério d i reito é exp erim en tad a co m o eg o -d istó n ica (isto é , co m o n ã o -E u ), e é escu tad a, por v e z e s , sob a form a de v o z e s. N a h ip n o se ten tam os esta b elecer con tacto directo co m a m etad e d ireita d o cérebro, evitan d o ou p assan d o ao lado da m etad e esquerda. S e e s s e con tacto se puder efectu ar, será en tão p o ssív e l exercer a lgu m a in flu ên cia. A natureza da organ ização-in form ação da m etad e direita do cére bro (p ro cesso s prim ários, pré-verb ais ou p r é -ló g ic o s) sig n ifica q u e a m elh or m aneira d e exercer in flu ên cia sobre e la é através de p ro cesso s do m esm o tipo, ou seja, por ex em p lo , através d e m etáforas, de sons n ão-v erb a is, de m o v im en to s, etc. É tam bém p o ssív e l à m etad e direita do céreb ro com p reen d er frases bastante sim p les; a cap acid ad e de co m p reen sã o p a ssiv a é superior à activa. E ste m o d elo p o d e aplicar-se n o ca so de v o z e s que tenham tam bém um b a ix o grau de organ i 232
zação verbal. S ob circu n stân cias redutoras da an sied ad e, co m o é o ca so de um a terapia estruturante, p o d e estim u la r-se um a troca m ais livre d e inform ação entre as m etad es esq u erd a e direita do cérebro.
Teoria freu d ia n a do id, e g o e su p er-ego E ste m o d elo assen ta n o p ressu p o sto d e q u e a p erson alid ad e é com posta por id, ego e super-ego. E m geral, as d elib erações do ego são experim entad as c o m o e g o -sin tó n ica s (isto é, co m o E u) e são a cei táveis para o p acien te (em b ora se o b serv em e x c e p ç õ e s a esta regra em m uitas perturbações d isso cia tiv a s). A ssim , h ab itualm ente, o ego não tem n ecessid a d e d e se exprim ir so b a form a d e um a v o z . A s v o zes podem em ergir do id quando d eterm in ad os im p u lso s p rim itivos não são aceites p elo super-ego\ e ssa s v o z e s p o d em en tão ser ex p erim en tadas co m o ten tações d o d iab o, p or e x em p lo . A s v o z e s acusadoras p od em ser vistas co m o oriundas d e um super-ego rigoroso e austero que exprim e críticas sobre o s im p u lso s d o id - críticas q u e, send o d em asiado severas para qu e o ego as a ceite, p od em en tão ser e x p e rim entadas co m o a v o z d e um D e u s ju lgad or. N u m tom m ais c o n s trutivo, há tam bém v o z e s co n selh eiras q u e se p resu m e oriundas do ego e do ego-ideal (o qual, co m a co n sc iê n c ia , p rovém do super-ego).
Exemplo Uma moça de 16 anos masturbava-se desde os 3. Um dia, a mãe entrou no quarto sem avisar e apanhou-a a masturbar-se; corando de embaraço, a mãe deu meia volta e retirou-se sem dizer uma palavra. A partir desse dia, a moça passou a ouvir a voz da mãe e a duma mulher desconhecida, dizendo-Ihe que seria queimada viva à vista de toda a gente. Durante a terapia, a moça foi recebendo informação objectiva e factual sobre o desenvolvimento sexual normal e leu o Relatório Hite. Decidiu transmitir essa informação às vozes, mas na noite em que o tentou fazer, as vozes desapareceram e nunca mais voltaram. A moça deu a ler à mãe um livro sobre o assunto e a mãe, por sua vez, revelou-lhe um pouco do seu próprio desenvolvimento sexual, que havia sido marcado por um forte preconceito religioso. 233
N o relacion am en to co m as v o z e s originárias do id, é co n ven ien te utilizar argu m en tos m orais o u práticos. C om as v o z e s originárias do super-ego, u tilizar-se-ão argum en tos d e co m p a ix ã o e clem ên cia , se n ecessário ap oiad os por cita çõ es b íb lica s (por ex em p lo , a parábola do B om S am aritano) ou através d e um a d escrição m ais realista de um a figura paterna en ten d id a c o m o p resen ça pu n itiva (“Já p en sou q u e o seu pai p o d e tam bém ter fe ito o m esm o ? ”, etc.). P a rece-m e co n v en ien te m anter um a certa distância entre as várias co m p o n en tes estruturais; o m ais im portante é tentar co n seg u ir um a b oa co m u n ica çã o entre ela s e dar a cada co m p o n en te um a ju sta par cela d e aten ção.
O rganização dissociativa N a b ase desta p ersp ectiv a está o p ressu p osto de que a p erson ali dade alb erga no seu se io um conjun to de sub person alidad es m ais ou m en os separadas, cada um a co m um p ro cesso próprio d e aprendiza g em m ais ou m en os d e se n v o lv id o . Q uanto m ais estreitam en te inter ligad as estiv erem essa s su b p erson alid ad es, m ais o seu hosp ed eiro se sentirá um todo unitário. Q uanto m ais separadas estiv erem , m aior será o esfo rço n ecessário a n ív el d o d iá log o interno e m ais subpersonalidades serão v iv en cia d a s c o m o n ão-E u . A ocorrên cia de um a organ ização d isso cia tiv a da p erson alid ad e d ep en d e da p red isp o sição inerente e da n ecessid ad e d e fazer fren te a q u aisq uer exp eriên cias traum atizantes (ver S ecçã o Traum as d este C apítu lo). E m geral, o tratam ento d irig e-se a um a m elhor co m u n ica çã o entre as partes d issociad as; por outras palavras, para um m elh or eq u ilíb rio entre o s d iv erso s con stitu in tes e para um reforço da sub person alidad e principal. A m inha p referên cia vai n o sen tid o de se prom over um “en con tro”, em qu e cada u m a das partes p o ssa ter um a palavra a dizer, dando m ais tem p o para falar a um a parte e m en os a outra; nestas “a sse m b leia s”, o “p resid en te” n e cessita hab itualm ente d e um a p o io in ten siv o por parte d o terapeuta. P od em tam bém u tilizar-se outras m etáforas: o s m em b ros d e um a orquestra, de um a em p resa, de um a fam ília, etc. 234
P erspectivas sociais N este ca so , as v o z e s rep resen tam u m su b stitu to d e co m p an h ia. S e um p acien te co stu m a sen tir-se só , p o d erem o s ajud á-lo a analisar se na sua vid a ex istem op ortu n id ad es d e aum entar as h ip óteses d e esta b e lecer con tactos in terp esso ais. P o d e p on d erar-se a p o ssib ilid a d e d e o(a) p a c ie n te fa z e r p a rte d e c lu b e s o u a s s o c ia ç õ e s o u d e p rocu rar com pan heiro(a) através d e um a a g ên cia m atrim onial ou d e en con tros.
Exemplo Um marroquino, de 34 anos de idade, vem perdendo progressivamente as suas ligações com o mundo circundante. Considera que 90% da população é desonesta e receia tornar-se agressivo, como já havia acontecido antes, e, assim, poder cometer actos contra as pessoas ou contra a propriedade. Quando está sob pressão, vê pessoas minúsculas em redor dele, que lhe falam na sua língua e lhe trazem simpatia e paz. Ele acha o tamanho dessas pessoas mais atraente que o do mundo normal. Não se considera louco, mas sente-se com pavor de ficar louco. T erem os de d istin gu ir cu id ad osam en te ca so s c o m o e ste d o b em co n h ecid o fen ó m en o , vu lgar entre as crian ças, d o com p an h eiro faz-d e-con ta (que p o d e ser u m a p esso a , um anim al ou um a p erson a g em de um con to d e fa d a s), co m o qual só a crian ça é cap az d e com u n icar. E stas com p an h ias im agin árias n ão são em si m esm a s anorm ais; só é n ecessário tratam ento se a crian ça rom per co m o m u n d o real. S e um dado p acien te reco n h ece as v o z e s qu e o u v e co m o sen d o d e alg u ém co m quem gostaria d e ter um a relação estreita na vid a real, en tão torna-se um a q u estão d e teste da realidade. C o m p reen siv elm en te, a parte em cau sa raram ente está d isp osta a en v o lv er-se; m as, se puder m os ganhar a sua co o p era çã o , p od e ser útil proporcionar um d eb ate durante a terapia em q u e esteja realm en te p resen te essa p esso a . M esm o en tão, n o entanto, o p a cien te p o d e atribuir por v e z e s m aior realid ad e às v o z e s do qu e à p e sso a da vid a real: p o d e, por e x em p lo , d izer que essa p esso a se está a con ter d ian te do terapeuta e, por isso , n ão d iz a verd ad e toda. 235
Exemplo Há 7 anos atrás, esta mulher de 29 anos teve um romance passageiro com um artista. Conserva ainda o auto-retrato dele como recordação, e quando pega no quadro estabelece contacto paranormal com o artista: a face do auto-retrato mexe e ela fala com ele. Por este processo, ele garantiu-lhe que um dia casará com ela e que as antigas namoradas nada significam para ele. O artista concordou em falar com ela e com o terapeuta simultaneamente e em tentar convencê-la de que as expectativas dela são irrealistas. Ela então destruiu o auto-retrato, se bem que mais tarde o tentasse restaurar. Recentemente ela tem tido dúvidas sobre a possibilidade de esse casa mento se realizar; de momento põe a hipótese de fazer votos e entrar para um convento. Ouve também a voz de Deus: Ele diz-lhe que está ansioso por recebê-la como Sua noiva, assim que esteja completamente limpa de desejos pecaminosos. Ela não está preparada para tomar neurolépticos ou lítio. L uto N ão sã o raras as p e sso a s qu e, im ed iatam en te ap ós a m orte d e um com p an h eiro, parente ou a m ig o íntim o, o u v em e fec tiv a m en te o m orto falar. E in teressan te notar co m o , m uitas v e z e s, a v o z dá co n selh o s ou co m o , p e lo contrário, lh e p ed em co n selh o s a ela; o padrão co n siste freq u en tem en te em palavras de con forto e d e carinho. E m ca so s d e s tes, n ão v e jo n e cessid a d e nenhum a de intervir. O utra co isa , e v id e n tem en te, é se o m orto se transform a num torm ento, sem pre a repisar q u estõ es q u e tinham p erm an ecid o em segred o ou q u e eram tabu antes da m orte. O terapeuta p od e ajudar, en corajand o o p a cien te a levar este tipo d e d iá lo g o s até ao fim , de um a v e z por todas, em lugar de os interrom per sem p re n o m esm o pon to.
Exemplo Uma senhora de 64 anos procura ajuda. O marido morrera de ataque cardíaco sete meses antes, depois do que ela considera ter sido um bom casamento. No entanto, ela nunca ousara dizer-lhe que o segundo dos seus quatro filhos - o único filho varão - não era filho dele, mas o resultado de um romance passageiro que tinha tido na Haia. Nos últimos quatro meses vinha sendo atormentada todas as noites por uma voz cantando: “Na Haia 236
vive um conde, e o nome do seu filho é Jantje”, seguido de uma terrível gargalhada. Nessa voz ela reconhecia a voz do marido. Após uma troca de impressões com o terapeuta, a senhora escreveu três cartas ao marido. Na primeira, confessou a sua infidelidade; na segunda, relatou todos os belos momentos que ambos tinham partilhado no casamento; na terceira, falou dos planos que vem fazendo para a vida que lhe resta viver. Queimou as três cartas no jardim, debaixo do banco onde ambos costuma vam sentar-se juntos. Depois disso nunca mais voltou a ouvir a voz do marido. O s fam iliares so b rev iv o s p od em por v e z e s ou vir v o z e s a falar d aq u ilo a q u e se atribui a resp on sab ilid ad e da m orte; isso é parti cu larm en te co m u m n o caso da m orte d e um filh o . A crian ça p od e chorar pu n jen tem en te do outro m un do, im p loran d o a p rotecção qu e o pai (a m ãe) fo i in cap az d e lh e dar em vid a . A tarefa do terapeuta é co lo c a r a situ ação so b um a p ersp ectiva realista; n estes c a so s, p od em ser ú teis o s rituais d e pranto, particu larm ente n o fim da terapia. É tam bém m u ito co m u m ser o u vid a a v o z d o m orto quando o cô n ju g e so b rev iv o se prepara para dar in ício a um a n o v a relação. A qui, o terapeuta p od e ajudar a trabalhar algu ns p on tos d e am bivalên cia. S e a relação em vid a era b asicam en te b oa, o (a ) m orto(a) co m certeza que dará a sua b ên çã o , se estiv er co n v en cid o (a ) d e q u e essa n ova relação tem futuro.
A uto-exaltaçã o E m certos c a so s, há q u em receb a d irectam en te d e D eu s, ou de a lgu m a p erson agem h istórica fam osa, um a m issã o im portante. N o seu con ju n to, e ssa s m issõ e s são p o u co v iá v eis na prática: m uitas v e z e s são d e tal natureza q u e, se o p acien te em b arcasse n ela s efectiv a m en te, trariam co n seq u ên cia s m u ito d esagrad áveis. S e e ssa s id eias d e gran d eza forem rejeitad as b ru scam en te, há um a p rob ab ilid ad e razoável d e o p acien te se sen tir in com p reen d id o, a lie nad o e insultado; por d eb a ixo da capa da au to-exa lta çã o estã o , em geral, sen tim en to s d e inferioridad e. Q u er-m e parecer qu e a m elhor m aneira d e reso lver estas situ a çõ es é analisar co m o p acien te os pro237
p ó sito s da en tid ade que lhe co n fio u a m issã o e n ego cia r co m as v o zes um o b jectiv o m ais e x e q u ív e l, e m a is a ceitá v el m oralm ente, e só então tentar cu m pri-la.
Exemplo Um jovem de 29 anos desistiu, há pouco tempo, do seu curso de Histó ria na Universidade. Descobriu que não conseguia concentrar-se nem esta belecer contactos com os seus colegas de curso e voltou para casa dos pais, onde passa horas e horas no computador. Ouve uma voz que lhe diz que ele é a reincarnação de Mussolini e que tem por missão unificar a Europa. Além de treinar os seus reflexos com os Invasores do Espaço, es creve a pedir informações sobre sistemas de armamento e está a tentar ser aceite nos Comandos. Trabalhando sobre a hipótese de ele procurar uma solução final para o seu próprio caos interior e para a sua vida social desorganizada, a aborda gem terapêutica tem sido a de prosseguir passo a passo um programa de reinserção social. Em resultado disso, ele e os seus pais têm agora perspectivas mais realistas e as vozes tornaram-se menos intrusivas. A uto-agressão Q u and o as v o z e s m andam a p e sso a agir contra si própria e até su icid ar-se, em c a so s extrem os, esta tem hab itualm ente co n sciên cia d e estar num estad o de hum or d e fu n d o d ep ressivo , q u e às v e z e s se fa z acom panhar de id eias delirantes de cu lp a ou de c o n v ic ç õ e s niilistas. O s sen tim en tos d ep ressiv o s tam bém se p o d em d isso cia r por com p leto. A tarefa do terapeuta será a d e o ferec er ap oio à parte saud ável da person alid ad e - qu e p od e estar representada por um a v o z , que p od e ser encorajada. A n e g o cia çã o co m v o z e s destrutivas é m ais produtiva d o q u e qualquer tentativa de as ignorar. O s m ed ica m en to s antidep ressores, em p o ssív e l a sso cia çã o c o m o s n eu ro lép tico s, poderão dar a p o io a essa n eg o cia çã o .
Exemplo Uma jovem de 23 anos sofre de depressões desde os 15, e tinha 17 quando se tentou suicidar pela primeira vez. Desde então, tem feito outras 238
tentativas. Durante muito tempo, recusava dizer mais do que umas quantas palavras, e mais tarde soube-se que estava proibida de falar pelas vozes que ouvia. Perdeu 16 kg de peso desde que as vozes começaram a dizer-lhe que tudo o que comesse se transformaria em lombrigas. O avô, de quem era muito chegada, faleceu quando ela tinha 13 anos; no funeral, ela sentiu-se como que atraída para o fundo da campa. Ela disse que o avô fora sepultado ao lado da avó e que agora ouvia as vozes de ambos, à noite, pedindo-lhe que se deitasse no meio deles. Durante a terapia foi incitada a submeter as vozes a um esforço de crítica: se o que elas dizem é bem intencionado, não porão qualquer objecção a que se esclareça aquilo que as move. Para aju dar, foi-lhe prescrito um neuroléptico dépôt. A s ordens d e a u to -agressão pod erão entroncar ainda noutro tip o d e co n flito s. Por e x em p lo , as v o z e s p o d em d izer q u e isso é n ecessá rio para salvar a fa m ília inteira, o u algu m parente, d e um a grande tragé dia. À s v e z e s, é co stu m e a co n tecer em crianças d e pais q u e estão a divorciar-se. N e ste s c a so s, a m elh or o p çã o é organizar se ssõ e s co m toda a fam ília. E stas situ a çõ es tam bém p o d em ser en ten d id as sob outras p ersp ectivas que são apresentadas n e ste C apítulo: por ex em p lo , p od em ser ordens p roven ien tes d o su p er-eg o para elim in ar im p u lsos d o id.
A spectos m etafísicos O ou vid or d e v o z e s p o d e d e se n v o lv e r o u adoptar p ersp ectivas m eta físicas ou m ística s m u ito variad as. P or e x em p lo , p od e en carar-se co m o um eleito ou p roteg id o , a q u em foram co n ferid o s p od eres e s p eciais e a qu em foram p rom etid as recom p en sas; m as, para q u e isso se verifiq u e, pod erá ter d e su b m eter-se prim eiro a d eterm inado tip o de p ro cesso s e p rovas. E stas p e sso a s têm ten d ên cia a procurar o co n selh o e a orien tação d e g en te en ten d id a n o sistem a m eta físico adoptado. D o m eu p on to d e v ista , é essen cia l q u e o terapeuta le ig o n estas m atérias se certifiq u e d e q u e o p acien te, n este co n tex to , n ão se esq u ece da sua saú d e, das su as tarefas diárias e d os seu s con tactos p esso a is. T am b ém é im portante estar atento às arm adilhas co lo ca d a s p ela estrutura p sica stén ica da p erson alid ad e, tal c o m o a d escrev eu o
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p sic ó lo g o e psiquiatra fran cês Pierre Janet (ver a S e cçã o segu in te d este C apítulo, sobre P erson alida de dissociada). C om o tentei dem onstrar, as o p çõ es v iá v eis no ca m p o da ajuda efectiv a ou do ap oio ao ou vid or de v o z e s depen dem , em grande m edida, da fu n ção que as v o z e s d esem p en h a m em cada ca so . H á, n o en tanto, um certo núm ero de lin h as gerais de orientação que se p o d em a co n selhar ao o u vid or d e v o zes: - H ab itualm ente, as v o z e s são um tanto vagas. M uitas v e z e s é van tajoso encetar um d iá lo g o para lh es pedir escla recim en tos. - N o in ício ten d em a surgir m o m en to s d ifíceis; se as v o z e s são p o sitiv a s, p o d em o s esta b elecer um horário para lh es prestar aten ção. - S e há m ais d o q u e um a v o z , é im portante ch am á-las ao d iá lo g o um as co m as outras. S e tiver de haver d iscu ssõ es, ela s pod erão passar-se totalm ente entre as próprias v o zes; n em sem pre é n e cessá r io que o o u vid or se e n v o lv a n essa s d iscu ssõ es. - S e as v o z e s estã o sem p re a rep etir-se, en tão o m elh or será a p o n tar o q u e elas d izem ; a ssim , da próxim a v e z que surgirem , p o d e d izer-se-lh e s qu e já se sab e o qu e têm para dizer. - N ã o se d e v e dar d em asiad a im portância ao q u e um a v o z tenha para dizer; cada v o z , d e per si, representa apenas um p on to d e vista , nada m ais do q u e isso . - T entar aprofundar o sig n ifica d o sim b ó lico das v o z e s e explorar ao m áxim o esta via. - S e as v o z e s o u o seu con teú d o não forem agrad áveis, o m elh or será tratá-las co m o se trata qualquer ruído in cóm od o. Será interessan te aprender p ela ex p eriên cia a afu gen tá-las, co m ex p ed ien tes d o género: baixar o v o lu m e das v o z e s , fazer m uito barulho, usar auscu ltad ores estéreo, prestar a ten ção a outras fo n tes de ruído; procurar um a form a d e d istracção, e m e sp e c ia l praticar a ctivid ad es física s. D o m eu pon to de v ista , o o b jectiv o d ev e ser alcançar um m aior con trole sobre as v o z e s , para n ão se ficar p rision eiro d o s seu s capri ch os; p elo contrário, são as v o z e s q u e d ev em estar ao serv iço de qu em as o u v e. O m eu co n se lh o é qu e, durante este p rocesso , n ão se fiem ex clu siv a m en te nas v o z e s, n em tão-p o u co n os livros, m as q u e pro 240
curem o ap o io e a ajuda de p rofissio n a is e d e so b rev iv en tes n esta área. F inalm ente, em tod os o s tratos q u e haja co m as v o z e s , o sen so co m u m 6 o m elhor guia.
A personalidade dissociada Onno van der Hart Introdução T o d o s n ós n o s relacion am os co m o m un do q u e n o s rod eia d e duas m aneiras fu n d am en tais. A lg u m a s das co isa s qu e fa z e m o s n ão p assam de rep etiçõ es d aq u ilo qu e aprend em os n o passado; outras são ou re presentam esfo r ç o s n o v o s e criativos n o sen tid o d e n o s adaptarm os a circu nstâncias q u e estão em m utação. E v id en tem en te, o n o sso co m portam ento é , em regra, um a co m b in ação das duas v ia s. A m aior parte das a cçõ es q u e sã o características d e cad a um d e n ó s sã o -n o s m u ito fam iliares; quanto m ais as ex ecu ta m o s au tom aticam en te, m ais elas fazem parte da n o ssa p erson alid ad e. M as tam bém é verd ad e q u e algu m as p e sso a s lev a m a cab o, m ais ou m en os au tom aticam en te, a cçõ es q u e, na essê n c ia , são caracterís ticas d ela s, em b ora v iv e n c ie m p en sam en tos e sen tim en to s p e lo s qu ais não se sen tem resp o n sá v eis. E stas a cçõ es, p e n sa m en to s e sen tim en tos não são, por a ssim dizer, fu n cio n a is para ela s p e sso a lm e n te. N e sse s ca so s, um a parte da p siq u e fu n cio n a m ais ou m en o s in d ep en d en te da personalidade c o m o um tod o, m as, n o entanto, é su scep tív el d e in flu en ciar a m aneira co m o cada um d e n ós fu n cion a co m o in d ivíd u o. E ste fen ó m en o , cu jo p rin cipal a sp ecto é a d isso cia çã o , tem sid o a lv o de um a d ed icad a aten ção n os an os m ais recen tes.
D issociação E m 1889, o psiquiatra e p sic ó lo g o fran cês P ierre Janet (1 8 5 9 -1 9 4 7 ) d efin iu dissociação co m o sen d o a fu ga ao co n tro le da p esso a , no estad o d e alerta p síq u ico habitual do q u otid ian o, d e sistem a s de 241
id eia s e, m uitas v e z e s, d o co n h ecim en to. E stes sistem a s d e ideias d irigem a vid a d e cada um d e n ó s a um n ív e l in co n scien te e podem interferir co m a co n sciên cia quotidiana ou , sim p lesm en te, alternar c o m ela. O e x e m p lo m ais sim p les da a ctiv id a d e d e sse s sistem a s de id eias é ta lv ez a su g estã o hip nótica, a qual tem e fe ito de um m odo a u tom ático; o ex e m p lo m ais co m p leto pod erá ser a form a çã o de um transtorno de personalidade m últipla, n o qual a personalidade de um in d iv íd u o se fragm enta num certo nú m ero d e id en tid ad es separadas q u e p o d em co ex istir e em ergir in d ep en d en tem en te um as das outras. Janet con sid erava um sin tom a p a to ló g ico a ten d ên cia (ou a capacidade) para d isso cia r; p s ic ó lo g o s m o d ern o s c o m o H . e E . F rom m , que red escob riram a teoria da d isso cia çã o de Janet, acred itam q u e se trata d e um fen ó m en o da esfera da n orm alidade - por outras palavras, qu alq uer p e sso a é cap az, em graus v a riá v eis, de m anifestar essa ten d ên cia . A in v estig a çã o m oderna in d ica q u e as p e sso a s que passaram por ex p eriên cia s particularm ente traum áticas na sua ju ven tu d e d e se n v o lv erã o , em regra, essa cap acid ad e em grau m a is elev a d o do que as outras p essoas: p arece, p o is, ex istir um a co rrelação entre o s traum as e a ten d ên cia para d issociar.
T raum as e dissociação O term o “traum a” a p lico u -se in icialm en te às le sõ e s física s e , e fec ti-
v a m en te, ainda h oje se m antém em uso n e ssa a sserção. N o sécu lo XIX, a ex p ressã o “traum a p sic o ló g ic o ” fo i introd uzid a c o m o um a m etáfora para as rea cçõ es d e m ed o e desn orte p rovocad as por um a co n tecim en to in feliz. P o d em o s d izer que determ inada p e sso a sofreu um traum a p sic o ló g ic o (ou psicotraum a) quando v iv e u d irectam en te um a co n te cim en to trágico, fo i testem u nh a d e le ou d e le o u v iu falar, e reagiu co m sen tim en to s in ten sos de m ed o e im p otên cia. E sse s acon tecim en to s p od em in cluir aciden tes de v iação graves, roubo, rapto, v io la çã o , abuso sex u a l na in fân cia ou m orte súbita de um fam iliar. E m particular, tem -se v isto q u e m uitas vítim a s d e in cesto so frem d isso cia çã o durante a ex p eriên cia traum ática; algu ns referem , m ais tarde, durante a terapia, qu e en q u an to durou a exp eriên cia d o ab u so se sentiam a flutuar no 242
tecto, observan d o o q u e estava a acon tecer e m b aixo. O s naturais sentim en tos de m ed o, raiva, tragéd ia, etc., a ssim co m o as sen sa çõ es lísica s d e dor e d e ten são n ão fa zem parte da exp eriên cia tal c o m o ela ocorreu, dado q u e estavam d isso cia d o s. D á -se um a d isso cia çã o m ais co m p leta quando a criança qu e sofre o abu so co n seg u e d esap arecer m en ta lm en te da cen a por co m p leto . A criança p o d e fantasiar voar p e la ja n e la fora, esco n d er-se atrás d e um biom bo, refu giar-se nu m a n u vem e , assim , n ão poderá ter m em orizad o um traum a que n ão fo i v iv id o co n scien tem en te. N o en tanto, há p elo m en os um a outra parte (d isso cia d a ) da person alid ad e qu e v iv e u o traum a co m p leta ou parcialm en te e q u e, p or isso , tev e um certo grau de co n sciên cia d aq u ilo q u e a co n teceu . A h ip n o se o ferec e a p o ssib ili dade d e in vestigar isso .
M em órias traum áticas A ex p eriên cia d isso cia d a n ão se to m a parte integrante da p erso nalidade; a sua record ação n ão é arm azen ad a n o b an co da m em ória da m aneira habitual. E m v e z d isso , a p ercep çã o traum ática fica d ep o sitada n o b an co da m em ória co m o um esta d o em o cio n a lm en te carre gad o, q u e p od e ser reactivad o e m circu n stân cias (p recip itan tes) que, de certo m o d o , ten ham a lg o q u e ver co m determ inado a sp ecto do a co n tecim en to o rigin al. P or e x e m p lo , a m ulh er v io la d a co m um a navalha à fren te p od e rem em orar o in cid en te sem pre qu e esteja na co zin h a a cortar leg u m es, e rea g e co m a m esm a an sied ad e e pân ico que sentiu , em b ora d isso cia d o s, durante a v io la çã o propriam ente dita. A ssim , as m em órias traum áticas n ão são m em órias n o sen tid o habitual da palavra, em q u e a p e sso a p o d e rem em orar e contar à von tad e um a exp eriên cia; essa s m em ó ria s traum áticas n ão têm qu al quer fu n ção so cia l (n ão e n v o lv e m m ais n in gu ém n o presen te) n em têm valor adaptativo em relação às circu n stân cias d o traum a origin al. N ã o representam um a m em ória narrativa m as, antes, estad os v iv en cia is d isso c ia d o s. Q u an d o algu m e le m e n to da ex p e riê n cia d isso cia d a é reactivad o, o estad o ex p erien cia l em si é au tom ática e v ivid am en te ch am ad o à com p arên cia. 243
O fen ó m en o das m em órias traum áticas reactivadas ex p lica por que é q u e tantas p e sso a s traum atizadas reagem tão violen ta m en te em s i tu ações qu e sã o in teiram en te neutras ou p o u ca ten são despertam à m aioria das outras p e sso a s. M u itos p acien tes p siq u iátricos ex ib em sin tom as que são o resu ltad o de um a traum atização precoce; essa s p e sso a s carregam , m uitas v e z e s , um fardo m u ito p esa d o , quer por ter sid o enterrada a sua p ercep çã o d o traum a, quer p e lo s fen ó m en o s d isso cia tiv o s a sso cia d o s - am bas as co isa s su scep tív eis de não serem im ed iatam ente co m p reen d id as p ela s outras p esso a s, in clu in d o, por ex em p lo , os trabalhadores so c ia is q u e lid am co m o ca so . E sta p o d e ser um a das razões p ela s q u ais o com p ortam en to e as p ercep çõ es ligad as ao traum a reactivad o lev a m por v e z e s o rótulo d e p sico se; e d e fen ó m en o s correla tiv os, c o m o a escu ta de v o z e s, m erecerem o d ia g n ó stico de esq u izo fren ia . A s d isfu n çõ es do transtorno d e p erso n alid ad e m últipla - m uitas v e z e s co n sid era velm en te m ais variadas p assam , a ssim , em claro.
Traumas: um estudo sobre abuso de crianças e alucinações Bernardine Ensink Introdução N o s an os m ais recen tes tem vin d o a p u b licar-se um a série d e trabalhos sobre o im p acto p s ic o ló g ic o d o abu so sexu al em crianças. O s prim eiros estu d o s tinham ten d ên cia a tom ar a form a de d o cu m en tos p esso a is, do gén ero “D á U m B eijo ao Papá. B o a N o ite” (K iss D addy G ood N ight), de L o u ise A rm strong (1 9 7 8 ), e “A C onspiração de S ilên cio ” (C onspiracy o f Silence), d e Sandra B utler (1 9 7 8 ). A estas obras d ep ressa se segu iriam liv ro s e artigos in flu en tes, escritos por terapeutas c o m o H erm an, G elin a, G o o d w in e Su m m it, qu e tratavam m u lh eres co m h istória d e abu so sexu al na infân cia. P orém , n em aq u eles relatos p e sso a is n em estas prim eiras o b serv a çõ es clín ica s d e 1981 a 1983 perm itiam g en era liza çõ es em que se p u d esse con fiar sobre o im pacto d e sse s ab u sos, até surgir, um p o u co m ais tarde, um p eríod o de extraordinário flo rescim en to d e sse tipo de in v es244
lig a çõ es. Por v o lta d e 1 9 8 6 , p recisam en te 10 anos d ep o is da p u b lica ção do prim eiro relato p e sso a l, B row n e e F in k elh or esta v a m em c o n d içõ es de proced er à rev isã o d o s resu ltad os d e 14 p rojectos d e in v e s tigação nesta área, p rojecto s e sse s q u e tinh am seg u id o , to d o s e le s, um a só lid a m eto d o lo g ia d e in v estig ação . Surgiram q u ase lo g o outros tantos trabalhos. N u m estu d o c o n d u z id o por n ó s, tom aram parte cer ca d e 100 m ulh eres, tod as e la s v ítim a s d e ab u so p red om in an tem en te sex u a l durante a in fân cia, p or parte do pai ou do padrasto, durante um p e ríodo de 4 an os o u m ais. E sta in v estig a çã o b a seia -se n o p ressu p osto d e qu e já esta v a c o m provada a correlação en tre o abu so sex u a l sofrid o durante a in fân cia e determ inados sin to m a s p siq u iátricos p osteriores. V ários estu d o s há, por ex em p lo , qu e m ostram q u e as m u lh eres vítim as d e ab u so sexu al durante a in fân cia têm m a is ten d ên cia a fazer ten tativas d e su icíd io do que as outras m u lh eres; outros estu d os en contram um a relação entre o abuso so frid o e a p resen ça d e perturbações d isso cia tiv a s na actualidade. N e ste s ú ltim o s estu d o s, as a lu cin a çõ es au d itivas v êm send o relacion ad as c o m trau m atism os d e in fân cia. A q u estão central do n o sso estu d o era a segu in te: será qu e as d iversas características do abu so (sex u a l) durante a in fân cia têm algu m a co rrelação co m os sin tom as p siq u iátricos e sp e c ífic o s ap resen tad os na vid a adulta? D o conjun to d e sin to m a s rela cion a d o s co m o ab u so sexu al na in fân cia seleccio n á m o s a q u eles q u e fa zem parte d e quatro grand es áreas: per turbações d isso cia tiv a s d o estad o da c o n sciên cia , a lu cin a çõ es, auto-agressiv id a d e e ten d ên cia s su icid as. C o n cen trar-n os-em os aqu i, em particular, na relação en tre as ca racterísticas d o ab u so sex u a l na in fân cia e as a lu cin a çõ es aud itivas. Para efeito s d este estu d o (q u e apenas in clu i vítim a s do se x o fem in in o ), o abu so sexu al na in fâ n cia d e fin e -se p e lo s seg u in tes critérios: -p r á tic a s se x u a is q u e in clu e m co n ta cto s corp orais c o m zo n a s gen itais prim árias ou secu nd árias; - q u e são realizad as em crian ças d e se x o fem in in o co m 15 an os de idade ou m en os; - levad as a ca b o p or m em b ros da fa m ília ou do círcu lo d e a m ig o s, cuja idade é , p elo m en o s, 5 an os superior à da vítim a. 245
Para e fe ito s d este estu d o, d e fin im o s a lu cin a çõ es c o m o quaisquer ex p eriên cia s d e tipo p ercep tivo que: - ocorram na a u sên cia de um estím u lo adequado; - ten ham a força da p ercep ção real corresp ond ente; - n ão sejam a c e ssív e is a um co n tro le directo e volu n tário. N o n o sso estu do, fizem o s a distinção entre vários tip os d e fen óm en os alu cin atórios: lam p ejo s m n é sico s co m características alu cinatórias, a lu cin a çõ es v isu a is e a lu cin a çõ es aud itivas.
EXPERIÊNCIAS ALUCINATÓRIAS lampejos mnésicos alucinatórios alucinações visuais alucinações auditivas
Distribuição (N = 97) n % 33 34 41 42 37 43
J. fo i abusada sexualm ente pelo p a i várias vezes, entre os 6 e os 27 anos de idade. D urante a terapia tentou rem em ora r diversos p o r m enores em ocionais dos incidentes da infância.
“Sucedeu, então, uma coisa que me assustou verdadeiramente. Senti que voltava a ser criança, com o mesmo sentimento de estar presa num túnel o sentimento de não poder fugir da situação. Na verdade, não sabia como escapar. Era difícil convencer-me a mim mesma de que, há muito tempo atrás, já tinha conseguido escapar.” A lg u m a s m u lh eres p assam por fa ses na v id a em qu e rev iv em as suas m em órias d e in fân cia co m tal in ten sid a d e qu e n ecessita m da ajuda d e terceiros para discrim inar a realid ad e. T od as as qu e relata ram e s s e s lam p ejos m n ésico s d isseram q u e e ssa s ex p eriên cia s foram breves.
A lucina ções visuais L am pejos m nésicos com características alucinatórias
I. fo i ab usa da sexualm ente e m uito m altratada p e lo p a i. E is com o descreve um dos seus p ro blem as de hoje:
F oram relatadas por 42% d os elem en to s da n o ssa am ostra, que v iv en ciaram vários tip os d e a lu cin a çõ es visu ais: - terrores diu rnos v iv en cia d o s co m o a lu cin a çõ es - p eríod os d e son a m b u lism o diurno tão v ív id o s co m o alu cin a çõ es - a lu cin a çõ es a u to scó p ica s (v isõ e s da sua própria p esso a ) - a lu cin a çõ es v isu a is claram en te relacion ad as co m o ab u so sexu al.
“O mais horrível é que já nem posso olhar para o meu marido. Quando estou na casa de banho e ele chega, tenho logo que me retirar - para mim não é o meu marido que chega, mas sim o meu pai. Vejo o meu pai entrar na casa de banho. Só de pensar nisso fico logo enojada.”
N o n o sso estu d o , 8 m u lh eres referiram ex p eriên cia s alu cinatórias relacion ad as d e algu m m od o, e em m aior ou m en or grau, co m o facto de terem sid o vítim a s d e ab u so sexu al.
P or lam p ejo s alu cinatórios pretende d esig n a r-se o qu e ta lvez se p o ssa ilustrar m elh or através d os seg u in tes ex em p lo s:
I. tem tido distorções perceptivas: o aco ntecim ento real (ver o m arido) desencadeia um lam pejo m nésico que tra nsform a a sua p e r cepção.
H á q u em d iga que estes lam pejos m n ésico s p od em ser tão intrusivos que a p e sso a ch eg a a perder o s seu s pon tos de lig a çã o à identidade adulta e p a ssa a sen tir-se n ovam en te criança. 246
K. fo i, na infância, vítim a de abuso sexua l p o r p a rte do p a i e fo i violada na idade adulta.
“Depois de ter sido violada fui internada no hospital. Durante a estadia lá, recusava-me a comer: via esperma na comida, nas bebidas, via esperma por todo o lado.” 247
Terrores diurnos na fo rm a de alucinaçõ es visuais C in co m ulh eres referiram terrores diurnos co m con teú d o sem e lhante aos seu s p esa d elo s n octurn os.
H. d isse-n os:
“Tirlha muitas vezes este sonho terrível, que o meu pai vinha para me matar. Quando acordava de um desses pesadelos e via o meu companheiro a dormir a meu lado, não conseguia afastar o pressentimento de que ele me queria matar. Durante o dia, sentia que alguém me estava a apertar o pescoço e que havia monstros a saltar por cima de mim. Isso era mil vezes pior do que aquilo que o meu pai me fez. Em geral, eu acordava porque gritava (muito alto, pensava eu), mas ninguém me ouvia. Na realidade, não gritava assim tão alto e tenho a certeza de que alturas houve em que esses gritos não passavam de sonhos.” Sonam bulism o com alucinações visuais O ito m u lh eres referiram p eríod o s de son a m b u lism o diurno, durante o s q u ais tinham a lu cin a çõ es terríveis, tão v ívid as q u e as faziam gritar e con torcer-se.
E. con tou -nos:
“Certa vez, vi o meu marido entrar. Deitou-me as mãos ao pescoço e tentou matar-me, e senti a minha vida a escapar-se de mim. Nesse momento, comecei a resistir, a esbracejar, a espernear, a lutar. Depois de uma luta incrível, atirei o meu marido ao chão e ele fugiu porta fora. Após esta experiência, passei a verificar, antes de ir para a cama, se deixava a porta do meu quarto bem fechada. Era como se eu tivesse estado a lutar com o meu pai, como se essa luta tivesse realmente acontecido.” E. duvida hoje que tivesse acontecido de fa c to algum a coisa d a quele género. E la experim entara essas situações de um a m aneira m uito vívida, m as num a espécie d e sonho. E conclui:
“Penso que essa experiência será idêntica à daquelas pessoas que estive ram num campo de concentração.” 248
A lucinações autoscópicas D iz E.:
“Às vezes, quando ando em volta da minha casa, acontece-me dar comigo mesma em qualquer lado. Quando abro a porta, vejo-me a mim em pé, atrás dela. Quando essas coisas acontecem, fico muito aflita.” D iz G.:
“Enquanto o meu marido teve um affaire, tive experiências muito estra nhas. Via-me a mim própria sentar-me realmente junto de mim. A que se sentava junto de mim queria suicidar-se, mas eu não.” D iz L.:
“Nos sonhos e nos lampejos mnésicos que tinha, encontrava-me comigo própria criança. Eu pegava em mim-criança pela mão e dizia-lhe ‘Vou tomar conta de ti’." A lucinações au ditivas rela cion ad as de algum m odo com o abuso sexual durante a infância V in te e sete das m u lh eres da n o ssa am ostra referiram qu e o u v ia m v o z e s, e 8 d elas d escreveram a lu cin a çõ es au d itivas relacion ad as, p e lo m en os em parte, co m o ab u so sexu al sofrid o na infân cia. Q uatro outras m ulheres d isseram q u e n ão se lem bravam directam en te d e ssa exp eriên cia, m as o u v ia m v o z e s q u e lh es davam in form ações a resp eito da infância.
H. fo i abusada sexua lm ente até aos 11 anos de idade p elo pa i, que a violou violentam ente e a am eaçou de m orte. E la disse-nos que já só tinha um a vaga record açã o do que lhe acontecera. A m aior p a rte dessas recordações referem -se a um a criança de tenra idade, no p a p el de terceira pesso a. E xplicou -n os que na sua infância costum ava fa la r consigo m esm a p a ra a fa sta r essas m em órias horríveis. Q uando H. tem lam pejos m n ésicos desses, a rapariguinha diz: “S ab es o q u e a co n teceu .”
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“Ela [a rapariguinha] conta-me o que aconteceu e então eu digo-lhe: ‘Isso que tu me contas é medonho’.” A voz da rap arig uinha tam bém fa la de outras coisas; às vezes H. tam bém tem p erío d o s em que ouve m uitas vozes, entre as quais id en tifica a voz da m ãe. A lu c in a ç õ e s: h is té r ic a s ou d isso c ia tiv a s versus p s ic ó tic a s ou esquizofrénicas N o seio da P siq uiatria sem pre h o u v e d iversas abord agens ao pro b lem a do esta b e lec im en to de um a relação entre d eterm inados sin to m as e determ inados d ia g n ó stico s, tendo sid o d efin id o s v ários e d ife rentes critérios para d istin gu ir as a lu cin a çõ es d isso cia tiv a s o u h isté ricas das qu e se a sso cia m a outros d ia g n ó stico s p siq u iátricos. G rande parte das ex p eriên cia s referid as n o n o sso estu d o (isto é , 23 das 27 m ulh eres co m a lu cin a çõ es aud itivas) o b ed ecem aos critérios d e Kurt S ch n eid er para as a lu cin a çõ es auditivas. E m 1959, S ch n eid er form u lou um con ju n to d e 11 critérios d e d istin çã o entre a lu cin a çõ es audi tivas sim p les e co m p le x a s, critérios e sse s q u e in clu íam categorias co m o v o z e s im p erativas, v o z e s com en tadoras e e c o d o p en sam en to (ou vir o próprio p en sa m en to em v o z alta). P osteriorm en te, M ellor red efin iu e restrin giu e s s e s critérios. D ezo ito das 27 m u lh eres d isse ram q u e as suas a lu cin a çõ es au d itivas se lo ca liza v a m dentro da ca b e ça, enquanto 4 d issera m qu e essa s v o z e s vin ham de fora e 5 d isseram qu e tanto vin ham d e fora co m o d e dentro da cab eça. A s q u e referiram essa s alu cin a çõ es n ão pareciam in flu en ciad as por qualquer factor subcultural; n enh um a d ela s era m em bro d e qualquer seita e m u ito p ou cas m an ifestavam alg u m in teresse por fen ó m en o s paranorm ais. N o s 8 ca so s em qu e as m u lh eres d ia log a v a m co m as suas v o z e s, e s s e d iá lo g o tinha sid o estim u la d o p e lo terapeuta. S ó um p eq u en o nú m ero das 27 m ulh eres co m a lu cin a çõ es auditivas referiu que as suas a lu cin a çõ es tinham ocorrido na seq u ên cia im ediata d e a co n tecim en to s trágicos sú b itos e in esp erad os. A m aior parte d essa s 27 m ulh eres d isse que ou v ia v o z e s há m u ito s anos. 250
C orrelação entre abusos na infância e alucinaçõ es au ditivas O s traum as d e in fân cia p o d em relacion ar-se co m a lu cin a çõ es au ditivas na id ad e adulta através d e d iv erso s tip os d e p ro cesso s p sic o ló g ico s. Surgiram várias teorias n esta área, sen d o sem d ú vid a a m ais co n h ecid a a T eoria da S ed u çã o, proposta por F reud n o s seu s p rim eiros trabalhos. C on fron tám os algu m as d essa s teorias co m o s resu ltad os da n o ssa in v estig a çã o . R esu m im o s d e seg u id a algu n s d o s p rin cip ais d ad os ob tid os n o n o sso estu d o. Para n ão com p licar a ap resen tação d os re su ltad os, criám os um sistem a d e P on tu ação C u m u lativa d e T raum as, através d o qual cad a um a das m u lh eres fo i p on tu ad a em fu n ção de: exp eriên cia s d e ab u so sexu al na infân cia; agressão físic a por parte do autor d o abuso; e ab u sos sofrid os por outros m em b ros da fam ília (h ab itualm ente a m ãe). E stes vários tipos d e traum as foram d ep o is pon tuad os para cad a um a d e três fa ses etárias: - 1 .a in fâ n cia (0 -6 anos); - 2 . a in fân cia (7 -1 2 anos); - a d o le s c ê n c ia (13 ou m ais an os). A s P o n tu a ç õ e s C u m u la tiv a s d e T rau m as fo ra m seg u id a m en te correlacion ad as co m a p resen ça ou au sên cia d e a lu cin a çõ es au d itivas. O s resu ltad os en con trad os p o d em resu m ir-se d o seg u in te m odo: E m relação às m u lh eres q u e n ão ap resen tavam a lu cin a çõ es au d i tivas, as m u lh eres co m alu cin a çõ es auditivas: - tinham so frid o nas prim eiras fa ses da vid a traum as m ais n u m e rosos e m ais graves; - tinham so frid o antes d os 7 an os d e id ad e m ais a g ressõ es física s e sex u a is por parte d o pai; - tinham sofrid o co m m ais freq u ên cia, e d esd e a m ais tenra idade, de d e sc u id o em o cio n a l por parte da m ãe. É claro q u e, ao interpretarm os o s relatos retrosp ectiv os d e situa ç õ e s de ab u so em id ad es in feriores aos 7 an os, terem os d e ser m u ito cau telosos: a ú n ica co n clu sã o q u e d e les se p od e extrair c o m seguran ça 251
é q u e as m ulheres que o s referem não co n seg u em lem brar-se de nenhum p eríod o da sua v id a em que não tenham sid o m altratadas, ou p elo m en o s n e g lig en cia d a s, p elo seu pai ou p e la sua m ãe. U m a criança p eq u en a tem de aprender a d istin gu ir a realidade da im ag in a çã o . S egu n d o Su m m it, há in d íc io s seg u ro s d e que o in cesto parental se a sso cia h ab itualm ente a um a d istorção da realidade por parte d o s pais; se o s pais da criança não sã o ca p a zes de esta b elecer a d istin çã o entre realidade e im agin ação, en tão a criança terá sérias d ificu ld a d es em aprender a d istin g u i-la s. A lém d isso , é claro q u e a crian ça abusada por um ou por am bos o s pais d e sd e m uito ced o pod e ter a lgu m a van tagem em não aprender a d iferençar a realidade da im agin ação: um a a valiação m uito correcta d essa s d iferen ças poderia ter co n seq u ên cia s d em asiad o devastadoras para a criança. U m ú ltim o e m uito im portante achado fo i a co n statação de que a rep ressão das e m o ç õ e s é ta lv ez o factor q u e m ais contribui para a in cid ên cia de a lu cin a çõ es aud itivas. Isso su g ere q u e o não recon h e cim en to d os sen tim en to s co m o perten ça d o E u torna m ais p rovável qu e as e m o çõ es, o s pen sam en tos e im agen s asso cia d a s sejam atribuídos a fo n tes eg o -d istó n ica s. E ste p rocesso d e atribu ição p arece particular m en te im portante na relação entre a lu cin a çõ es au d itivas e traum as de in fâ n cia cu m u lativos.
Modelos cognitivos Richard Bentall N a s ú ltim as d écad as tem -se dado um p rogresso co n sid erá vel na co m p reen sã o da m en te hum ana. O ram o da P sic o lo g ia m ais resp on sá vel por e s s e p rogresso é, talvez, a P s ic o lo g ia C o g n itiv a , que trata d o s p r o c esso s através d os quais o in d ivíd u o adquire e ap lica o s seus co n h ecim en to s a resp eito do m undo (cognição = conhecim ento). O s m o d elo s teóricos d e se n v o lv id o s p e lo s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s acerca d o s p ro cesso s m en tais têm sid o, por outro lad o, u tiliza d o s co m êx ito na com p reen sã o d os fen ó m en o s m en tais m en o s vu lgares. N esta S e c çã o , d arem os um b reve apon tam ento d aq u ilo qu e se en ten d e por 252
abordagem co g n itiv a em P sic o lo g ia e ten tarem os m ostrar d e qu e form a ela co n d u ziu ao s p rogressos v erifica d o s na co m p reen são das ex p eriên cia s alu cinatórias, n om ead am en te a escu ta d e v o zes.
P sicologia C ognitiva A P sic o lo g ia C o g n itiv a o cu p a -se da form a co m o a in form ação é percebida, arm azenada e u tilizad a por org a n ism o s in telig en tes (sob re tudo os seres h u m an os, em b ora o s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s v o lte m por v e z e s a su a a ten ção tam b ém para outras e sp é c ie s e m esm o para m áquinas in telig en tes). H istoricam en te, este ram o do saber d e v e m uito à ciên cia d os com p u tad ores, na m ed id a em qu e o s com p u tad ores parecem forn ecer um bom m o d elo da form a co m o a in teligên cia poderá actuar. A té qu e p on to a m en te é ex a cta m en te an áloga ao com p u tad or é m atéria qu e p erm an ece con troversa. P or um lad o, a m en te, tal co m o o com putador, p arece o b ed ecer a d eterm in ad as regras quando p rocessa a inform ação sob re o m undo. P or outro lad o, a arquitectura d e c o n s trução da m en te p arece diferir rad icalm en te da d os com p u tad ores de m esa m éd io s. P rossegu in d o na a n a lo gia , tem -se d ito q u e, se preten d em o s com p reen d er a m en te hu m ana, o prob lem a se p o d e abordar a três n ív eis. E m prim eiro lugar, p recisa m o s d e com p reen d er as fu n çõ es da m en te (o qu e é qu e ela é ca p az d e fazer e o qu e é q u e e la não é cap az de fazer). E m seg u n d o lugar, é p reciso descob rir as regras ou a lgoritm os d e q u e a m en te se serv e para ex ercer essa s fu n çõ es (regras ou algoritm os an á lo go s aos program as d os com p u tad ores). F in alm en te, a m aquinaria u tilizad a p e lo céreb ro para execu tar ou im plem en tar essa s regras é su scep tív el d e estu d o e in v estig a çã o . O s p rim eiros d ois n ív e is perten cem ao foro da P sic o lo g ia C o g n itiv a , en qu an to o terceiro p erten ce à N eu ro fisio lo g ia . T rad icion alm en te, os p sic ó lo g o s co g n itiv ista s têm estu d ad o pro c e sso s co g n itiv o s “frio s”, co m o a p ercep çã o e a m em ória. P orém , m ais recen tem en te, com eçaram tam b ém a in teressar-se por p ro cesso s co g n itiv o s “q u en tes”, isto é, in flu en cia d o s p elas em o ç õ e s e p e lo papel 253
qu e o in d ivíd u o se atribui a si próprio. É sem surpresa que a P s ic o lo g ia C o g n itiv a tem v id o a ser u tilizad a na in v estig a çã o de um a série d e p rob lem as p siq u iátricos. M u ito em b ora grande parte d e sse trabalho se ten ha centrado na a n sied a d e e n a d ep ressão, a in v estig ação m ais recen te tem vo lta d o a sua aten ção para ex p eriên cia s p sicó tica s, co m o as a lu cin a çõ es e o s d elírio s. A o rea liza r e s s e tip o d e in v e s tig a ç ã o , a tarefa d o p s ic ó lo g o co g n itiv ista será a de averigu ar se o p rocessa m en to da inform ação p elas p esso a s que têm problem as psiquiátricos difere ou não das p esso a s q u e o s n ão têm . E x p eriên cia s co m o as a lu cin a çõ es prestam -se por si m esm as à abordagem c o g n itiv a , dado q u e p arecem indicar que a m en te está a p rocessar de form a anorm al a inform ação a resp eito do m undo. P o d er-se-á dizer qu e, n o ca so das a lu cin a çõ es, a lg o se p assa co m a m en te do in d iv íd u o q u e fa z co m que e le acredite na p resen ça de algu m a c o isa à sua v olta, qu and o, d e facto, nada ex iste que corresponda à ex p eriên cia perceb id a.
A lg uns fa c to s sobre alucinaçõ es Q ualquer d escrição p sic o ló g ic a a resp eito de alu cin a çõ es deverá ter em lin h a d e con ta um certo núm ero de factos: - C om o dem on stra o trabalho d e M arius R o m m e e Sandra E sch er, as a lu cin a çõ es são exp erim en tad as não só por p e sso a s rotuladas de d oen tes m en tais, m as tam bém por um nú m ero surpreendente de p e s soas q u e lev am um a vid a relativam en te fe liz e que não se con sid eram a si m esm a s d oen tes m en tais sob a sp ecto nenhum . - A s a lu cin a çõ es são m u ito m ais com u n s num as so cied a d es do que noutras; por ex em p lo , entre o s n ativos do H aw ai é relativam en te vulgar d izer-se qu e se v iu um an tep assad o. E ste dado su gere que as crenças e as exp ecta tiva s das p e sso a s p o d em in flu en ciar o fa cto de ela s terem ou n ão exp eriên cia s alu cin atórias. E cu rio so q u e haja tam bém d iferen ças culturais entre o s tip os d e a lu cin a çõ es referidas p elo s p acien tes p siq u iátricos. P or e x e m p lo , as a lu cin a çõ es v isu a is são m uito m ais freq u en tes em p acien tes d e p a íses em vias d e d esen v o lv im en to do que n os p aíses o cid en ta is o u d e se n v o lv id o s. 254
- D e algu m m o d o relacion ad o co m o q u e acab ám os d e d izer, está o facto de ser p o ssív e l, por m eio da su g estã o , p rovocar a lu cin a çõ es em algum as p e sso a s q u e em tudo o resto são n orm ais. P or ex em p lo , se d isserm os a um grup o d e p e sso a s dentro da m éd ia q u e fe c h e m os o lh o s e o içam o d isc o d e um a can ção m u ito pop ular (d e N atal, por ex em p lo ), cerca d e 5% d essa s p e sso a s dirão q u e ou viram o d isco , ainda que de fa cto e le n ão tenha sid o p o sto a tocar. E ste e x em p lo tam bém ind ica q u e as cren ças e as exp ecta tiva s d esem p en h a m um papel im portante n as ex p eriên cia s alu cinatórias. - A s a lu cin a çõ es a u d itivas ten d em a ocorrer co m m ais freq u ên cia em determ inado tip o d e circu n stân cias, particularm ente em esta d o s de privação sen sorial (o u d e silê n c io q u ase total) ou quando e x iste m uita estim u lação d esord en ad a (ruído de m áqu in as, por e x e m p lo ). - U m facto q u e p od erá surpreender algu n s leitores é q u e as a lu ci n açõ es são, m u itas v e z e s , exp erim en tad as durante p eríod os d e stress. P esso a s que noutras o c a siõ e s n ão o u v em v o z e s pod erão o u v i-la s em m om en tos de ex a u stã o ou ap ós stresses g raves, co m o a m orte d e um en te querido. O s p a cien tes p siq u iátricos referem , m uitas v e z e s , qu e as suas v o zes se acen tu am quando estã o sob stress ou q u an d o a lg o de m al lhes a co n tece. C on cord an d o co m esta o b servação, te m -se v isto que o despertar das v o z e s n o s p acien tes p siq u iátricos se fa z an teced er de determ inadas resp osta s fisio ló g ic a s (alterações da con d u tân cia da p ele, por e x e m p lo ), q u e ocorrem h ab itu alm en te em resp osta a estím u lo s stressantes. - P o r fim , um fa cto m en os ev id en te d iz resp eito ao p ap el d os m ú scu los da fala durante as a lu cin a çõ es aud itivas. Q u and o um a p es soa o u v e v o z e s, o s m ú scu lo s da fala to m a m -se m ais a ctiv o s, o q u e se com prova p elo au m en to da activid ad e eléctrica. E ssas su b v o ca liza çõ es, co m o o s p sic ó lo g o s lh es ch am am (são m o v im en to s d os m ú scu lo s da fala d em asiad o p eq u en o s para se verem e q u e n ão p rov o ca m nenh um so m ), aco n tecem durante o p en sam en to verbal norm al e reflectem o facto de que p en sar em palavras im p lica um a e sp é c ie d e d iscu rso interior. (O s leitores sab em b em q u e e ste d iscu rso n em sem p re é totalm ente in tem a liza d o , e é por isso q u e, por v e z e s, em esp ecia l quando estam os só s, n o s p o m o s a falar so zin h o s em v o z alta.) 255
A psico lo g ia d a s alucinações V árias teorias têm sid o prop ostas para ex p lica r esta s o b serv a çõ es, em b ora tod as e la s apresentem diversas sem elh an ças. E m resu m o, todas su gerem q u e as a lu cin a çõ es surgem quando d eterm in ad os a co n teci m en tos da v id a m ental são erradam ente tom ad os por acon tecim en to s do m u n d o real. D e acordo co m esta m aneira d e ver, a p e sso a que ou v e v o z e s está a pensar em palavras m as tom a erradam ente e s s e s p en sa m en tos p or a lg o que está a ser dito por outra p e sso a . D e m uitas m aneiras, esta v isã o d o p rob lem a é m u ito sem elh a n te ao que Cari Jung d isse sob re as a lu cin a çõ es, co m o se refere noutro p on to d este livro. U m b om nú m ero d e p sic ó lo g o s v em d e se n v o lv e n d o in v estig a çõ es no sen tid o d e com provar esta teoria. P or e x em p lo , nu m estu d o levad o a cab o por m im e por c o le g a s m eu s da U n iv ersid a d e de L iverp ool, p ed iu -se a p a cien tes p siq u iátricos, algu ns q u e o u v ia m v o z e s e outros que n ão, q u e escu ta ssem 100 alarm es d e 5 seg u n d o s d e ruído puro (um a e sp é c ie d e ch iad eira, co m o a d e um rádio n ão sin ton izad o). H avia um a v o z d e fu nd o em 5 0 d e sses alarm es, e p e d iu -se aos v o luntários d e sse estu d o que d issesse m , após o toqu e de cada alarm e, qual o grau d e certeza (n um a esca la de 0 a 5) q u e tinham d e sse alarm e conter um a v o z de fundo (0= não havia voz nenhum a; 3= não sei; 5= tenho a certeza de que havia um a voz)- S u b m etera m -se as resp ostas d os volu n tários a um a an á lise m atem ática bastante co m p lex a , tendo sid o p o ssív e l extrair d o is parâm etros: um d e les in d ica a sen sib ilid a d e, ou seja, a cap acid ad e aud itiva dos volu ntários; o outro ind ica a ten d ên cia geral para ju lgar que a v o z estava, d e fa cto , presente. O s resu ltad os apontam para a aud ição d os p acien tes c o m a lu cin a çõ es ser tão se n sív e l c o m o a d os q u e não alu cin avam , m as o s p acien tes que tinham a lu cin a çõ es tinham tam bém m ais ten d ên cia para, em co n d i ç õ e s d e in certeza, acreditar qu e a v o z esta v a p resen te. E stes dados su gerem q u e as p e sso a s que o u v em v o z e s, perante a lg o que tanto p od e ser um p en sam en to co m o a lg o q u e ela s o u viram , ten dem a co n v en cer-se d e que o ouviram realm ente. E cu rio so qu e se tenha en contrad o resu ltad os m u ito sem elh an tes na com p aração entre não-p acien tes q u e têm alu cin a çõ es e n ã o-p acien tes q u e n ão alucinam . 256
E sta teoria ex p lica b o a parte das o b serv a çõ es q u e têm sid o feitas sobre ex p eriên cia s alu cinatórias. Por e x e m p lo , n ão surpreende q u e as a lu cin a çõ es se acom p an h em d e a ctivid ad e eléctrica d os m ú scu lo s da fala, já q u e e s s e tipo d e a ctivid ad e co stu m a acom pan har o p en sam en to verbal. N em surpreende qu e as a lu cin a çõ es ocorram m ais em co n d i ç õ e s d e silê n c io ou d e estim u la çã o desord en ad a, já q u e é p recisam en te n essa s co n d iç õ e s qu e m ais d ifíc il se to m a apontar as d iferen ças entre a v o z interior e o s estím u lo s exteriores. O q u e a teoria d eix a sem resp osta é a q u estã o d e se saber por que razão algu m as p e sso a s têm ten d ên cia a tom ar o s seu s p en sam en tos interiores por estím u lo s exteriores. C om certeza q u e o cérebro terá um sistem a que lhe perm ita d iferenciar o s p en sa m en to s gerad os internam en te d aq u ilo qu e ocorre no m un do exterior. P orém , este sistem a nem sem pre é exacto; o s cien tistas, por ex em p lo , co n fu n d em , por v e z e s, as ideias q u e ouviram d e outros co m as id eia s q u e e le s próprios p en sa ram , e n os so n h os tod os n ó s co n fu n d im os im ag in a çã o co m realidade. C hris Frith su geriu qu e o sistem a resp o n sá v el p ela d istin çã o entre a co n tecim en to s interiores e a co n tecim en to s do m u n d o real - sistem a a q u e e le ch am a “o m on itor” - se lo c a liza a n atom icam en te num a parte d o cérebro co n h ecid a por h ip ocam p o. C on tu d o, há p o u co s elem en to s de prova directa d e q u e essa parte do céreb ro fu n cio n e m al nas p e s so as qu e o u v em v o z e s. O utra p o ssib ilid a d e é q u e as p e sso a s qu e o u v em v o z e s, em com p aração co m as q u e as n ão o u v em , u sem regras d iferen tes para d istin gu ir acon tecim en to s in teriores d e a co n tecim en tos ex teriores. (P or outras palavras, e m an ten d o a an alogia co m os com p u tad ores, as alu cin a çõ es d e v e m -se m ais ao softw are d o qu e ao hardw are.) O facto d e as alu cin a çõ es serem in flu en cia d a s p ela su g es tão e p e lo sistem a cultural d e cren ças dá a lg u m a co n sistên cia a esta ú ltim a h ip ótese. N e ste co n tex to , é interessan te notar qu e as v o z e s d esem p en h am , m uitas v e z e s , um pap el particular na vid a d e q u em as o u v e, P or v e z e s, rep resen tam um a força m a léfica (ta lv ez a parte m á d o E u, q u e é d ifícil d e aceitar), m as p o d em tam bém ser um a com p a n h ia ou um a fo n te de co n forto . S eja co m o for, q u ase sem p re é verd ad e qu e as v o z e s se apoiam num co m p lex o con ju n to d e cren ças e exp ecta tiva s. 257
D oença e tratam ento em P sicologia C ognitiva E sp ero q u e o q u e atrás fico u d ito tenha dado um a id eia de co m o os m ais recen tes p rogressos em P s ic o lo g ia contribuíram para um a m elh or com p reen sã o daq uilo q u e a co n te ce na m en te de quem ou v e um a v o z ou tem um a v isã o . D o qu e atrás fo i dito p o d er-se-ia pensar qu e a ab ord agem c o g n itiv a estaria d e acordo co m a abordagem p si quiátrica tradicional, que encara as a lu cin a çõ es co m o sin ais seguros d e u m a d o e n ç a su b ja c e n te . É c la r o q u e há m u ito s p s ic ó lo g o s co g n itiv ista s, que estu d am v iv ê n c ia s p o u co vu lgares, co m o é o ca so das a lu cin a çõ es, que p en sam de acord o co m o quadro de referências d o m o d elo m éd ico e q u e en caram o seu trabalho co m o um m eio de contribuir para o progresso geral do co n h ecim en to psiqu iátrico. M as eu n ão partilho d essa op in ião. Q u er-m e parecer q u e aq u ilo q u e d e cid e o que é d o en ça e sanidade m en tal é essen cia lm en te um factor d e natureza m oral. P o d em o s im a ginar, por ex em p lo , um a so cied a d e m oralm ente triste, na qual a fe li cid ad e seja encarada co m o um a form a de insanidad e m ental. U m p sic ó lo g o co g n itiv ista q u e trab alh asse em sem elh an te so cied a d e e que p rocurasse com preend er o que se p a ssa va na m en te de algu ém que fo sse fe liz haveria d e segu ir ex a cta m en te a abord agem e o s m étod os exp erim en tais q u e o s p sic ó lo g o s co g n itiv ista s usam na n o ssa s o c ie dade quando estu dam as p e sso a s que o u v em v o zes. Por ex em p lo , se algu ém q u ise sse com p reen d er a felicid a d e teria de pesq uisar as características d o tratam ento da in form ação resp on sáv eis p ela v isã o optim ista e irrealista d o m undo que as p e sso a s fe liz e s teriam e que não se encontrariam nas p esso a s in felizes. A tarefa da P sic o lo g ia C o g n itiv a é in vestigar o s p r o c esso s m en tais a sso cia d o s a tip os particulares d e ex p eriên cia s e de com portam en tos. A outros caberá determ inar se e ssa s exp eriên cia s e e s s e s com porta m en tos d ev em ser con sid erad os p a to ló g ico s ou não. A m inha e x p e riên cia co m p e sso a s que o u v em v o z e s d iz-m e que q u ase sem pre se trata d e gen te m uito in telig en te, se n sív e l, criativa e q u e anda à procura d e um sen tid o para um m un do q u e m uitas v e z e s é co n fu so e não raram ente am eaçador. N este p on to e ssa s p e sso a s têm m uito em c o 258
m um co m o s p sic ó lo g o s c o g n itiv ista s q u e p en sam co m o eu e qu e procuram tom ar m ais c o m p r een sív eis as exp eriên cias alu cin atórias. U m a das van tagen s da P sic o lo g ia C o g n itiv a é levar-n os a prop or teorias q u e se p o ssa m testar. P or e x em p lo , o estu d o q u e atrás d escrev i fornecia algu ns elem en to s d e p rova em a p o io da teoria seg u n d o a qual as v o z e s seriam p en sa m en to s cu ja p rov en iên cia n ão é correctam en te atribuída. U m a outra va n ta g em da in v estig a çã o co g n itiv a sob re as a lu cin ações é pod er con d u zir a n o v o s m éto d os d e ajuda aos ou v id o res de v o z e s. A ideia d e q u e a q u eles qu e têm a lu cin a çõ es con fu n d em os seus próprios p en sa m en to s co m a lg o qu e a co n tece n o m un do real levanta a qu estão d e sab er se n ão será p o ssív e l ajudar o s qu e alu cin am a reap ossar-se das partes d e si m esm o s qu e e le s interpretam co m o alh eias. N um a das S e c ç õ e s do C ap ítu lo 10, d e sc rev e-se um a estratégia para atingir este o b je ctiv o , ch am ad a “C on cen tração nas V o z e s ”.
Psiquiatria Social M a riu s Romme D esd e que apareceu o M o v im en to d e S aú d e M en tal, e x iste um a e sc o la d e p en sam en to p siq u iátrico co n h ecid a por P siquiatria S o cia l. A P siquiatria S o cia l estu d a a relação entre as c o n d içõ es da S o cied a d e e o s prob lem as de S aú d e M en tal. Para a P siq uiatria S ocial o s p en sa m en tos, as e m o ç õ e s, as p e rcep çõ es e o com p ortam en to d os in d ivíd u os estão relacion ad os c o m as c o n d iç õ e s em qu e as p e sso a s v iv e m e fu n cion am . A P siquiatria B io ló g ic a e a P siq uiatria P sico d in â m ica abordam o s problem as de Saú d e M en tal seg u n d o p ersp ectivas diferentes: a P siq u ia tria B io ló g ic a o cu p a -se das rela çõ es entre o com p ortam en to hu m an o e a fisio lo g ia do cérebro; a P s ic o lo g ia P sico d in â m ica estu d a as rela ç õ e s entre os p rob lem as d e S aú d e M en tal e a ten tativa d e lidar co m as e m o çõ es. A s co n d iç õ e s de v id a q u e co n d icio n a m a S aú d e M ental são m ú l tiplas e variadas, d esd e o am b ien te d e trabalho à lib erd ad e (ou co m o 259
se queira d izer) de exp rim ir a iden tidad e sexual - e qualquer um a d elas p od e d esem p en h ar um pap el instrum ental n o d esen cad ear da escu ta d e v o z e s. A s in flu ên cia s externas que alteram o eq u ilíb rio entre o in d ivíd u o e o m eio en v o lv en te p od em dar origem a sen tim en to s de extrem a im p o tên cia e p o d em , m uitas v e z e s, levar a prob lem as p sic o ló g ic o s. N esta S e c ç ã o irem os exam in ar algu n s e x e m p lo s im portantes d essa s in flu ên cia s externas: -
S itu a çõ es in to lerá v eis ou geradoras de insatisfação; T raum a recente; A sp ira çõ es e m co n flito ; A m eaças; T raum as de infância; R ep ressão em o cio n a l na infân cia.
Situações in to leráveis ou geradoras de insatisfação Q u and o as v o z e s sã o desen cad ead as por circu n stân cias intolerá v e is, ten d em a fazer com en tários que traduzem a m aneira co m o o ou vid or d e v o z e s é tratado p elas outras p esso a s. D irecta ou indirectam en te, as v o z e s relatam - m uitas v e z e s sob a form a d e m etáforas aq u ilo qu e se p a ssa nu m a relação.
Conheci uma senhora de 67 anos que ouvia uma voz que ralhava com ela, tal e qual como os adultos fazem às crianças: “Cuidado, vê lá se cais, abotoa o casaco”, etc. Quando entrou no meu consultório vinha acompanhada por duas filhas e notei que uma delas lhe segurava no braço porque a senhora não era capaz de caminhar sem ajuda. A outra filha, carinhosamente, aju dava-a a sentar-se numa cadeira e começou a desapertar-lhe o casaco. Entretanto, era notório que a senhora não se sentia nada bem naquela situação. As filhas começaram a falar-me dos problemas da mãe, como se ela não fosse capaz de os contar por si mesma, mas pouco depois consegui que a senhora me contasse a sua própria história. Disse-me que tinha começado a ouvir vozes desde que o marido tinha deixado de trabalhar: ele usurpara-lhe todas as funções dentro de casa e ela,
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a pouco e pouco, foi sendo arrastada para o papel de criança. Quando sugeri que podia estar ali a chave do significado das vozes, as três mulheres ficaram estupefactas. No entanto, quando aprofundámos um pouco mais essa hipó tese, elas começaram a admitir a existência de uma relação entre o que as vozes diziam e a maneira como a família tratava aquela mãe. Neste exemplo, a relação entre as vozes e o mundo exterior é muito directa, na medida em que repetem exactamente aquilo que as pessoas do meio circundante dizem à pessoa que ouve a voz. Essa relação pode ser bastante menos evidente quando as vozes exprimem metaforicamente as diversas situações por que a pessoa vai passando. Por exemplo, conhecemos um jovem de 24 anos que ouvia vozes que lhe estabeleciam todo o género de regras na sua vida. Ele chamava às suas vozes “forças fascistas”. Na realidade, as ordens que elas lhe davam eram o reflexo da maneira como ele era tratado no hospital e em casa. Quando passou a viver sozinho tinha dificuldade em tomar decisões autónomas e começou a servir-se das vozes para pôr uma ordem na sua vida. Infelizmente, ao fazer isso, tornou-se dependente delas e, a pouco e pouco, as vozes foram destruindo a sua autonomia e tornaram-se uma obsessão permanente. A s v o z e s p o d e m esta r ta m b ém a s so c ia d a s a a c o n te c im e n to s stressantes, c o m o o d iv ó rcio ou a perda d o em p rego. E m geral, essa s v o zes exp rim em a crítica d e a co n tecim en to s stressan tes recen tes e de alterações às co n d iç õ e s d e vid a d e q u em as o u v e - qu e p o d e acabar por se sentir tão im p oten te perante as v o z e s co m o perante os a co n tecim en to s stressan tes extern os. N estes c a so s, a terapia cen trar-se-á, d esd e in ício , nas form as d e alterar o s elem en to s cau sad ores de stress na situ ação con creta.
Traum a recente A form a m ais com u m d e traum a recen te grave é a m orte d e um en te qu erido. N a seq u ên cia directa d essa perda, m u itas p e sso a s c o n tinuam a ou vir a v o z da p e sso a falecid a. T al c o m o se d escrev e n os C apítu los 6 e 8, a escu ta d e v o z e s perdura freq u en tem en te durante m u itos anos e m ais ainda n os ca so s m ais d o lo ro so s, co m o por e x e m p lo, quando um filh o ou o com p an h eiro m orre d e su icíd io.
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T a lv e z m en os b em co n h ecid o seja o fa cto d e as v o z e s p od erem ser d esen ca d ea d a s por exp eriên cia s traum áticas m en o s im portantes, co m o a perda d o em p rego.
Alexia, de 26 anos de idade, era uma empregada de escritório muito cumpridora que trabalhava há vários anos na mesma empresa e com o mesmo patrão. Nos últimos tempos começara a reparar que as coisas na empresa não estavam a correr muito bem e dedicou toda a sua energia a ajudar a empresa a recuperar os seus tempos áureos. Eis senão quando dá consigo vítima de mexericos maledicentes de colegas, mexericos esses que haveriam de a conduzir à demissão do lugar, ficando a remoer sentimentos de injustiça e de impotência. Nos meses seguintes à sua exoneração, tinha a impressão de que as pessoas falavam dela quando ia ao café. Ficou cada vez mais preocupada com isso e passou a ouvir vozes regularmente. Essas vozes diziam mentiras maldosas a seu respeito e, pouco a pouco, começaram a manifestar-se tam bém noutro tipo de situações, como seja em casa e em reuniões de família. Â.v vezes tornavam-se absolutamente insuportáveis, mas Alexia só muito mais tarde, passado mais de um ano de tratamento psiquiátrico voluntário, com preendeu a relação que havia entre a sua situação e a maneira como reagia a ela. O problema manteve-se durante dois anos, até que ganhou coragem para concorrer a um novo emprego. Conseguiu o emprego que pretendia e em resultado desta experiência positiva as vozes dissiparam-se progressi vamente. E m c a so s co m o este, o tratam ento c o n siste não num a declaração d e guerra às v o z e s m as, antes, no d e se n v o lv im en to d e um a p erson a lid a d e m a is in d ep en d e n te, ca p a z d e e s ta b e le c e r r e la ç õ e s e q u ili bradas.
A spira ções em conflito D ad a a natureza co m p lex a do m undo em q u e v iv e m o s, não é fácil para n in gu ém satisfazer o s seus d ese jo s. Q uando as asp irações dum a d eterm in ad a p e sso a não são cum pridas, p o d em surgir v o z e s, que ser v em para ajudar qu em as o u v e a encontrar o seu cam in h o. N o C ap ítu lo 8 d este livro, en con tram os a história d e um a m ulher negra q u e tinha fica d o órfã e o u v ia a v o z d e H ailé S e la ssié a co n se 262
lhand o-a sobre a m aneira d e lidar c o m o racism o d e q u e era vítim a. O Im perador m an d ou -a escrev er a su a própria h istória, ou seja, con d u ziu -a n o sen tid o d e ela ser ela m esm a. A um n ív el m ais sim p les, evid en tem en te, as v o z e s p od em ter tam b ém um pap el d e satisfação de um a n ecessid ad e: por e x e m p lo , p o d em p rop orcionar com p an h ia a algu ém que está só. U m a das n o ssa s p acien tes en con trava-se co m as suas v o z e s num bar e tom ava ca fé co m ela s. U m a outra, q u e v iv ia sozin h a, procurava o co n selh o d e um a m ig o ín tim o in flu en te, quando precisava d e tom ar d e cisõ es. D ep arám o-n os ainda co m situ a çõ es m ais co m p lex a s e m ais d ifíceis em q u e as v o z e s ajudavam as p e sso a s a atingir d eterm inado ideal ou a reprim ir im p u lso s ou id en tid a d es se x u a is in d eseja d a s, c o m o o ex ib icio n ism o ou a h o m o ssex u a lid a d e.
A m eaças P erante situ a çõ es d e risco d e vid a , as v o z e s p od em ser parte de um a estratégia d e so b rev iv ên cia . P or ex em p lo , a A m n istia Interna cion al recon h ece a tortura co m o um d esen cad ean te p o ssív e l da escu ta de v o z e s. A p sic o se p rovocad a por um d ilem a in so lú v el p od e dar o m esm o resultado; o livro d e W illia m Styron , A E scolha de Sofia, dá-n os um ex em p lo parad igm ático d e ssa situação: um o ficia l alem ão obriga S o fia a esco lh er qual d os filh o s p erm an eceria v iv o e qual d eles iria para a câm ara d e gás. E ste é um e x em p lo m u ito ex trem o , m as n ós d ep arám o-n os com d ilem as sem elhan tes em bora sob form as m en os dram áticas. N u m d esses casos, o p a i dum a jo vem estava a m o rrer de cancro e p ed iu à filh a
que lhe desse um a dose m o rta l de com prim idos pa ra p ô r fim ao sofrim ento. A m ãe m ostrou-se extrem am ente ofendida e p ro ib iu a filh a de satisfa zer o desejo pa tern o , dizendo que isso seria um a ssa s sínio. P erante os fa cto s, a quem é que a filh a deveria obedecer: ao p a i ou à m ãe? N um outro caso ainda, um a m oça subm etia-se às investidas sexuais do p a i p a ra que este não cum prisse, caso ela não colaborasse, a am eaça de fa z e r à irm ã m ais no va o que lhe fa zia a ela. 263
E m tod os o s ca so s atrás d escritos um dos prob lem as prin cipais é a p esso a q u e é apanhada n o d ilem a sen tir-se p esso a lm en te resp on sável p ela s co n seq u ên cia s da e sc o lh a d e qualquer das alternativas. S e p u d erm os levar essa p e sso a a p erceb er q u e as suas a cçõ es lhe foram im p ostas d e fora por a lg u ém , ta lv ez seja p o ssív e l libertá-la das c o n seq u ên cia s em o cio n a is.
Traum as de infância A s v o z e s n em sem p re estã o em co n so n ân cia co m a n o ssa n o çã o co n v en cio n a l de tem p o e d e esp a ço . E n contrám os p e sso a s que o u v ia m v o z e s a ssociad as a traum as so frid o s na infância; essa s v o z e s rep resen tavam fragm en tos de ex p eriên cia s v iv id a s na infân cia, m as a in form a ção n e les contid a era tão d istorcida q u e nem sem pre era fá cil ao o u vid or com p reen d er q u e se tratava de e c o s de exp eriên cias p assadas. C om o sab em os da literatura, a terapia d este tipo de prob lem as c o m p lica -se quando a p e sso a n ão tem um a n o çã o clara da relação entre as v o z e s e a situ ação traum ática. A v o z p o d e fu ncionar co m o d e fesa contra m em órias am eaçad oras, p od en d o assim su ced er que n em o o u vid or n em as próprias v o z e s sejam recep tiv o s à terapia: p o d em am b os recear p erd er-se uns aos outros e perder a co n fian ça que c o n segu iram criar entre si. E sta situ ação en co n tra -se e x celen tem en te retratada no film e Shattered (E stilh a ço s), basead o na ex p eriên cia de T rudy C hase. N u m a das cen a s d o film e, T rudy está apavorada co m a id eia d e q u e o terapeuta lh e p o ssa destruir as d efesa s ao tentar inte grar-lhe as v o zes; T rudy pergu n ta-lh e: “Q uem é que você vai m a ta r p rim eiro ? ” Para ela, a integração das v o z e s no e g o era o m esm o que m atá-las. A prioridade em qualquer terapia d ev e ser, p o is, a co m p reen são do con teú d o e da fu n çã o das v o zes.
R epressão em ocional A s v o z e s p od em ser tam bém um a co n seq u ên cia da repressão ou do abu so em o cio n a l, tão b em d escritos por B rian D a v ey m ais adiante, n este m esm o C apítulo: 264
“Se alguém é criado numa relação hipercrítica e hipercontroladora, então, quase por definição, não irá ter oportunidade de se ser a si mesmo. Não se permitiu a esse jovem que tomasse as suas próprias decisões de acordo com os seus sentimentos. Não lhe toleraram que exprimisse os seus sentimentos a respeito das coisas... Tudo o que os pais dele pretendem é um conformismo bem comportado. A revolta, o medo e talvez mesmo a alegria, sentimentos com que a criança necessita de aprender a lidar e dos quais precisa para responder ao meio e para fazer as suas próprias escolhas, nada disso é permitido. Exprimir raiva ou revolta, por exemplo, pode ser visto pela autoridade paterna como uma afronta intolerável, descrita como malcriadice e malvadez. No entanto, sejam de que natureza forem, os sentimentos são inevitáveis na vida. Mesmo que o ódio seja percebido como um sentimento inaceitável, ninguém está livre de se deparar com esse sentimento no dia-a-dia. Uma das formas de reprimir esse ódio é tentar expulsar essa parte odienta da personalidade da corrente interior da consciência definida por Eu. Esse ódio, em lugar de ser integrado, será experimentado... como uma interferência exterior.” O s psiquiatras e as p e sso a s em geral qu e teim am q u e as v o z e s não ex istem não estã o a ver b em o prob lem a. E um erro n e g á -la s ou tentar eclip sá -la s através d e au scu ltad ores, d e m ú sica e d e v íd e o s. C o m o já d em on strám os, e ssa s v o z e s rep resen tam in flu ên cia s reais e têm algo a dizer; por v e z e s , a m en sa g em p od e n ão ser b em -v in d a n em agradá v el, outras v e z e s p o d e ser sábia e instrutiva. A abord agem terap êutica correcta não é n egar a sua v alid ad e m as, an tes, procurar descob rir m ais co isa s a resp eito d e ssa m en sa g em e estudar a o rig em d o s pro b lem as con creto s su b jacen tes.
C onclusão A P siquiatria S o cia l estu d a o com p ortam en to e a p ercep çã o do H o m em na sua rela çã o c o m as c o n d içõ es d e vid a p assad as ou p resen tes do ind ivídu o. S ã o d e particular in teresse as relações e as in teracções so cia is em q u e é d ifíc il ou im p o ssív el ao p acien te ser e le m esm o ou continuar a suportar e ssa s rela çõ es e essa s in teracções. A o estudar o q u e as v o z e s d izem , o terapeuta poderá, em colab ora ção co m o c lien te, ajudar a id en tificar as rela çõ es e as circu n stân cias 265
qu e deram o rigem aos prob lem as. A escu ta d e v o z e s não é em si m esm a p rov o ca d a p ela situ ação so cia l corresp on d en te, m as aq u ilo q u e as v o z e s d izem é o retrato m etafórico d essa situ ação. A ssim , as abor d agen s d e tip o ca u sa -efeito são m en os ú teis do q u e o escla recim en to d os co n teú d o s das m en sa g en s em relação co m a situ ação d e v id a de q u em as o u v e.
Interacções familiares e psicose Nick Tarríer T o d o s n ó s so m o s sen sív eis às in flu ên cia s d o n o sso m eio , m as durante m uito tem p o p en sou -se que aqueles que sofrem de esq u izofren ia têm , n e sse ca p ítu lo , um a sen sib ilid a d e esp ecia l. C rê-se que os a m b ien tes d em asia d o rico s ou d em asiad o pobres em e stím u lo s são e sp e c ia l m en te stressan tes, p od en d o determ inar o ap arecim en to d e ex p e riê n cia s q u e im p liq u em a lu cin a çõ es, d elírio s e c o n fu sã o . O lar é um am b ien te em q u e a m aior parte de nós p assa um a b oa parte d o tem p o e , por isso , n ão surpreenderá q u e o clim a em o cio n a l d o m éstico p o ssa ter um a im portância esp ecia l no n o sso bem -estar.
E m o ções expressas N o s an os 5 0 , um grupo de s o c ió lo g o s e psiquiatras so cia is de L on dres c o m e ç o u a interessar-se p elo que a co n tecia às p e sso a s quando tinham alta do hosp ital psiqu iátrico. Para sua surpresa, verificaram q u e, entre as p e sso a s que tinham o d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia , as qu e iam v iv er co m a fa m ília p assavam pior d o q u e aqu elas que v iv ia m so zin h as ou hospedadas: as p e sso a s qu e volta v a m para a fam ília eram rein tem ad as m u ito m ais v e z e s do que as q u e v iv ia m noutro lad o qualquer. E ste facto deu a zo a um a série de in v estig a ç õ e s para a v e riguar o s e fe ito s d o m eio na ev o lu çã o d os ch am ad os esq u izo frén ico s. O s in v estig ad o res, n om ead am en te a p sic ó lo g a so cia l C hristine V aughn e o psiqu iatra so cia l Julian L eff, d esen v o lv eram um parâm etro a que 266
cham aram E m o çã o E xp ressa, através d o qual p od iam avaliar a qu an tidade d e stress ex isten te num a d eterm inada fam ília. A E m o çã o E xp ressa, ou E E co m o é freq u en tem en te d esign ad a, a v a lia -se através d e um a en trevista co m a lg u ém qu e co n h eça b em o p acien te. H ab itu alm en te é um fam iliar c h eg a d o , m as u ltim am en te o teste tem v in d o a ser ap licad o tam bém ao p esso a l d e en ferm agem e aos próprios p acien tes. E p o ssív e l avaliar o tip o e o grau d e con teú d o em o cio n a l ex ib id o p elo en trevistad o, em term os d os seu s e x c e sso s de crítica, da sua a g ressivid ad e, d o seu e n v o lv im e n to e x c e s s iv o , d o seu en tu sia sm o e d o s com en tários p o sitiv o s q u e fa z. A partir das p on tu a ç õ e s ob tid as nas várias categorias, é p o ssív e l avaliar se um d eterm i nado am b ien te fam iliar tem um a E E b aixa o u elev a d a . A ctu alm en te, estã o já co n clu íd a s p elo m en os 2 0 in v e stig a ç õ e s em larga esca la , a n ív el m un dial, para estudar a relação entre am b ien tes fam iliares co m E E elev a d a ou b aixa e as recid ivas da esq u izo fren ia . Q u ase tod os estes estu d o s têm m ostrado um a taxa d e recid iv a s m ais alta em p acien tes q u e v iv e m em am b ien tes fam iliares co m E E elev a d a , e a m aioria d e sse s estu d o s rev ela um a d iferen ça esta tística altam ente sig n ifica tiv a . A lg u m a s p e sso a s têm interpretado o c o n c eito d e EE co m o um a a trib u ição d e resp o n sa b ilid a d es ao s fa m ilia res na ca u sa lid a d e da esq u izo fren ia , ou co m o um in d ício d e q u e e s s e s fam iliares são um p o u co anorm ais - m as tudo isso é claram en te incorrecto. A E E repre senta o n ív el d e ten são em o cio n a l p resen te n o am b ien te d o m éstico , m as n ão tem d e ser, de m o d o algu m , n ecessaria m en te anorm al: s ig n ifica apen as q u e aq u eles qu e sofrem d e esq u izo fren ia sã o sen sív eis a n ív e is m esm o m u ito b a ix o s d e ten são em o cio n a l. T am b ém não n os p arece q u e o s a m b ien tes fam iliares co m b a ix a E E , em virtude d os seu s b a ix o s n ív e is d e ten são em o cio n a l, se p o ssa m con sid erar anorm ais.
D esen volvim en to s terapêuticos A in v estig ação na área da EE tem sid o extrem am en te útil por sugerir ao s p a cien tes, aos seu s fam iliares e ao s p ro fissio n a is d e Saú de M ental form as m ais efic a z e s d e trabalhar em con ju n to, n o sen tid o de 267
aprenderem a v iv er co m as d ificu ld a d es e o m al-estar provocad o pela perturbação m en tal, e m esm o a su p erá-los. A ctu alm en te, sobretudo n os E stad os U n id os da A m érica e no R eino U n id o , v e m sen d o d e se n v o lv id o um certo núm ero d e estu d os em grand e e sca la para analisar e testar o s n o v o s m éto d os b asead os na in v estig a çã o da E E . E sses m éto d o s têm m erecid o n o m es d iv erso s, por parte d e d iferen tes in vestigad ores: in terven ção p sic o -so c ia l (L on dres), o rien tação fam iliar (C a lifó rn ia , E U A ), p sic o e d u c a ç ã o (P ittsburgh, E U A ), e in terven ção fam iliar (M an ch ester, R ein o U n id o). R esu m id a m en te, estes estu d o s têm -se in teressad o p ela ajuda esp ecia liza d a que é p o ssív e l proporcionar às fa m ília s, in clu in d o inform ação sobre a esq u izo fren ia e o seu tratam ento; p e lo a co n selh am en to centrado no problem a; e p elo en sin o de ap tid ões para lidar co m situ a çõ es d ifíceis, d e ten são e de con fron tação. E ste tipo d e recursos in terven tivos tem -se m ostrado m uito m ais van tajoso d o q u e o s trad icion ais serv iço s de S aú d e M ental. E stes program as d e in terven ção fam iliar (para utilizar a term in ologia de M anch ester) têm d eterm inado um a redução radical das taxas de recid iva e de internam ento hospitalar; e sse s program as têm con trib uíd o tam bém para m elhorar o s n ív eis de fu n cion am en to d os p acien tes, p erm itin d o-lh es tornar-se m ais in d ep en d en tes. A lém d isso , há in d ício s de que o s próp rios fam iliares v êm b en eficia n d o d essa abordagem e de que a fa m ília em geral fu n cio n a m elhor, quer em term os d e lidar co m a ten são e m o cio n a l quer n o tocan te à reso lu ção d os prob lem as que tem d e enfrentar; a an álise eco n ó m ica tem d em on strado, além d isso , que e ste tipo de intervenção contribui para um a red ução de d esp esa s n os serv iço s de saúde. P or adoptarem um a abord agem centrada na reso lu çã o de p rob le m as, estes program as têm sid o b em receb id o s tanto p e lo s p acien tes co m o p elo s seu s fam iliares - qu e recon h ecem os seu s b e n efício s. N ão é verd ad e que o s program as d e in terven ção fam iliar m antenham os utentes fora d o hosp ital à cu sta ap en as do aum en to das d o ses da m ed icação; p e lo contrário, o estu d o da C alifórn ia v em dando algum as in d ica çõ es n o sen tid o d e que o s p a cien tes que participam em progra m as d e orien tação fam iliar têm , na verd ad e, d o ses m ais b aixas de m ed ica çã o . Isto d e v e -se , p ro v a v elm en te, ao facto de quer o s p acien tes quer as suas fam ília s se tom arem m ais cap azes d e lidar co m o stress. 268
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O utros in d ício s n este sen tid o p rovêm d o estu d o d e M an ch ester, q u e inostra que o s p articip an tes n o program a exp erim en tam m a is a co n te cim en tos stressan tes d o q u e a q u eles q u e n ão se en contram in tegrad os cm program as d e in terven ção fam iliar. E ste facto é im portante, na m edida em que tinha sid o d em on strad o, an tes, q u e a ex p eriên cia d e sse (ipo de a co n tecim en to s - por e x em p lo , tornar-se algu ém qu e está a m ais, ou ser um a d o en ça na fa m ília - p o d e ser fon te d e ten são e m o cional aguda q u e, para o p a cien te esq u izo frén ico , resu lta freq u en te m ente em recid iva e in tern am en to. O fa cto d e os p acien tes e n v o lv id o s n esses program as d e in terven çã o exp erim en tarem situ a çõ es p o te n cia l m ente m ais stressan tes, m as bastante p o u ca s recid iv a s, in d ica qu e adquiriram as ap tid ões q u e o s ajudam a lidar co m qualquer stress do seu m eio próxim o. E claro q u e co m o as p e sso a s se to m a m m ais in d ep en d en tes têm tam bém m ais p rob ab ilid ad es d e se deparar co m m ais stress, sim p le s m ente e apenas porq ue se tom aram m ais activas e autón om as. O p erigo aqui é claro: n ív eis m a is e le v a d o s d e fu n cion am en to a com p an h am -se da ex p o siçã o a n ív eis m a is e le v a d o s d e stress - qu e p o d em d e se m bocar num a recid iva. P arece, con tu d o, q u e as in terven ções fam iliares perm item um fu n cio n a m en to d e n ív el m ais elev a d o por dotarem o p acien te das ap tid ões n ecessá ria s para lidar co m qualquer au m en to de
stress.
A p ren d em os tam b ém a lg u m a c o isa a resp eito d o s tip os d e progra m as que não sã o e fic a z e s, já q u e tem h avid o estu d os na A lem a n h a e na A ustrália q u e n ão têm rev ela d o resu ltad os p o sitiv o s. E stes progra m as de interven ção d iferem nu m con ju n to d e p on tos d os program as bem su ced id o s d e q u e atrás fa lá m o s, to m a n d o -se assim p o ssív e l id en tificar o qu e dá resu ltad o e o q u e n ão dá. O s program as m en os b em su ced id o s foram o s que: - adoptaram um a ab ord agem p sicod in âm ica; - separaram o s p a cien tes d o s fam iliares durante a sessã o terap êu tica, ou d eixaram o p a cien te co m p leta m en te d e fora do p rocesso; - tiveram curta duração (h ab itu alm en te m en os d e 3 m eses); - não con segu iram a adeq uad a articulação co m os prin cip ais ser v iç o s de S aú d e M ental; 269
- não adoptaram um a abordagem de colab oração centrada no pro blem a. O s a sp ectos m a is cru ciais para o su ce sso dos program as d e inter v en ção fam iliar serão, en tão, a colab oração entre p a cien tes, fam iliares e p rofissio n a is na id en tificação e d escob erta das n e cessid a d es e o d esem p en h o de um pap el a ctivo por parte d o p a cien te e da sua fam ília na reso lu çã o das su as d ificu ld ad es.
Psicose B ria n D avey A últim a v e z qu e e stiv e p sicó tico tinha a ex p eriên cia q u e p od eria caracterizar c o m o ou v ir v o z e s de fu nd o. R etro sp ectiva m en te, diria agora qu e esta v a a o u v ir o ruído de fu nd o que hab itu alm en te filtram os da n o ssa c o n sc iê n c ia v íg il e projectava as m inhas próprias preocup a ç õ e s interiores sob re e s s e ruído. A s m inhas p reo cu p a çõ es interiores davam a e s s e ru íd o u m a estrutura aparente, de form a q u e m e soava co m o se e stiv e sse a ou v ir co n versas sig n ifica n tes para m im . Q uando se está p sic ó tic o , as p reo cu p a çõ es interiores sã o tão d o m i nantes que estruturam a interpretação das percep ções que vão ch egan do. A relação entre o m u n d o interior dos p en sam en tos e d o s sen tim en tos e o m u n d o exterior é dom inad a p elo m undo interior. E ste m undo interior d e sen tim en to s e p en sam en tos estranhos parece co m p leta m en te bizarro e d esfa sa d o da realidade externa. C reio, p orém , que é p o ssív e l esta b elecer o sen tid o d e sse m undo interior estranho. A form a de o tom ar p o ssív e l é en cararm o-nos a n ós m esm o s c o m o estan d o a reviver as p reo cu p a çõ es, rea cções e sen tim en tos das prim eiras fa ses da n o ssa vid a - quando éram os ainda b eb és, m en in os ou rapazin hos n ovos; d izen d o de outro m o d o , encarando tudo isso c o m o um a regres são: um retom o às p reo cu p a çõ es, sen tim en tos e rea cçõ es qu e se tev e, em co n d içõ es de m ed o e im p otên cia, n e ssa fa se lon g ín q u a da vid a, a sen tim en tos de horror ou, co m o exp licarei m ais adiante, aos n o sso s “ sen tim en tos d e escra v id ã o ”.
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D este m o d o , para com p reen d er a p sic o se é p reciso criar um a esIrutura teórica qu e ex p liq u e o pap el d os n o sso s sen tim en to s e das nossas e m o ç õ e s e d e q u e form a e sse s sen tim en to s e e ssa s em o ç õ e s n ecessitam de ser com p reen d id os separadam ente d o n o sso p en sam en to, o qual, por sua v e z , tam bém n ão é o m esm o q u e as n o ssa s a cçõ es. A s nossas resp ostas em o cio n a is às situ a çõ es, a m aneira co m o p en sa m os essa s situ a çõ es e as resp ostas activas qu e lh es d am os são as três d im en sões da n o ssa person alid ad e q u e em erg em das n o ssa s prim eiras exp eriên cias e rela çõ es. A um n ív el m ais prim ário, en qu an to e sp é c ie , a fu n çã o d os n o sso s sen tim en tos é m otivar-n os para a cçõ es qu e n os d efen d a m e su sten tem . O ca n sa ço m o tiva o d escan so, a fo m e m o tiva o co m er, a sed e m otiva o beber. O s sen tim en to s e as e m o ç õ e s, en q u an to esta d o s físic o s qu e ex p e rim e n ta m o s n o n o sso co rp o, têm ta m b ém fu n ç õ e s so c ia is e in terp essoais. O afecto e o am or m otivam e su sten tam um com p orta m ento de co m p ro m isso e co o p eração m útua, a raiva e o m ed o deter m inam e d ão en ergia às n o ssa s resp ostas d e d e fesa . M uitas e m o çõ es são d e facto co m b in a çõ es o u m isturas d e outras e m o ç õ e s. Por e x e m plo, a in veja é um sen tim en to d e d esejo m isturado co m raiva ou ó d io d evid o ao b lo q u eio da sa tisfa çã o d e sse d esejo . A s e m o ç õ e s m otivam -n os para agir. S e retirarm os o e, a em o çã o fica m oção, isto é , m o v im en to . O s sen tim en tos p razen teiros m o v em -n os para q u e ten tem o s recriar fo n tes d e prazer o u para irm os à pro cura d ela s. P or assim dizer, ela s m o v em -n o s para situ a çõ es p o sitiv a s, asso cia d a s à criativid ad e e à alegria. O s sen tim en to s d o lo ro so s, e sse s, d eseja m o s e v itá -lo s e não recriá-los, q u erem os fu gir-lh es ou resistir-lh es. C h a m a m o s-lh es n eg a tiv o s. A ssim , o s sen tim en to s, sejam eles p o sitiv o s ou n e g a tiv o s, m o v em -n os para a acçã o . N o en tanto, co m o b eb és ou crian ças p eq u en as, não so m o s ca p a zes d e agir d e outro m o d o qu e n ão seja dar sin ais directos d os n o sso s sen tim en to s a q u em p od e agir por n ó s e em relação a q u em esta m o s d ep en d en tes. M u ito antes d e serm os ca p a zes d e pensar por palavras (o u por outros sím b o lo s d e co m u n ica çã o ) e m u ito antes de serm os ca p a zes d e agir por n ós m esm o s, esta m o s d irectam en te d ep en d en tes d e encontrar n os sen tim en tos da n o ssa m ãe, d o n o sso pai e d os
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n o sso s irm ãos m a is v e lh o s um a resp osta corresp on d en te à ex p ressão d irecta d os n o sso s sen tim en tos. O qu e aco n teceria se o s outros não corresp o n d essem ? O q u e acon teceria se e le s ign o ra ssem a exp ressão d o s n o sso s sen tim en tos ou resp on d essem ao n o sso grito d e desam paro c o m o lh o s q u e ex p rim issem sen tim en to s d e ó d io ? M ais ainda, o que aco n teceria se e le s ab u sassem d o seu en orm e p od er e gera ssem n o v o s sen tim en to s de m ed o? A o p rin cíp io, a resp osta da criança é sentir horror e terror, o terror e o horror sub jacentes aos horrores da regressão. M ais tarde, o bebé ou crian ça p equ ena d esen v o lv erá um d esin teresse, um en torp ecim en to em o c io n a l extrem o, um a e sp é c ie d e zo m b ific a ç ã o , a que o s p siq u ia tras ch am am “em botam ento a fectivo ”. O s esta d o s d e terror im ob iliza n tes, o s estad os de horror e a ex p eriên cia d e si próprio co m o algu ém q u e e ste v e sem pre à m ercê da c o n v en iên cia d os ou tros, q u e fo i sem pre u tiliza d o p e lo s outros, são o s esta d o s em o cio n a is da p sico se. E u cham o-lhes “sen tim en to s de escra vid ã o ” , porq ue estã o a sso cia d o s à im p o tên cia sentid a p elo b eb é ou criança p eq u en a quando não encontra a adeq uad a resp osta eq u iv alen te à ex p r essã o d o s seu s sen tim en tos, ou q u an d o acha qu e, in d ep en d en tem en te d o s seu s próprios sen tim en tos, terá d e fazer sem pre o qu e as p e sso a s grandes querem . E stas ex p eriên cia s p reco ces de im p o tên cia irão form ar as b ases da p erson alid ad e e v ã o dar form a, m ais tarde, às n o ssa s resp ostas funda m en tais às situ a çõ es da vida. T o m a m -se parte das n o ssa s resp ostas aprend id as. N ão se trata d e um a ap ren d izagem d o tipo da que fa zem o s na e sc o la , m as de um a aprend izagem m a is fu nd am en tal, a ssociad a à n o ssa m aneira d e resp on der em co n d iç õ e s altam en te carregadas do p on to d e v ista em o cio n a l. U m a c o isa ab solu tam en te fu nd am en tal qu e aprend em os nesta fa se é se con tam os ou não para algu m a co isa . S e o s n o sso s pais não resp on d em à ex p ressã o directa d os n o sso s sen tim en to s, aprendem os q u e o s n o sso s sen tim en tos não contam para nada e que, por isso , não tem o s qualquer im portância. S e o n o sso m al-estar nunca é confortado e só n o s d ão im portância quando tem o s ê x ito , en tão terem os ten d ên cia a andar sem pre à procura de a ten çõ es, sem p re em bu sca da con fia n ça q u e n u n ca n o s deram , ex ib in d o as n o ssa s variadas h ab ilid ad es. Para 272
restaurarm os a lgu m a a u to-estim a, irem os insistir con tin u am en te nesta via, um a v e z q u e a n o ssa au to -estim a está m inada d esd e q u e na n o ssa infância ignoraram os n o sso s sen tim en to s ou abusaram d e n ós. S e form os am ad os por aq u ilo q u e so m o s, tod os o s n o sso s sen ti m entos serão resp eitad os, rec o n h ec id o s e tom ad os em con sid eração ou co rresp o n d id os. E n tão co n tin u a rem o s ab ertos ao s sen tim en to s p o sitivo s e n eg a tiv o s. Isto é im portante porq ue n os irem os sentir seguros ao fazer esco lh a s. Irem os em b u sca das situ a çõ es q u e n os dão prazer e a fecto e fu girem o s ou resistirem os às situ a çõ es qu e n os perturbam ou am eaçam . E m resu m o, d e se n v o lv er em o s a n o ssa própria p essoa, serem os d o n o s e sen h ores da n o ssa própria vid a. N o s p rim ei ros tem p os da n o ssa vid a, o am or, en qu an to con ju n to d e resp ostas de protecção e d e a fecto adeq uad as ao s n o sso s sen tim en to s, é o pré-requisito da n o ssa in d ep en d ên cia futura. S e o não en con trarm os, d e se n v o lv erem os, perante as situ a çõ es, resp ostas d efen siv a s e d e auto-protecção d isso cia d as d os n o sso s sen tim en to s, ficarem os d ep en d en tes dos outros para fazerm os as n o ssa s e sc o lh a s, and arem os sem p re em luta por m anter a n o ssa au to-estim a e ficarem os vu ln eráveis ao co lap so nervoso. A s n o ssa s estruturas d e p en sa m en to v ã o reflectir a natureza das n ossas prim eiras ex p eriên cia s. A e ste p rop ósito, o p en sam en to é o u so de sím b o lo s d e co m u n ica çã o hu m ana, sobretudo palavras, para form ar um a representação interior d o m u n d o e do lugar q u e n e le ocu p am os, representação essa qu e irá servir d e g u ia às n o ssa s resp ostas e inter pretações. E stam os su jeitos a crescer n o m eio d e sistem a s d e interpre tação que reflectem ou , p e lo contrário, rep elem o p en sam en to d os n o sso s pais. S e crescerm os sem am or e procurarm os um a ex p lica çã o para e sse fa cto , acabarem os ta lv e z por aceitar co m o b oa a versão d os n o sso s p ais, seg u n d o a qual so m o s m aus. E les d izem isso porque ign oram os ou rejeitam os as e x ig ê n c ia s qu e e le s n o s fa zem . Por m eio do n o sso p en sam en to, con stru ím os estratégias qu e n os h ab ilitam a sobreviver. O co la p so n e rv o so é a fa lên cia das n o ssa s d e fesa s, é o retorno do sen tim en to q u e ap ren d em os a d isso cia r ou esqu ecer: é um retorno ao ponto de partida, isto é , ao s horrores, aos m ed os e à im p o tên cia qu e sen tim os n os p rim eiros tem p os. 273
E m P sicoterapia da E squ izofrenia , K aron e van den B o s assin alam qu e qualquer sold ad o co lo c a d o em situação de m orte q u ase certa, ja zen d o m uito tem p o n o m esm o sítio , a urinar e a d efecar sob re si m esm o , ao ser sa lv o d e ssa situ ação p o d e entrar em co lap so n erv oso , seg u n d o o s sin tom as c lá ss ic o s da esq u izo fren ia . P orém , na m aior parte d os c a so s, esta form a esq u izo frén ica de p sic o se é rev ersív el. Eu creio q u e aq u ilo q u e v a i contar para essa recuperação é se as prim eiras ex p eriên cia s da p erson alid ad e foram su ficien tem en te p o sitiva s ou não. S e esta m o s há m u ito tem p o so b o e fe ito d e sen tim en tos n e g a tiv o s, o co la p so n erv oso é in ev itá v el. A fu n ção dos n o sso s sen tim en to s é m otivar-n os para m udar as n o ssa s circu n stân cias, para m udar as n o s sas vid as e para n o s afastar da fo n te d o n o sso m al-estar ou para a rem over. S e não fo rm o s ca p a zes d isso , o co la p so é in ev itá v el. N a lou cu ra, v o lta m o s às ex p e riê n cia s d e im p otên cia d os p rim eiros tem p o s. S e nestas ex p eriên cia s n ão havia n in gu ém para nos apoiar e confortar, não en con trarem os en tão m ais nada d o que um a c o n sc iê n cia in coeren te d e horror e terror sem fim . E ssa exp eriên cia p arece in term in ável, um a v e z q u e a criança ainda não tem a n oção d e tem p o n em sabe que e x iste um futuro na vid a adulta. N o s estad os da m en te d o s prim eiros tem p os d e vid a, as fronteiras do e g o são p o u co n ítid as e a lg o d ifu sas. U m a das pim eiras d istin çõ es qu e esta b e lec em o s é a d iferen ça entre n ós e o resto do m un do. D e in ício , esta d iferen ça é p o u co clara. A m aior parte d os sin to m a s p sicó tico s p od e ser en ten d id a co m o form as ex cên tricas de co n ceb er a in ter-relação entre o E u e o resto do m un do físic o e so cia l. N a p sic o se grave, na regressão profunda, a p esso a irá reviver um esta d o d e esp írito anterior à d iferen cia çã o entre o Eu e o não-E u. C riancinhas p eq u en as, o berço b a lo içav a c o n n o sco quando n os em b alavam ; quando m ex ía m o s as pernas, v ía m o s m exer o s co b erto res; se está v a m o s m u ito tem p o deitad os e n os tiravam do berço e do m eio d os cobertores, p o d ía m o s sentir estran heza, co m o se e stiv e sse m a separar-nos de qualquer c o isa que ju lg á v a m o s parte de nós próprios, m as qu e p a ssávam os a v er c o m o um a realidade separada. N e ssa fa se n ão tính am os qualquer m aneira de saber o que esta v a ou não rela cio nad o co n n o sco en qu an to in d iv íd u o s. T anto quanto n os era dado saber, aq u ele rosto que aparecia na T V , usando um vocab u lário que ainda 274
não d o m in á v a m o s, p o d ia estar, d e fa cto , a falar ex p ressa m en te para nós. A q u elas v o z e s d e fu n d o q u e n os acom p an h am ao lo n g o da vid a, os n o sso s p ais, irm ãos, irm ãs, p od iam m u ito b em estar a falar para n ós noutras d iv isõ e s da casa. S ó sab íam os q u e e ssa s v o z e s eram m u ito im portantes. P restávam os um a esp e cia l aten ção ao seu tom e m o c io nal, sem term os em con ta o seu sig n ifica d o im ed iato. C on so a n te a nossa própria ex p eriên cia , essa s v o z e s d e fu n d o p od iam ser augú rios de prazer ou d e terror. A cim a d e tu d o, a e x p e riê n cia p sic ó tic a é um a ex p e r iê n c ia de im potência. O trabalho d e L e ff e V au gh n d á-n os algu m as in d ica çõ es sobre o tipo d e p r o c esso s qu e p o d em estar em jo g o n e ssa ex p eriên cia . C om o sa b em o s, e s s e s autores encontraram in d ício s em p írico s d e que, se um a p e sso a ap ós um co la p so esq u izo frén ico retom a rela çõ es co m uma “E levad a E m o çã o E x p ressa ” {EE elev a d a ), a h ip ó tese d e recaíd a é m uito p rovável. A lé m d isso , a E E elev a d a p o d e ex p lica r tam bém o próprio co la p so esq u izo frén ico in icial. N a m inha m aneira d e ver, as rela çõ es em qu e há um a elev a d a E E são aquelas em q u e as e m o ç õ e s das p e sso a s (h ab itu alm en te o s pais) que v iv em co m o p a cien te são tu m u ltu osas. T en h a essa e fer v e sc ên cia em ocion al a form a d e crítica a g ressiva, tenha ela a form a d e e x c e s siv o s e lo g io s ou d e exagerad as m a n ifesta çõ es d e am or, lig a d o s ao com portam en to d eseja d o e esp erad o, o qu e a co n tece é q u e o p acien te tem a sua vid a e as su as d e c isõ e s sob o con trole d e outrem . A relação é d em asiad o e n v o lv e n te e d em asiad o controladora. O co la p so típ ico do jo v e m esq u izo frén ico e x p lic a -se bastante b em através da a n á lise q u e v im o s fa zen d o . S e alg u ém é criad o n u m a re lação hipercrítica e hip ercontroladora, en tão, q u ase por d e fin içã o , não irá ter oportu n id ad e d e se ser a si m esm o . N ã o se perm itiu a e sse jo v em que to m a sse as suas próprias d e c isõ e s d e acordo c o m o s seu s sen tim en tos. N ã o lh e toleraram qu e ex p rim isse o s seu s sen tim en to s a resp eito das c o is a s ... T u d o o qu e o s p ais d e le p reten d em é um c o n form ism o bem com p ortad o. A revolta, o m ed o e ta lv e z m esm o a alegria, sen tim en to s c o m qu e a criança n ecessita d e aprender a lidar e d os quais p recisa para resp on der ao m eio e para fazer as suas próprias e sco lh a s, nada d isso é p erm itid o. E xp rim ir raiva ou revolta, por ex em p lo , p o d e ser v isto p ela autoridade paterna co m o um a afronta 275
in tolerável, d escrita co m o m alcriad ice e m a lv a d ez. N o entanto, sejam d e q u e natureza forem , o s sen tim en tos são in ev itá v eis na vid a. M esm o qu e o ó d io seja p erceb id o co m o um sen tim en to in a ceitá v el, nin gu ém está liv re d e se deparar co m e le n o d ia-a-d ia. U m a das form as de reprim ir e s s e ó d io é tentar expu lsar essa parte od ien ta da p erson ali dade da corrente interior da co n sciên cia d efin id a por Eu. E sse ód io, em lugar de ser integrado, será ex p e rim e n ta d o ... c o m o um a interfe rên cia exterior. N esta s fa m ília s, a lém d isso , o jo v em tam b ém n ão usufrui das van tagen s de ob servar as in teracções e m o cio n a is entre o s seu s m o d e lo s parentais e de se fam iliarizar co m ela s. Para se m anter um a relação autoritária é n ecessário que se cu ltiv e a in d iferen ça e o distanciam en to em o cio n a l. E m situ a çõ es d este tipo, a relação entre o s p ais é um livro fech a d o , qu alq uer c o isa que não é da con ta da criança. A ssim , sem qualq uer m o d elo de relação em o cio n a l, a crian ça fica m al preparada para a vid a. A criança não poderá to m ar-se in d ep en d en te se o s sen tim en tos a n ão guiarem nas suas próprias c o isa s. E co m o se lhe tiv esse m quebrado as asas em o cio n a is. T orn a-se in cap az de voar para fora d o n in h o fam iliar. E n em o jo v em n em a sua fa m ília con segu irão com p reen d er co m clareza o que é que terá corrido m al. A m b as as partes v ã o ter d ificu ld a d e em achar um a m aneira de exp rim ir o qu e a con teceu . E m uito com u m , m esm o na literatura p si quiátrica, quando se pretende arranjar um a ex p lica çã o para o su ced id o, p ergun tar-se sim p lesm en te: “Q uem é que teve a cu lp a ? ”; “A quem vam os atribu ir responsabilidades p o r isso ?” E ste tip o d e perguntas é q u ase eq u iv alen te a um a outra: “Q uem é que vai ser pu n id o ? " E ste tip o d e m en talid ad e está por detrás de todas as rela çõ es so cia is auto ritárias; é a m aneira de pensar, o tipo de lin g u a g em , que se encontra em estruturas d e com an d o v erticais, do g én ero “F a z o que te m a n
d a m ” ...
A fa m ília p o d e pensar qualquer co isa com o: “Q ue pen a o João estar a com portar-se desta m aneira tão bizarra, era um. m oço tão estudioso e tão certinho; é certo que sem pre fo i bastante tím ido, m as tinha sido sem pre até agora o orgulho da fa m ília .. D e facto, a crise
qu e o João atravessa co n siste e m n ão passar d e u m p e so m orto, um a vergon h a para a fam ília, cu jos dogm as internos rejeita para d ep ois
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voltar a aceitar quando se dá con ta d o esta d o d e d ep en d ên cia em que se encontra. E le g o stav a d e ser m ais so c iá v e l, m as não sabe c o m o o con segu ir. O João v iv e num a resid ên cia un iversitária, sabe cu id ar do seu quarto e das suas co isa s, m as, in ca p az d e esta b elecer relações em o cio n a is autênticas e solid árias, n ão fa z m a is nada sen ão estudar. Para co n seg u ir esb ater a an sied ad e, a su a m en te en con tra-se q u ase ex clu siv am en te concentrad a na preparação para o s ex a m es do prim eiro ano. N o fu n d o, era isso qu e o s seu s p ais q u eriam q u e fiz e sse . P rom eleram -lhe o em p rego n ecessário à sua tran sição para a vid a adulta. A gora que está p ela prim eira v e z en tregu e a si próprio, v iv e n o terror de falhar o m aior d e tod os o s ex a m es - e ssa im portante transição sim b ó lica para a vid a adulta: o qu e e le m a is g o sta v a era d e tirar um curso de lidar co m as m iúdas. S em p re qu e surgir a gota q u e fa z transbordar o co p o (a rep rovação no ex a m e, por e x e m p lo ), o jo v em p od erá even tu a lm en te m ergulhar num a crise ex isten cia l que, in ev ita v elm en te, fará irrom per e m o çõ es com cu ja força e in ten sid ad e nu nca fora con fron tad o an tes, d esd e a infância pré-verb al, ou seja, d esd e q u e aprend eu a v iv er n o c o le te de forças em o cio n a l im p osto p e lo s p ais. E ssa s p od erosas em o ç õ e s p o dem já estar esq u ecid a s. E ssas e m o ç õ e s, v iv id a s nas prim eiras fase:, da in fân cia, foram , d e algu m m od o, co n o ta d a s co m id eias d e vergon h a e de fraqueza. O jo v e m esq u izo frén ico p o d e ser só cap az d e pensar dentro de um a gam a con cep tu al lim itad a p ela ex p ecta tiva d os p ais, que desejam a con form id ad e co m a segu ran ça, a resp eitab ilid ad e e as boas m aneiras. E stas referên cias d os p ais rep ressores é qu e vão servir para ajuizar da valid a d e ou n ão d e um a série d e em o ç õ e s p o sitiva s ou n egativas e, d e sse m od o, servir d e g u ia ao jo v e m para a acção. O s sen tim en tos p sicó tico s são d e tal m o d o d escon certan tes q u e é a própria fa m ília qu e autom aticam en te o s d esau toriza. E sses sen ti m en tos ora p arecem surgir sem m ais n em m en o s, ora são atribuídos à “ru in dad e” da p e sso a , ora se atribui “e s s a lou cu ra” a um a avaria q u ím ica ou a um g en e d e fam ília. N u m a regressão em larga esca la , o jo v e m c o m e ç a a reviver id eias e m ed os d e in fân cia, p od en d o retroceder até às fan tasias d efen siv a s m ais infantis para lidar co m o reavivar d e sen tim en to s e m ed os ina ceitá v eis. Q uando n os referim os aos estad os d e p erp lexid ad e, em m inha
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op in iã o esta m o s a referir-nos a um a ten tativa d e interpretar o m undo através d os esq u em a s m en tais da prim eira in fân cia, v a g o s e p o v o a d o s d e m ed os. O s d elírios m ais sistem a tiza d o s, p elo contrário, corresp on d em , m u itas v e z e s, a p ro cesso s m a is flu en tes de p en sam en to. P en so qu e o s p sicoterap eu tas q u e d esen v o lv eram um a esp ecia l aptid ão para lidar co m p e sso a s p sicó tica s poderão ta lvez aprender a lidar m ais de perto co m a interpretação destes estranhos estad os m entais reg ressiv os. N a an á lise retrosp ectiva d estas ex p eriên cia s, o m étod o terap êu tico m ais rápido ta lv e z seja o d e exp licar ao p acien te, através d e vários e x em p lo s e num a lin g u a g em sim p les, co m o é q u e e sse s esta d o s m en tais se p rocessam ; e procurar de seg u id a em penhar o p acien te na sua própria interpretação das ex p eriên cia s d e sses estad os m en tais p assad os. N ou tros escrito s m eu s sobre p sic o se s tenho pro curado dar um certo núm ero d e e x e m p lo s d essa terapia. U m ex em p lo de r e v iv e sc ê n c ia d e sse p en sam en to infantil era a m inh a fan tasia seg u n d o a qual o fo g o era o a sp ecto nuclear de um a e sp é c ie d e ritual preparatório das rela çõ es sex u a is. V en d o as co isa s retrosp ectivam en te, esto u certo d e q u e essa bizarria surgiu co m o um a interpretação, na prim eira in fân cia, d o traum a de m e castigarem por brincar co m fó sfo ro s. N a m inh a m en te da prim eira infân cia, é p o ssív e l qu e os fó sfo ro s e o fo g o se ten ham a ssu m id o co m o um sím b o lo de ser crescid o e adu lto, isto é , p o d ero so . A este p rop ósito, d e v o acres cen tar qu e qu em dava tais ca stig o s era o m eu pai, que era tam bém o m eu co m p etid or e rival p ela a feiçã o e aten çõ es da m inha m ã e ... L em b ro-m e nitidam en te de c o m o a v isã o de um a ca ix a d e fó sfo ro s grande, co m um barco d esen h ad o , d esen ca d ea va palavras na m inha cab eça qu e iam e vinham sem cessar: “E le há-de aprender, ele há-de ap rend er.” A m inha m en te aterrorizada queria saber que diabo teria eu para aprender e por qu e m o tiv o essa id eia se repetia con stan tem en te. V en d o as co isa s agora, p arece ó b v io que e sse s fó sfo ro s d e sen cad eavam , n o m eu estad o d e reg ressã o , as m em órias d o m eu pai d izen d o q u e o q u e eu tinha era d e aprender a deixar d e brincar co m fó s fo r o s ... A an sied ad e, tão in ten sa, era a m em ória do m ed o que eu tinha d e sse ca stigo . H oje já não ach o assim tão d ifícil interpretar as m inhas próprias ex p eriên cia s, por m ais bizarras q u e sejam . O segred o é tentar d e sc o
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brir o sig n ifica d o d e ssa s id eias estranhas, im agin an d o a co rresp on dente situação em o cio n a l na in fân cia. D e v e -s e tentar recon stitu ir a situação m ental interior d e um a criança, qu e ainda n ão p o d e fazer ideia nenhum a d aq u ilo q u e a vid a lh e reserva em term os d e ap ren d i zagem . A activid ad e interpretativa d e um a criança terá d e ser c o n c e bida no co n tex to da m u ltid ã o d e co isa s do m u n d o físic o e so cia l q u e, enquanto p ercep çõ es ex terio res, são tó p ico s e estím u lo s q u e actu am nessa m en te infan til. A m en te p sicó tica regredida é a m en te d e um adulto-criança.
Cari Jung e a percepção extra-sensorial R. J. van Helsdingen Perto do fim da v id a , Jun g falava m ais à von tad e das suas o p in iõ es e exp eriên cias p e sso a is sob re as a lu cin a çõ es. D e acordo co m a sua autobiografia, M em ó ria s, Sonhos e R eflexões, este assu nto era ob jecto das suas p reo cu p a çõ es d e sd e o s seu s p rim eiros escrito s cie n tífic o s. D iz ele:
“O primeiro livro, de 1905, tratou da psicologia da dementia praecox [esquizofrenia]. O meu objectivo era demonstrar que os delírios e as aluci nações não eram, de modo nenhum, sintomas específicos de doença mental, antes tinham, acima de tudo, um significado humano." S en d o a ssim , o q u e v em a ser um a alu cin ação? U m a a lu cin ação é um a percep ção sen sorial q u e n ão é corroborada por nen h u m a outra p essoa. N o en tan to, por si só , esta d efin içã o n ão é su ficien te: se por acaso eu vir ou ou vir a lg o d e q u e m ais n enh um a p esso a seja testem u nha, isso não quer d izer q u e a m inha p ercep ção não seja correcta. M ais p rob lem ática ain d a é a d ificu ld a d e d e d efin ir n orm alidade. U m a p esso a q u e d iga q u e o u v e v o z e s n ão é n ecessariam en te anorm al n em perturbada m ental: Joana d ’A rc, por ex em p lo , ou viu a v o z d e D eu s ch am an do-a a salvar a França - qu e fo i p recisam en te o qu e e la fez. C hegaram até n ós in ú m eros d ocu m en tos d essa ép oca, in clu in d o o s interrogatórios do tribunal q u e a con d en ou . O s interrogatórios reve-
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Iam qu e tudo o q u e ela d isse era absolutam en te lú cid o e razoável, ex cep to o facto d e teim ar em que D eu s falava p e sso a lm en te co m ela. É cu rio so q u e a m aioria dos fran ceses de hoje ten de a acreditar n essa história. Q u ando tem o s um a determ inada p ercep ção, acred itam os q u e essa p ercep ção tem a v er co m a lg o exterior a n ó s, apesar d e a p ercep ção em si ser interior a n ó s próprios. A n tes que a p ercep ção em si seja con su m ad a, é n ecessá rio que a im p ressão sensorial corresp ond ente seja incorporada n u m a c o m p lex a rede de m em órias: q u and o se v ê ou se o u v e algu m a c o isa p ela prim eira v e z , essa v isã o ou e ssa im pressão au d itiva só se to m a um a percep ção quando é situada n e ssa rede de m em órias. P or e x e m p lo , tenho por adquirido q u e a esfero g rá fica que segu ro na m ão tem determ inada form a e determ inada linha, q u e ex iste n o esp a ço e q u e m e esto u agora a servir dela. A m inha esfero g rá fica está p resente n o m u n d o exterior d o esp a ço e do tem p o (n o agora), m as é graças apenas ao m eu próprio m undo interior, à m inh a c o n sciên cia d o esp a ço e d o tem p o , q u e m e é p o ssív e l fazer essa o b serv a çã o . É e sse m eu m u n do interior q u e m e p erm ite ter p ercep ções; qualquer percep çã o do m un do exterio r im p lica o en v o lv im en to d e um a grande parte d o n o sso m un do interior. Q uando p erceb em os a lgu m a co isa , co m a v ista ou co m o s o u v id o s por ex em p lo , p arece-n os qu e se trata d e algo qu e está co m p leta m en te separado de n ó s, m as a verd ad e é que o n o sso m un do interior está co m p leta m en te e n v o lv id o n o p r o c esso da per cep ção. Sem p re q u e o n o sso n ív el de co n sciên cia afrouxa, o s asp ectos p e sso a is, su b jectiv o s, to m a m -se m ais p roem in en tes. Q uando son h o acordad o, o n ív el da m inha c o n sciên cia exterior é inversam en te pro p orcion al ao m eu em p en h am en to no m un do su b jectiv o da p ercep ção; o b serv o co m m en o s n itid ez o m undo que m e rod eia e o s factores em o cio n a is, e o m un do das m inh as record ações c o m e ç a a entrar em cen a. N as p e sso a s m u ito introvertidas, para quem o m un do interior das e m o çõ es e d o s p en sam en tos tem m ais sig n ifica d o d o q u e aqu ilo qu e se p assa n o m un do exterior, as im agen s e as v o z e s interiores são, m uitas v e z e s, m ais nítidas d o que o s estím u lo s ex teriores que lh es são paralelos. E scr ev e Jung:
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“A partir da minha experiência no baptistério de Ravena, fiquei a saber com toda a convicção que algo interior a nós poderá parecer-nos exterior. Antes de mais nada, o que ali mais me impressionou foi aquela luz azulada que inundava a sala; não fazia ainda ideia nenhuma do que se estava a passar. Não procurava sequer explicar de onde vinha aquilo nem me interrogava por que é que semelhante luz, sem qualquer origem aparente, me não perturbava. Estava um pouco surpreendido por, em lugar das janelas que me recordava de ter visto da primeira vez que lá fui, estarem agora quatro grandes painéis de uma incrível beleza, dos quais não me tinha apercebido da primeira vez. Sentia-me humilhado por ter uma memória tão fraca. O painel do lado sul representava o baptismo de Cristo no rio Jordão; o segundo painel, do lado norte, representava a travessia do mar Vermelho pe los Filhos de Israel; o painel leste esvaiu-se rapidamente da minha memória. Quando regressei ao meu país, pedi a um amigo meu que ia a Ravena que me trouxesse reproduções daqueles painéis. Ele não os encontrou; pelo contrário, descobriu que os painéis de que eu lhe falara pura e simplesmente não existiam.” O s p a in éis d e Jung foram v isto s apen as p e lo s o lh o s da sua m en te. A p red isp o sição relig io sa fê -lo ver quadros o n d e e le s n ão existiam : por outras palavras, tev e a lu cin a çõ es v isu a is. E m várias o ca siõ es, esp ecia lm en te em p eríod os d e introversão m ais in ten sa, Jung teve tam bém a lu cin a çõ es aud itivas na form a d e v o z e s. V o lta e m eia, Jung refu g ia v a -se n u m a casa d e cam p o qu e e le p róp rio construíra, num lugar recôn d ito do lag o d e Z u riqu e, on d e, em p rofu n d o iso la m en to , ou via v o z e s em redor da ca sa durante a n oite. L ev a n ta v a -se da cam a e ia ver se h avia alg u ém por ali; n ão v ia n in gu ém e volta v a para a cam a. E stas exp eriên cia s rep etiram -se d iversas v e z e s. Jung sentiu , m ais tarde, um a c o n v icçã o q u ase ab solu ta d e q u e se tratava das v o z e s das S a lig L ut, isto é, das alm as d os m ortos q u e in corp oravam o ex ér cito do deus germ ân ico W otan; n aq u ela reg iã o, a cren ça em W otan não esta v a ainda totalm en te extinta. Jung atravessou um p eríod o m u ito d ifícil da vid a , em qu e a sua saúde m ental estava bastante abalada. D uran te e s s e p eríod o, por d i versas o c a siõ e s, o u v iu a v o z d e um a m ulh er q u e lh e d izia ser e le um artista e q u e d everia d ed icar-se à pintura. D uran te algu m tem p o Jung segu iu o c o n selh o d essa v o z , até se dar con ta d e q u e ela n ão estava de b o a fé e q u e o queria enganar. E screv e Jung: 281
“Na verdade, a paciente cuja voz falava dentro de mim exercia uma influência nefasta sobre os homens. Chegou mesmo a falar a um colega meu, tentando convencê-lo de que ele era um artista pouco dotado. Ele acreditou e abandonou a arte. E porquê? Ele não tinha uma auto-estima por aí além, mas sempre ia ganhando alguma com a opinião das outras pessoas sobre o seu talento. No entanto, a ocasionalidade destas opiniões reforçava-lhe a insegurança e abria caminho às insinuações da anima; aquilo que a voz dizia tinha muitas vezes um poder sedutor, uma insondável astúcia. Especialmente durante o tempo em que trabalhei sobre as fantasias, tinha necessidade de um ponto de apoio neste mundo e devo confessar que a minha família e o meu trabalho eram esse ponto de apoio. Acima de tudo, era para mim essencial ter uma vida vulgar no mundo real, fazendo contraponto a esse estranho mundo interior. A minha família e a minha profissão continuaram a ser a base à qual podia regressar sempre e em qualquer altura, assegu rando-me de que continuava a ser uma pessoa real e vulgar.”
por mim, mas que, em sua opinião, os pensamentos são como animais na floresta ou como pessoas dentro de uma sala ou, ainda, como pássaros no ar - e comentava: ‘Se vires pessoas numa sala, não concluis que essas pessoas foram criadas por ti ou que és responsável por elas. ’ Foi ele que me ensinou a objectividade psíquica, a realidade da mente. Por ele fiquei a conhecer a distinção entre mim e o objecto do meu pensamento. Ele confrontava-me de maneira objectiva e percebi que há qualquer coisa em mim que é capaz de exprimir coisas que desconheço, que não fazia tenção de dizer e que podem até ser contrárias a mim. No entanto, era evidente desde a primeira hora que eu seria capaz de descobrir uma relação com as pessoas e o mundo que me rodeia, assim conseguisse demonstrar que os conteúdos da vida mental são reais; e não apenas por serem experiências pessoais minhas, mas por constituírem expe riências colectivas que podem acontecer também às outras pessoas. Foi o que procurei demonstrar na minha obra científica posterior.”
D ep o is d e lib ertar-se d estes apuros, Jung entrou em con tacto co m um sáb io que e le id en tificava co m o sen d o o F ilém o n da M ito lo g ia G rega. E ssa v o z era para Jung um a in flu ên cia b en éfica , que lh e dava co n se lh o s sá b io s e resp on dia às suas q u estõ es. N a M ito lo g ia , F ilém o n era um pobre h o m em que co m a sua esp o sa B a u cis oferecera um a calorosa h osp italid ad e ao D eu s Su prem o, Z eu s, qu and o este o s v isito u disfarçado de m en d ig o . T od as as outras p esso a s da região tinham escorraçad o o d iv in o Z eu s, quando este se lhes apresentara sob aq u ele disfarce. E m p aga, Z eu s ca stig o u -o s co m um a terrível inu nd ação, da qual apenas se salvaram F ilém o n e B au cis. Para Jung, F ilém o n era um v elh o sá b io q u e o ilu m in ou em m uitos a sp ecto s. N a realidade, a obra g n ó stica m ais profunda de Jung, Os Sete Serm ões aos M ortos (Septem Serm ones a d M ortuos), fo i-lh e ditada por F ilém on . E screv e Jung:
D eterm in ad o con ju n to d e sen tim en to s - o ch am ad o c o m p le x o em o cio n a l - p od e dom inar p or co m p leto , a p on to d e d estacar-se da psiq u e e assu m ir a form a d e um a p esso a . E por isso que, seg u n d o Jung, as v o z e s q u e as p e sso a s o u v em são sem p re p e rso n ifica çõ es d e parte da sua própria alm a; é p recisa m en te por se darem essa s p erso n ifica çõ es q u e o s o u vid ores d e v o z e s n ão as recon h ecem co m o parte integrante de si m esm o s - e le s ju lg a m q u e as v o z e s p rovêm d e outras p esso a s. A liá s, essa era um a p o ssib ilid a d e qu e o próprio Jung não punha d e parte. S egu n d o e le , cad a um d e n ós, ao n ív el m ais profun do da p siq u e, está em con tacto c o m a vid a espiritu al in co n scien te d e toda a gente; e sse con tacto p od e até abranger n ão apen as as p esso a s qu e já m orreram c o m o in clu siv e aq u elas q u e ainda estão para nascer. A esta partilha d o reino esp iritu al ch am ou Jung o inconsciente colectivo, d im en são qu e en glo b a tod a a H u m anidad e e perm ite qu e as p e sso a s estejam em con tacto u m as co m as outras sem ser através da percep ção sen sorial*. E sta teoria co n tem p la a p o ssib ilid a d e d e se ou vir v o z e s d e p esso a s q u e n ão esta m o s a v er ou q u e já m orreram há m uito.
“Filémon, assim como outras personagens da minha fantasia fez-me ver que há coisas na minha psique que não são produzidas por mim, antes se originam a si mesmas e possuem vida própria. Filémon representava uma força que não fazia parte de mim. Na minha fantasia mantive conversas com ele, nas quais me dizia coisas em que eu nunca tinha pensado consciente mente. Por isso, vi nitidamente que era ele que falava e não eu. Dizia-me ele que eu encarava os meus pensamentos como se fossem realmente produzidos 282
* Os aborígenes australianos entendem que a verdadeira comunicação é a tele pática. O Povo Verdadeiro não entende que a voz tenha sido feita para falar. Segundo eles, a voz foi feita para cantar, para festejar e para sarar (ver Morgan, M., 1996). 283
À lu z de tudo isto, é perfeitam en te co n c eb ív el que o s co m p le x o s em o cio n a is rep resen tem um a parte d o in co n scien te c o le c tiv o , o q u e m e tom aria p o ssív e l aceitar a realidade da escu ta d e v o z e s de p e sso a s m esm o que ela s n ão estejam p resen tes. A p o ssib ilid a d e d e um tal fen ó m en o ocorrer é p oten cia d a , em grande m edida, por factores co m o a introversão extrem a, o afrouxam en to d o estad o d e c o n sciên cia e um a lig a çã o m uito forte à p e sso a cuja v o z se o u v e. P or e x em p lo , um a
viúva que m uito am ara o seu m arido ouvia a voz dele sem pre que tinha necessidade de to m a r decisões difíceis. N um outro exem plo, um a jo vem que tinha um a fo rte ligação ao p a i ia de vez em quando à cam pa dele p a ra com ele fa la r e se aconselhar. N en h u m a destas
situ a çõ es é , por si só , in d íc io d e perturbação m ental. O s q u e são v u ln erá v eis ao s sen tim en tos d e cu lp a o u v em , por v e z e s , v o z e s críticas, acusad oras e o fen siv a s. E acreditam , m uitas v e z e s , q u e ela s p rovêm do exterior, sem reparar n o papel d esem p en h ad o p e lo seu m un do interior na g é n e se d o fen ó m en o .
Jaynes e a consciência Patsy Hage N o livro T he O rig in o f C o n scio u sn ess in the B rea kd o w n o f B ica m era l M ind*, Julian Jayn es prop õe um a teoria sobre a relação entre a ev o lu çã o h istórica da c o n sciên cia e o fen ó m en o da escu ta de v o z e s. N ã o d isp o n h o aqui d e esp a ço para m ais do que um m uito breve com en tário às id eias d este autor m as, no esse n c ia l, o im portante é a sua n otável afirm ação d e q u e, até cerca do ano 1300 da n o ssa era, a escu ta, de v o z e s era vu lgar e norm al entre o s seres hum anos e que essa exp eriên cia era b em integrada por aqu ilo a q u e h oje ch am am os co n sciên cia . S eg u n d o Jayn es, as p e sso a s q u e h oje o u v em v o z e s seriam os v e stíg io s v iv o s d e sse s tem p os antigos. *
A Origem da Consciência a partir do Colapso da Mente a Duas instâncias.
Esta “mente a duas instâncias” foi também admitida por Freud, com o seu Consciente e Inconsciente. Porém, para Jaynes, ambas as instâncias são inconscientes. 284
A n tes d o m a is, Jayn es an alisa o c o n c eito d e c o n sciên cia , dan do a sua própria d e fin içã o , partindo d aq u ilo q u e a c o n sc iê n c ia n ão é: - A aparente con tin u id ad e da exp eriên cia é um a ilu sã o q u e deriva da d iv isã o artificial do tem p o. N ão esta m o s co n scien tes tanto tem p o c o m o ju lg a m o s, dad o q u e n ão p o d em o s ter c o n sc iê n c ia do tem p o durante o qual n ão esta m o s co n scien tes. - A c o n sc iê n c ia n ão é um a m era rep rodu ção da ex p eriên cia . A m e m ória c o n scien te n ão é um arqu ivo d e im agen s sen so ria is, m as um a reelab oração d e qualquer c o isa de qu e p reviam en te tiv em o s co n sciên cia . - A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el à co n cep tu a liza çã o . N u n ca n in gu ém tem c o n sciên cia d e um a árvore. P erante a ex p eriên cia de um a árvore, a fu n ção da lin g u a g em é perm itir q u e d eterm i nada palavra sub stitu a um co n ceito . - A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el à aprend izagem : o c o n d ic io nam en to n ão e x ig e a m ed ia çã o da co n sciên cia . A a q u isição de determ in ad os traços com p ortam en tais a co n tece au tom aticam en te. A c o n sc iê n c ia d esem p en h a o seu p ap el quando eq u a cio n a deter m inado p rob lem a d e d eterm inada m aneira, m as n ão é essen cia l para lhe dar so lu çã o . - A c o n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el ao p en sam en to. P ensar em algu m a c o isa nu n ca é co n scien te. P en sa m o s antes d e saberm os o que v a m o s pensar. U m a parte im portante d este p r o c esso é a inform ação in icial, qu e p erm ite q u e tudo a con teça au tom atica m ente. - A co n sc iê n c ia n ão é in d isp en sá v el ao racio cín io . O racio cín io co n siste n u m a vasta gam a d e p r o c esso s naturais d e p en sam en to na vid a d o d ia-a-d ia. T em o s n ecessid a d e da ló g ic a porq ue a m aior parte d o ra cio cín io n ão é co n scien te. T em os ten d ên cia a lo caliza r a c o n sciên cia no interior da n o ssa cab eça, on d e in v en tá m o s um esp a ço para ela , em b ora sa ib a m os que sem elh an te esp a ço n ão ex iste. A ristóteles lo ca liza v a a c o n sciên cia algu res na parte sup erior d o coração. M as tam bém a p od eríam os 285
loca liza r p erfeitam en te n o quarto d o lad o , um a v e z que não ex iste n en h u m a lo c a liza çã o , n o sen tid o que é co stu m e im aginar. C o m b a se nas suas o b serv a çõ es, Jayn es co n c lu i q u e é perfeitam ente p la u sív el um a civ iliz a ç ã o on d e não ex ista a c o n sciên cia . E Jaynes tam b ém d isse qu e n ão n os é p o ssív e l com p reen d er a c o n sciên cia porq ue n ão tem os m etáforas para ela, e sem m etáforas não há co m p reen são p o ssív e l. S erv im o -n os d o esp a ço c o m o um a cessó rio da co n sciên cia : por ex em p lo , co n ceb em o s o tem p o em fu n ção de um m o v im en to da esqu erd a para a direita, seg u n d o o s p on teiros do reló g io . T o m a m o s co n sciên cia das partes de um tod o da m esm a m aneira q u e m a is fa cilm en te tem o s co n sciên cia de um p a lh a ço d o que d o circo todo. U tiliza m o s a m etáfora “E u ” para tudo o qu e a co n tece na n o ssa im a g in a çã o , na v e z d e utilizarm os m etáforas a u m n ív e l co n scien te. A c o n sc iê n c ia é um a m etáfora d o n o sso com p ortam en to real. N a essê n c ia , p o is, a co n sciên cia fu n cio n a co m a ajuda da an alogia e d o esp a ço con stru íd o, co m um “E u ” a n álogo, qu e é ca p az de observar e sse e sp a ço e d e se m ovim en tar m etaforicam en te dentro d ele. E stes sã o, em sum a, o s principais fu n d am en tos da tese de Jaynes. O a sp ecto central é a n o çã o d e que é p erfeitam en te p la u sív el que um a so cied a d e fu n cio n e em p len o e ond e a c o n sc iê n c ia n ão exista. S egu n d o Jayn es, e ssa so cied a d e está m u ito b em e x em p lifica d a na Ilía d a , livro escrito por H om ero m uito antes de ex istir a co n sc iê n c ia tal co m o a co n h ecem o s: ou seja, n o tem p o em que toda a g en te ou v ia v o z e s. A parentem ente, na Ilíada não se en contram qu aisq uer term os rela cio n a d o s c o m a c o n sciên cia ou co m p ro cesso s m en tais; na relig iã o d os an tigos G reg os o s d eu ses estavam no lugar da co n sc iê n c ia . C om o d izia A gam ém n on : “O s deuses fa ze m sem pre o que lhes a p ra z.” A. Ilíada rep resen ta aqu ilo a que Jaynes ch am ou a “m en te a duas in stân cias”, isto é , o fu n cio n a m en to d o esp írito hu m ano a d o is esp a ço s ou co m partim en tos, d ig a m o s, duas câm aras, am bas in co n scien tes. A câm ara m aior é ocu p ad a p e lo s d eu ses, q u e falam c o m o s hu m anos, e p elas suas v o z e s. O in d ivíd u o - o crente - ocu p a a outra câm ara e ex ecu ta a ctos cerim o n ia is. O p od er d e von tad e, p la n eam en to e in iciativ a não ex iste a um n ív el co n scien te; as a cçõ es e as d e c isõ e s são da alçada d os d e u ses e o in d ivíd u o lim ita -se a o b ed ecer às ordens d e les, um a v e z 286
que cada p e sso a d e per si n ão é cap az d e co n ceb er co n scien tem en te o que há-de fazer. T od a a Ilíada ilustra, a ssim , n ão o carácter m as os feitos d os h u m an os realizad os ao serv iço d o s d eu ses. N ad a há na Ilíada que su gira a p o ssib ilid a d e d e um d eb ate d e um ser hu m ano c o n sig o próprio ou qualquer tip o d e resp on sab ilid a d e p e sso a l. E sses sin ais id en tificativ o s da co n sciên cia só h averiam d e surgir m ais tarde na H istória, co m o produto d e cultura - q u an d o o H o m em , por assim dizer, se to m o u o d eu s d e si m esm o . L o g o q u e a m en te a duas in s tâncias entrou em d eca d ên cia, em ergiu a co n sciên cia . H á um a sem elh a n ça n otá v el entre a m an eira c o m o o s d eu ses falam na Ilíada e o m o d o co m o m u itos d e n ó s exp erim en tam a escu ta de v o z e s. O s d eu ses falam uns co m o s ou tros, am eaçam , am ald içoam , criticam , delib eram , avisa m , co n so la m , troçam , dão ord en s, v a tici nam . G ritam , lam u riam -se e escarn ecem . P assam , sem m o tivo aparente, do m urm úrio à gritaria. M uitas v e z e s, e x ib e m certas particularidades e sp e cífica s, co m o seja falar m u ito d evagar ou m u ito ritm icam ente. Na Ilíada, o s d eu ses eram sem p re o b ed ecid o s. D e igu al m od o, m uitos de n ós o b ed ecem o s às v o z e s q u e o u v im o s, e Jayn es sugere algu m as ex p lic a ç õ e s p la u sív eis para esta o b ed iên cia às v o z e s e aos d eu ses. Q uando preten dem os entender algu ém que fala co n n o sco , tem os de ir m en talm en te ao en con tro da sua m an eira d e ser e p orm o-n os no seu lugar. Q u and o aqu ilo q u e n os d irig em é um a ordem , essa id en tifica çã o to m a -se o b ed iên cia . S ó p o d em o s evitar essa o b ed iên cia se ex istir um d istan ciam en to e fe c tiv o entre n ó s e a p e sso a qu e fala ou se estiv erm o s p red isp ostos a d iscord ar d as su as ordens e das suas in ten ções. O s d eu ses qu e falam na Ilía da esta v a m em con tacto m ais ín tim o co m o s h u m an os do qu e estes co m o seu próprio “E u ”. O s d eu ses eram o b ed ecid o s porq ue os h u m an os n ão estavam p red isp ostos a discordar das ordens d eles: o s d eu ses eram sem p re o m n iscien tes e o m n ip oten tes e não p od iam ser d esau torizad os. M ais adiante, Jayn es d á-n os no seu livro um a d escrição m uito técn ica das fu n çõ es d os d o is h em isfério s cereb rais. O q u e é n ecessário aqui referir é a sua n o çã o seg u n d o a qual é o h em isfério d ireito aqu ele q u e tem cap acid ad e d e ou vir v o z e s, e q u e o s d o is h em isfério s p od em fu n cion ar separad am ente - tal e qual co m o a relação d eu ses-h o m en s 287
n os tem p os da m en te a duas in stân cias. O cérebro p o d e ser in flu en cia d o por aqu ilo que o rod eia e, sen d o a ssim , a cultura p od e fa zê-lo passar d o registo a duas in stân cias para aqu ilo a que ch am am os estad o d e co n sciên cia . Jayn es fa z o historial da escu ta de v o z e s ao lo n g o da ev o lu çã o hum ana. S egu n d o e le, a lin g u a g em teria in icialm en te surgido na form a d e gritos em reacção a a m eaças, gritos que lo g o seriam u tilizad os p e lo s líd eres no interior do seu resp ectiv o grupo, co m o a v iso de um p erigo esp ecia l. D ep o is teriam ap arecid o palavras em b lem áticas que o líd er usaria para atribuir tarefas aos vários m em b ros d o grupo. A m ed id a que essa s tarefas se tornavam cada v e z m ais co m p lex a s, d e se n v o lv ia -se tam bém o s e lf in d ivid u al e as p e sso a s com eçaram a ter a lu cin a çõ es da v o z d o líd er a dar ordens. C om o d e se n v o lv im en to d e co m u n id a d es d e m uitas cen ten as ou m esm o m ilh ares de p esso a s, surgiu o rei - cuja v o z era ou vid a por toda a com u n id ad e. Q uando o rei m orria, o seu p o v o con tin u ava a ou vir a sua v o z e e le era e le v a d o ao estatuto d e d eus. D este m od o, a hu m an idad e fo i criando o s seu s d eu ses. E rigiram -se tem p los e está tuas para fazerem as v e z e s d o s tú m u los d os reis fa lecid o s. A s cid ad es foram crescen d o e to m o u -se en tão n ecessária um a m en te a duas in s tân cias - co m a sua cap acid ad e d e ou vir v o z e s - para assegurar a m an u ten ção do con trole so cia l. O s E g íp c io s tratavam o s seu s m ortos m ais ilu stres c o m o se ainda co n tin u a ssem v iv o s, porque a com u n id ad e ainda o u v ia as v o z e s d eles. E n contraram -se tem p los e lugares sagra d os para os d eu ses cuja idade a tin ge o s 7 0 0 0 anos. E ncontraram -se na T urquia im agen s de 1250 a.C . rep resen tando vários d eu ses alin hados uns ao lado d os outros, o q u e testem u n h a graficam en te o quanto o s d eu ses eram p róxim os entre si. Jaynes p assa em revista várias culturas antigas, tentando dem onstrar qu e m uitas socied ad es eram govern ad as por interm édio dos seus d eu ses, escu ta d o s na form a de v o z e s. M as, d ad o que estas so cied a d es estavam em p erm anente exp an são, torn an d o -se cada v e z m ais co m p lex a s, e dad o q u e as suas p o p u la çõ es se co m eça v a m a dedicar ao co m ércio (através do qual entravam em co n tacto co m outras culturas e outros d e u ses), torn ava-se cada v e z m ais d ifícil preservar a c o esã o entre os
d eu ses. A H u m an id ad e d ep arou -se co m m ú ltip los e variad os d eu ses cm co n flito uns co m o s outros; e no p eríod o entre 2 1 0 0 e 1 3 00 a.C . esses sistem as so cia is foram d eixan d o com p leta m en te d e fu n cio n a r à custa da escu ta d e v o zes: a c o n sciên cia co m eço u en tão a d e se n v o lv er -se e a tom ar co n ta d o p ap el d o s d eu ses. D o fim d e sse p eríod o até aos dias de h oje já só um a p ercen tagem red uzid a d e p esso a s co n tin u a a ouvir v o z e s - por e x e m p lo , aq u elas qu e visita v a m o s orácu los g reg o s e os profetas da B íb lia . A m inha própria co n c lu sã o da leitura da obra d e Jayn es é qu e a origem da c o n sc iê n c ia radica p recisam en te no co la p so da m en te a duas instâncias: isto é , n o d esap arecim en to da escu ta d e v o z e s e n quanto fen ó m en o g en era liza d o e un iversal. A q u eles d e n ós qu e c o n tinuam a ouvir v o z e s estã o p o is, a b em dizer, a v iv er n o sé cu lo errado.
ASSUMIR O CONTROLE DA SITUAÇÃO Vivem em nós inúmeros, Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Tenho mais alma que uma. Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia Indiferente a todos, Faço-os calar: eu falo. Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou. Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu 'screvo. (Fernando Pessoa,
Odes de Ricardo Reis )
Introdução Marius Romme N e ste C ap ítu lo v a m o s passar em rev ista algu m as das técn icas seg u id a s p e lo s o u vid ores d e v o z e s e /o u p e lo s seu s terapeutas para co n seg u ir obter um m aior con trole n a sua relação co m as v o zes. É b om qu e se n ote q u e não se trata d e curar p e sso a s das v o z e s que o u v em . “C ura” é um a palavra qu e tem o s ev ita d o deliberadam ente ao lo n g o d e tod o este livro: n ós d e fen d em o s q u e ou vir v o z e s é um a ex p eriên cia hum ana q u e p od e estar carregada d e sig n ifica d o no c o n tex to da vid a p esso a l e qu e, por c o n seg u in te, não d everá ser encarada sim p lesm en te co m o um a m era m a n ifesta çã o de um a d oen ça. É claro que toda a regra tem as su as ex cep çõ es: n o ca so das v o z e s, e ssa s e x c e p ç õ e s p o d em incluir as v o z e s o u v id a s n o âm bito de um a e p ilep sia ou durante qualquer das fa se s p olares da p sic o se m an íaco-d ep ressiv a. N o entanto, as v o z e s q u e su rgem n o co n tex to do d ia g n ó s tico d e esq u izofren ia são freq u en tem en te um prob lem a m uito diverso. N e ste s ca so s, as v o z e s são sig n ifica n tes e dão, m uitas v e z e s, sen tid o e orien tação à vid a de q u em as o u v e . O term o “cura” não se p od e aplicar co m propriedade a essa s v o zes; é m ais um a qu estão de apren der a lidar co m ela s, d e lh es dar um lugar e um tem p o e sp e c ífic o s no co n tex to da vid a co m o um todo. A fim de m in im izar a ruptura do fu n cion am en to qu otidiano to m a -se esse n c ia l alcançar o m áxim o de con trole p esso a l p o ssív e l. A este p rop ó sito , as estratégias descritas n este C apítu lo pod erão ser de grande utilidade. F iz em o s um a lista g em d essa s estratégias por ordem d ecrescen te do en v o lv im en to p esso a l que requerem por parte do ou vid or d e v o z e s. A ssim , a S ecçã o E screver Um D iário aparece em prim eiro lugar, na m ed id a em q u e e x ig e um a p articip ação da p e sso a de qu ase 100% ; o C apítu lo term ina com a S ecçã o M edicação, na qual o contributo p essoal d o ou vid or de v o z e s é m uito d im in u to, d ep en d en d o ainda assim do en v o lv im en to p esso a l que o s outros lh e perm itirem . P assarem os em revista as seg u in tes estratégias:
292
-E s c r e v e r um diá rio - n esta S e cçã o reu nirem os o s relatos de quatro p e sso a s q u e o u v em v o z e s e qu e n os ex p lica m p or qu e com eçaram a escrev er o seu diário e d e qu e form a essa estratégia o s ajudou. - Interajuda e ajuda m útua - n esta S e cçã o an alisarem os o s p o ssí v e is b e n efício s d e fazer parte d e grupos d e ajuda m útua. U m a das organizadoras, e la m esm a ou vid ora d e v o z e s, ex p lica -n o s co m o fu n cion am e ste s gru p os, por qu e razão as p esso a s p articip am n e les, que tip o d e o b je ctiv o s têm , etc. - C oncentrar-se nas vozes - d o is p sic ó lo g o s d escrev em o m éto d o q u e e le s m e sm o s d esen v o lv era m e aplicaram em p e sso a s qu e o u v em v o z e s. E ste m éto d o preten de d esen v o lv er um a co m p reen são cada v e z m aior das p ercep çõ es e sua interpretação. - Técnicas d e con tro le da ansiedade - um psiquiatra d escrev e algu m as técn ica s q u e u tiliza em ou v id o res d e v o z e s. E ssa s té c n icas foram c o n c eb id a s para esbater o s n ív eis d e an sied a d e, de form a a p o ssib ilita r o assu m ir d o con trole da situ ação. - P rovocar o d iálogo entre vozes - esta S e cçã o dá con ta, em p or m enor, da ex p e riê n cia d e um a p sic ó lo g a em provocar o d iá lo g o entre v o z e s o u v id a s p or um a sua clien te, no intuito d e lh e d e se n v o lv er um grau m a is elev a d o d e con trole sobre elas. - R eabilitação - o o u v id o r d e v o z e s é, em larga m ed id a, in flu en ciad o p ela natu reza d o seu m eio circu nd an te. A so cied a d e reage, m uitas v e z e s, n eg a tiv a m en te ante a q u eles qu e c o n fessa m ou vir v o z e s e, por e ssa razão, há q u e ter em d evid a con ta a n e cessid a d e d e um program a d e reab ilitação. N esta S e cçã o , um psiqu iatra su gere-n os a lgu m as form as d e abordar a qu estão.
-M e d ic a ç ã o - aos o u v id o res d e v o z e s su b m etid os a tratam ento p siq u iátrico sã o p rescrito s v ários tip os d e m ed ica çã o . N esta S e cçã o , um p siqu iatra d á-n os con ta d os vários tip os d e fárm acos h a b itu a lm en te u tiliz a d o s e d as circu n stâ n cia s em q u e e s s e s fárm acos são receita d o s. 293
Escrever um diário* Sandra Escher O u vir v o z e s é um fen ó m en o c o m p le x o , m as, para m im , um dos a sp ectos m ais im portantes é o da reflex ã o q u e p o d e suscitar aos o u vid ores de v o z e s a form a co m o e le s tentam lidar co m as suas em o ç õ e s e as d os outros. L idar c o m este prob lem a p o d e revelar-se um in sid io so dram a em o cio n a l m as, n o fu n d o, é a lg o sem elh an te a ouvir um a p eça de teatro rad io fó n ico e p o d e con stitu ir para a p e sso a um a p reciosa oportunidade de se com p reen d er a si m esm a. C ontu do, essa e x p e riê n cia p o d e tam bém d e se n ca d ea r sen tim en to s ex trem am en te n eg a tiv o s, red uzin do o ou vid or de v o z e s ao pân ico e à im potên cia. C om u n ican d o co m o s outros acerca das v o z e s e suas rep ercu ssõ es, o ou vid or d e v o z e s poderá, m uitas v e z e s , encontrar form as de obter um con trole m ais e fe c tiv o sobre a situ a çã o . E m m uitas das n o ssa s entre vistas e d ebates c o m ou v id o res d e v o z e s d escob rim os que a d iscu ssã o desta p rob lem ática era um a das form as m ais im portantes e efic a z e s de introduzir algu m a ordem num a ex p eriên cia caótica. O s que c o n se gu em lidar co m este prob lem a adquirem um a m aior co n fia n ça em si m esm o s e esta b elecem um a p rox im id a d e m aior co m o m eio so cia l circundante. C ontu do, algu m as p e sso a s sen tem certa d ificu ld a d e e algu m m al-estar em falar abertam ente sob re e ste s assuntos; n estes ca so s, em particular, p od e ser m uito útil escrev er um diário. É p reciso ser-se cap az d e d escrever e exp licar as ex p eriên cia s e id eias próprias antes d e poder partilhar de form a útil o s prob lem as e p en sam en tos e de
* Tudo o que a seguir é dito sobre a função catárctica e organizadora do diário não é uma característica específica da escuta de vozes e dos ouvidores de vozes mas, antes, uma característica comum a todos os diários e a quem os escreve. Seria uma pena que estas funções normais dos diários nas pessoas que os escrevem fossem reduzidas a uma tecnologia psicoterapêutica. O que se pretende aqui é estimular as pessoas (normais ou “doentes”) a procurar formas de organizar as suas ideias ou as suas emoções pelos mecanismos de que toda a gente se pode servir nas mais diversas situações da vida. 294
Iransm itir um a situ ação d e natu reza tão p essoal: isto é, form ular aq u ilo que as v o z e s d izem , com o são d esp oletad as p elas e m o çõ es e po rq u ê. O diário p od e con stitu ir um instru m ento m u ito útil n este p ro cesso . U m d os seu s m aiores m éritos co m o instru m ento d e ajuda é a sua infinita p a ciên cia e a su a total tolerância! A fim d e esb oçar as p o ssív e is fu n çõ es e o s p o ssív e is b e n e fíc io s de escrever um diário, en trev istei quatro m u lh eres, todas ela s ou vid oras de v o z e s e ex -p a cien tes p siq u iátricas. P ed i-lh es um a in form ação p or m enorizada acerca da su a ex p eriên cia co m o diário, particu larm ente no que resp eita aos seg u in tes pontos: - em que circu n stân cias co m eçaram o diário; - co m o reagiram as v o z e s ao diário; - saber se escrev er o diário ajudou a introduzir ordem n o ca o s e a reforçar o sen tid o d o selfi - saber se elas eram ca p a zes d e m ostrar o seu diário ao s a m ig o s e fam iliares ín tim os; - que sig n ifica d o tinh a o d iário para ela s. O s resu ltad os d este p eq u en o inquérito vieram fazer a lgu m a lu z sobre o p o ssív e l sig n ifica d o e u tilid ad e d e escrev er um d iário, c o isa que variava m u ito entre as quatro m ulh eres. Senhora A A senhora A , actu alm en te co m 3 4 an os d e idade, co m eço u a e s crever um diário a resp eito das su as v o z e s d ep o is d e ter esc o lh id o um n ovo terapeuta. N as prim eiras con su ltas fora-lh e m u ito d ifíc il abrir-se co m e le, e en tão d ecid iu , por sua própria in iciativa, co m eça r a escrever um diário, para tentar exp ressar co m m ais clareza tudo o qu e pretendia dizer.
“Queria falar mas ficava-me tudo preso na garganta; por isso, comecei a mostrar-lhe o meu diário assim que chegava. Então ele fazia-me perguntas sobre o que eu tinha escrito, e dei conta de que era capaz de responder-lhe. A princípio escrevia sobre as coisas depois de elas terem acontecido, mas a dada altura comecei a escrever no preciso momento em que as vozes 295
estavam a incomodar-me. A partir de então, o diário passou a tomar-se um relato muito confuso, embora isso não me provocasse qualquer ansiedade suplementar e as vozes não me proibissem de escrever o diário. Nunca escrevi o que as vozes me diziam concretamente; em vez disso, escrevia habitualmente acerca da minha sensação de impotência perante elas." A senhora A fa lav a da sua sen sa çã o d e im p o tên cia ao terapeuta, e o s d o is em con ju n to procuravam so lu çõ es para as situ a çõ es em que essa sen sação d e im p o tên cia surgia. U m dos e x em p lo s qu e ela deu era ir a um a festa co m o seu nam orado: m uitas v e z e s tinha d e sair da festa a m eio por ca u sa das v o z e s, o que lh e trazia p rob lem as co m o nam orado. E m d iá lo g o co m o terapeuta, su rgiu -lh e a id eia d e q u e se ch eg a sse p reviam en te a um acordo sério co m o nam orado, para e v e n tu alm en te pod er ter d e sair a m eio da festa , ta lv ez e s s e problem a d esap a recesse. F o i o q u e efectiv a m en te v e io a acontecer: as v o z e s não a in com od avam qu and o o acordo era cum prido. Q uando lh e p ergu n tei se escrev er um diário lh e tinh a fortalecid o o self, resp on deu-m e:
“E muito difícil responder a essa pergunta. Tenho a nítida sensação de que quando escrevo não sou capaz de distinguir as minhas emoções do meu próprio self. Acha isso estranho? Nunca voltei a ler aquilo que escrevi. O melhor é não mexer mais nisso.” H á 3 anos, ela serv iu -se do diário para pôr a m ãe ao corrente do qu e se passara e d o q u e se passava ainda co n sig o . (T ratan d o-se de um d ocu m en to tão carregad o de e m o çõ es, é b om avisar do seu con teú d o tod o o p o ssív e l leitor e co n fid en te.) A m ãe fico u extrem a m en te c h o cad a e d esatou a chorar - c o isa raríssim a nela - , m as acabou por resp on der q u e agora já com p reen d ia m uito m elhor o com p ortam en to da filh a. A partir daí, a relação entre am bas to m o u -se m u ito m ais íntim a. A senh ora A já n ão escrev e diário nenhum . A partir da co n v ersa qu e tiv e co m ela , em qu e v erifiq u ei co m o se m o v im en ta tão b em so cia lm en te, d u v id o q u e ela to m e a precisar d o seu diário; agora é cap az d e exp ressar e d e exp licar co m m uita clareza as su as d ificu l dades. 296
Senhora B A senh ora B tem actu alm en te 2 6 an os d e id ad e. Q u and o co m eço u a sua terapia tinha von tad e d e con fiar n o seu terapeuta, m as n ão se sentia ca p az d e se abrir co m e le . A co n selh o d e le c o m e ç o u a escrev er um diário e agora d iz q u e esta é a ún ica m an eira d e esta b elecer contacto c o m o seu terapeuta. D isse -m e ela:
“Durante a terapia era difícil submeter-me a uma hora de emoções obrigatórias. ” P or outro lad o, ach ava m u ito m ais fácil exp rim ir livrem en te as suas e m o ç õ e s n o diário, on d e, in clu siv e p o d ia d escarregar toda a sua raiva contra o terapeuta. A senh ora B ainda h o je co n tin u a a escrev er o seu diário c o m o form a d e desabafar:
“Quando escrevo tenho de me concentrar, e então tudo flui espontanea mente. Também é muito importante para mim ser capaz de descarregar os meus sentimentos desta maneira.” Q u and o lh e p ergu n tei co m o reagiram as v o z e s ao seu diário, res pondeu-m e:
“Era conforme. A princípio, quando eu estava a escrever, as vozes não se metiam, e eu julgava que elas se iam manter de fora sempre que eu escrevesse o meu diário. Mas, depois, à medida que aprofundava a minha reflexão sobre as coisas, as vozes começaram a interferir cada vez mais. Às vezes eram extremamente difíceis de aturar e proibiam-me de escrever. Nas primeiras vezes obedecia-lhes e parava. Mais tarde, porém, comecei a não lhes ligar. Agora, quando as vozes me incomodam, continuo a escrever na mesma.” A senh ora A tin h a-m e d ito qu e se co stu m a v a perder quando se punha a escrev er. P ergun tand o à senh ora B se a co n tecia o m esm o co m ela, resp on deu -m e:
“Sim, às vezes acontece. Acontecia-me mais nos primeiros tempos. Houve uma altura em que punha a caneta em cima do papel e deixava correr, sem fazer ideia nenhuma do que estava a escrever. Escrevo do interior das mi297
nhas emoções. Não me parece perigoso, mas prefiro não voltar a ler aquilo que escrevo. Deixo isso para o meu terapeuta." A senh ora B d escob riu n o diário um a fo n te d e en ergia e d e se n v o l v im en to p e sso a is. E xplica:
“Acabei há pouco de compreender o que as vozes significam, e o meu diário desempenhou um papel importante nessa descoberta." S en h ora C A senh ora C , de 43 an os de idade, e screv e o seu diário d esd e os 12 an os. C o m eço u a esc r e v ê -lo em m o m en to s d e so lid ã o , quando o s p ais a m eteram num c o lé g io interno. U m ano antes, tinha p assado por um a terrível provação e qu ase fora violada: um grupo de jo v en s d eito u -a ao ch ão , na frente da irm ã m ais n o v a , e d esp iu -a. E la nunca te v e cora g em para falar n isso em casa. Q u and o co m eço u a escrev er o d iário, in ven tava a m ig o s im agin á rio s, c o m o m uitas crianças fazem . U m p o u co m ais tarde, co m eço u a o u vir v o z e s e a id en tificar-se co m e s s e s a m ig o s im agin ários. Por e x e m p lo , quando escrev ia a um a ou acerca de um a d essa s am igas que se ch am ava A nn , ela própria p assava a ser a A nn . Para ela, escrev er torn ou -se um v íc io , qualquer c o isa co m q u e se p o d ia entreter durante horas e horas a fio . D e in ício não v ia qu alq uer prob lem a n isso e não p a ssa va sem escrever.
“Escrevo para descarregar as minhas emoções. Abandono-me completa mente à minha escrita e isso revigora-me. Deixo que os meus sentimentos saiam cá para fora; se o não fizer, sinto-me a explodir. É certo que a gente se pode perder, deixando de estar no aqui e no agora, mas também é certo que nos podemos encontrar quando estamos a escrever." H á três a n o s, a sen h ora C freq u en to u um cu rso in ten siv o de h ip n oterap ia, q u e a ajudou a d escob rir em si várias person alid ad es, cad a um a d elas c o m o s seu s próprios traços d istin tiv o s d e carácter. P or e x em p lo , h avia a m alvada, a am orosa, a d esesp erad a e a m agoada. 298
D eu um n o m e próprio a cad a um a d ela s e n o seu diário d eix a v a -a s falar um as co m as outras e fa zia -lh es p ergu n tas, do género: “P or qu e estás tão triste?”
“Através desses diálogos voltei a encontrar-me.” Para a senh ora C , escrev er um diário é um a e sp é c ie d e catarse. N essa arena, é cap az d e exp ressar e m o ç õ e s v io len ta s, qu e recon h ece co m o suas, m as q u e p od iam ser d esagrad áveis e disru ptivas se fo sse m com u n icad as d irectam en te aos ou tros. Q uando se sen te na im in ên cia da p sico se, c o m eça a escrev er e sen te q u e isso a ajuda. D iz qu e agora já só escrev e durante p eríod os lim ita d o s qu e nu nca ultrapassam um a hora de cada v ez.
“Tive que manter-me dentro dos limites de tempo que estabeleci; não sei se compreendem o que quero dizer.” A senhora C reparou, ainda, q u e co n seg u ia m anter as v o z e s per turbadoras em resp eito se se m a n tiv esse dentro d e sse lim ite d e tem p o quando escrevia. Senhora D A gora co m 3 0 an os d e id ad e, a senh ora D fo i internada p ela pri m eira v e z num h osp ital p siq u iátrico há cerca d e 10 anos. C o m eço u a ouvir v o zes 2 4 horas d ep o is d e ser internada. P assad os m ais ou m en os 6 m eses, já se sen tia su ficien tem en te m elh or para ter alta e o seu terapeuta en carregou -a d e escrev er assid u am en te um diário acerca do que lhe ia acon tecen d o e da m aneira co m o se estava a sentir. A inten ção era ajudá-la a esta b elecer um p o u co d e ordem n o seu ca o s em o cio n a l. A senhora D é um a p erfeccio n ista . P reocu p a-se em cum prir tão escru p u losam en te qu anto p o ssív e l a tarefa q u e o terapeuta lh e co n fio u e, quando n ão fica sa tisfeita co m o q u e escrev e, rasga e torna a escrever. P or isso , d esd e in ício , procura ex p or co m toda a p erfeição p o ssív e l o que d eseja exp rim ir. E sta sen h ora esta b elece um flagrante 299
con traste co m as três m u lh eres anteriores: é a ú n ica q u e só c o m eça a escrev er quando já p e n so u tudo acerca d o q u e vai dizer.
“Quando estou demasiado emotiva, não sou capaz de pensar nem de escrever.” N u m lo n g o p r o c esso d e ten tativas e erros, a senhora D fo i d o m i nan do a arte d e ex p or c o m ex a ctid ã o o s seu s sen tim en tos.
“Ao pegar na caneta e no papel, alguma coisa acontece comigo. Tudo o que vivo e tudo aquilo com que tenho de lidar fica gravado para sempre. Desse modo, posso lidar muito melhor com as minhas emoções e distanciar-me delas." T a lv ez por isso m esm o , a senhora D n ão se sente perturbada quando vo lta a ler aqu ilo que e sc r e v e n o diário. D isse -m e qu e as v o z e s nu nca interferiram co m aqu ilo q u e escrev e. Para ela, escrev er o diário tem sid o um a oportunidade m u ito p o sitiv a d e crescim en to p esso a l.
“Ao escrever o meu diário aprendi que, de uma maneira ou de outra, as minhas vozes se relacionam com as situações por que vou passando.” C onclusão D as en trevistas e d eb a tes q u e m an tive co m as quatro ou vid oras de v o z e s acerca d os seu s d iários, pude co n clu ir que essa prática p arece con stitu ir um a ex p eriên cia m u ito p o sitiva . D e um m od o geral, p arece con stitu ir um p ro cesso b astante m en os am eaçador e perturbador do qu e eu própria supunha à partida. A s 4 senhoras p arecem -m e m u ito cap azes d e controlar toda a in form ação am eaçadora que surge e de, sem p re q u e n ecessá rio , criar in tervalos livres de v o z e s. O diário é um p r o c esso surpreendente de p rom over a co m u n ica çã o sobre as v o z e s. A m ed id a q u e o tem p o vai p assan d o, e d e acordo co m o tem p eram ento da p e sso a , o diário p o d e constitu ir um estím u lo para encontrar um a p ersp ectiva clara das em o ç õ e s e d os seu s reflex o s em diversas situ ações, c o isa q u e pod erá cond uzir, por sua v e z , a um m aior grau d e com p reen são da natureza e do sig n ifica d o das v o zes. 300
C onstituin do o diário um in stru m en to d e com u n ica çã o co m os outros, é im portante q u e a p e sso a a q u em se co n fia o con teú d o p o ssa satisfazer um certo nú m ero d e req u isitos. E m particular, essa p esso a deverá ser de total co n fia n ça e m ostrar-se se n sív e l às e m o ç õ e s d o seu sem elh an te. N o s ca so s em q u e a p esso a q u e e sc r e v e o diário n ão se sen te capaz de o partilhar co m a lgu ém , fica em aberto o p rob lem a d e se saber co m o p od e ela ajudar-se a si própria serv in d o -se d e sse instru m ento a n ível estritam ente p e sso a l. N ã o há um a resp osta fácil para esta q u es tão, em bora m e pareçam im portantes o s seg u in tes pontos: - Arranjar um a form a d e guardar o d iário qu e p reserve a sua pri vacidade; - U sar a im agin ação para assegu rar as c o n d içõ es id eais d e escrita; - D efin ir claram ente a d isp o n ib ilid a d e e o tem p o q u e se está em c o n d içõ es d e lh e dedicar; - M anter ex p ecta tiva s realistas. S e o diário n ão resu lta, é p o ssív e l q u e se esteja a pedir d em asiad o d e le n o m om en to. O m elhor ta lvez seja fazer n o v a ten tativa noutra oca siã o .
Interajuda e ajuda mútua Re si M alecki e M onique Pennings
Organizações de utentes A partir d o s an os 7 0 , tem v id o a surgir tod o o gén ero d e in iciativas de cu id ad os d e saú d e da resp on sab ilid a d e d os próprios p acien tes. O o b jectivo é estim u lá -lo s, p ela s m a is d iversas form as, a assu m ir um a m aior resp on sab iliza çã o por si p róp rios, a com u n icar uns co m os outros e forn ecer in fo rm a çõ es e a ssistên cia m útua e a m elhorar a sua situ ação. M uitas d essa s in iciativ a s têm co n d u zid o à criação d e orga n iza çõ es de p acien tes, h ab itu alm en te p e sso a s co m d oen ças ou p rob le m as sem elh an tes. E stão tod os n o m esm o b arco, p od en d o utilizar o co n h ecim en to adquirido co m as su as próprias ex p eriên cia s p esso a is 301
em ap oio e b e n efício d os sofred ores seu s a sso cia d o s. E stas organ iza ç õ e s p od em contribuir para facilitar a tarefa de aprender a v iv er co m um a d o en ça ou co m um a d ificu ld a d e e sp e cífica . O s cu id ad os p ro fis sion ais n ão v ã o geralm en te m u ito lo n g e n este cam po; os serv iço s prestadores d e cu id ad os d e saú d e ten d em a prestar m ais aten ção aos factores m éd ico s e b io ló g ic o s, dan do m ais valor à d o en ça do qu e à p e sso a p or ela afectad a. P or outras palavras, a ajuda q u e prestam não relacion a a ex p eriên cia d o p a cien te co m a sua percep ção. O estím u lo à form ação d e grup os d e p acien tes é, m uitas v e z e s, p rop orcion ado p ela in sa tisfa çã o q u e sen tem perante o s serv iço s pro fissio n a is e a resp ectiva carên cia d e resp ostas. T am b ém é verdade que n os ú ltim os 2 0 anos se deu um co n sid erá vel progresso n o ca m p o da d em ocratização e da em an cip ação; cad a v e z m ais, as p e sso a s a ssu m em e e x ig e m um grau cre sce n te d e resp on sab iliza çã o p esso a l p ela sua própria saúde e d oen ça. D eixaram de estar com p letam en te à m ercê, apen as, da cap acid ad e técn ica d o s p rofissio n a is esp ecia liza d o s. A s diversas o rg a n iza çõ es d e utentes qu e h oje ex istem têm , ev id e n tem en te, o s seu s próprios o b je ctiv o s e sp e c ífic o s, e as a ctivid ad es q u e d esen v o lv em variam em fu n ção d e sses m esm o s ob jectivo s. N o entanto, todas ela s têm em com u m algu n s o b je ctiv o s im portantes: pôr as p es soas em con tacto um as co m as outras, facilitar o ap oio m útuo, d iv u l gar in form ação e defen d er o s in teresses d os seu s a sso cia d o s.
A Fundação Ressonância (W eerk lan k ) H á 5 an os atrás, surgiu na H olan d a um a organ ização de âm bito n acion al a q u e fo i dado o n o m e d e R esson â n cia . E ssa F un dação d e d ica -se à d efesa d os in teresses co m u n s das p esso a s q u e o u v em v o z e s, in d ep en d en tem en te de sofrerem ou não de d o en ça psiquiátrica. H oje em dia con ta co m cerca d e um m ilhar de a sso cia d o s, m u itos dos q u ais são a m ig o s ou fam iliares d e p e sso a s q u e o u v em v o zes; inclui tam bém outras partes interessad as, c o m o sejam prestadores de cu id ad os de saúde. E p o is um a a sso cia çã o fran cam ente m ista. 302
A R esson â n cia abran ge um leq u e bastante m ais va sto e co m p lex o de crenças e atitud es d o q u e outros gru p os even tu a lm en te m a is p reo cu pados co m pertu rb ações d e tipo so m ático m ais evid en te. P or e x e m plo, algu n s m em b ros da R esso n â n cia en caram a escu ta d e v o z e s co m o algo d e en riq u eced or, en q u an to outros ach am qu e as v o z e s sã o sin to m as de um a doen ça; algu n s o u vid ores d e v o z e s acham a ex p eriên cia m uito d ifícil, en q u an to ou tros se sen tem p erfeitam en te à v o n ta d e co m ela. E stas d iscrep ân cias en tre a sso cia d o s fa zem da R esso n â n cia um a a sso cia çã o plen a d e vitalid a d e. E ev id en te q u e tem d e ex istir um traço de un ião m uito sig n ific a tiv o para ligar elem en to s tão díspares: o tabu que contin ua a rodear o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s p erm a n ece um problem a com u m a to d o s, seja qual for a ex p eriên cia e a p ersp ectiv a p essoal de cada um . Isto sig n ifica q u e to d o s o s m em b ros da R e s s o nância têm de m anter a tolerân cia uns para co m o s outros e contin uar abertos às ex p eriên cia s e id eia s d e cad a um ; recon h ecer q u e cad a um tem a sua própria p ersp ectiv a p esso a l acerca d o fen ó m en o e q u e, por co n seg u in te, cada in d iv íd u o d everá encontrar a sua própria estratégia para lidar co m a situ ação. A F undação R esso n â n cia esfo rça -se por p rom over a a ceita çã o e a em an cip ação das p e sso a s q u e o u v em v o z e s, por lutar contra o sen ti m en to de iso la m en to q u e, m uitas v e z e s, se v em juntar a tod as as d ificu ld ad es d os o u v id o res d e v o z e s, e aju d á-los a lidar efica zm en te co m a exp eriên cia. A F u n d ação p rom ove tod o o tip o d e activ id a d es que v ise m e sse s o b je c tiv o s. O rgan izou um a red e d e co n tacto e de ap oio m útuo através d e u m a lin h a telefó n ica e d isp o n ib iliza gru p os de ajuda m útua a to d o s o s m em b ros in teressad os n este tipo d e ap oio. D ivu lga in form ação e o rien ta çõ es sobre o fen ó m en o da escu ta de v o z e s, através d e u m a rev ista trim estral, d e en trevistas na telev isã o , na rádio e na im pren sa escrita e , ainda, da p u b licação d e fo lh e to s e brochuras; distribui tam b ém in form ação p e lo s h osp itais p siq u iátricos e p e lo s cen tros d e saú d e m en tal com u n itários. N o intuito d e estreitar os la ç o s entre o s seu s m em b ros, a F un dação lev a a e fe ito reu n iões so cia is de c o n v ív io . P resen tem en te, a F u n d ação está a m ontar um a n ova rede d e ajuda a o u v id o res d e v o z e s e tom a parte em tod o o tipo de c o m issõ e s e o rg a n ism o s co n su ltiv o s, co m o o b jectivo d e p rom over 303
o s in teresses d o s seu s m em b ros n o se io dos serv iço s prestadores de cu id ad os d e saúde. O s grup os d e ajuda m útua p o d em dar um im portante contributo para o p r o c esso d e aprender a lidar co m as v o zes. P or isso , esta S ecçã o tratará da d escriçã o porm enorizada d este tipo d e gru p os, sobretudo co m b ase na ex p eriên cia de R esi M a leck i, a qual tem esta d o e n v o l vid a, há m ais de três anos, na co n d u ção de grupos d e ajuda m útua, tirando partido das co m p etên cia s e da com p reen são q u e adquiriu co m a sua própria ex p eriên cia p esso a l.
Grupos de ajuda mútua E u, R esi M a leck i, c o m e c e i por fazer form ação co m o líd er d e gru p os d e d iscu ssã o num a organ ização d ed icad a aos p rin cíp ios da ajuda m útua, quer para d o en ça s fisio ló g ic a s quer para d o en ça s p sic o ló g ic a s. P resen tem en te, esto u a liderar três grup os de ajuda m útua n o Sul da H oland a. C om a m inh a ex p eriên cia n este tipo de trabalhos, aprendi qu e há um b o m nú m ero d e a sp ectos que é im portante ter em con ta na criação e co n d u çã o d e um grupo de d iscu ssã o . N esta S e c ç ã o gostaria d e analisar algu n s d o s a sp ectos que m e parecem m a is sig n ifica tiv o s.
Objectivos A o fundar qualquer grupo é im portante ser claro acerca das m o tiv a ç õ e s e d o s o b je ctiv o s. O s m eu s o b jectivo s p e sso a is eram e são: - S er escu tad a, con sid erad a e lev ad a a sério; - Partilhar ex p eriên cia s co m p esso a s na m esm a situ ação e , a ssim , escla recer o sig n ifica d o das v o zes; - E sbater o m ed o q u e rodeia a escu ta de v o zes; - E ncontrar m aneiras de v iv er em paz co m a exp eriên cia; - T razer a fa m ília e o s a m ig o s de encontro aos o u v id o res de v o z e s e aos seu s p rob lem as.
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Motivações É igu alm en te im portante qu e cada m em b ro seja claro quanto às suas in ten çõ es ao fazer parte d e um grupo d e ajuda m útua. E ssas inten ções são m u ito variad as, m as em geral a p articip ação assen ta em m o tiva çõ es d o género: - G anhar confian ça: - Q uebrar o isolam en to; - F avorecer a cam aradagem co m outras p e sso a s qu e com p reen d em a experiên cia; - A prender co m o s outros; - Encontrar apoio; - A prender a lidar co m as v o zes; - A prender a co n h ecer-se a si m esm o co m a ajuda d os outros; - T om ar co n h ecim en to da grande varied ad e d e exp eriên cia s in d i viduais; - A prender a falar d os seu s p rob lem as co m a fa m ília e o s am ig o s.
Grau de abertura do grupo A lg u n s gru p os d e d iscu ssã o sã o reservad os a ou v id o res d e v o zes. P orém , n o grupo d e L im b u rgo qu e eu lid ero, o p to u -se por aceitar a participação d e fam iliares e am ig o s. T rata-se d e um grupo aberto; p o r o u tr a s p a la v r a s , q u a lq u e r p e s s o a p o d e p a r tic ip a r e m qualquer m o m en to , e o grupo seg u e a su a m archa. A quantidade de m em b ros varia: há um n ú cleo duro d e p articip an tes a ssíd u os d e lo n ga data, surgem n o v a s a d m issõ es d e v e z em qu an d o, e algu n s m em bros, aqui e além , d eix a m o grupo. N o grup o e x iste um a grande d iversid ad e d e p ersp ectivas e d e exp eriên cias por parte d os ou vid ores de v o z e s. N o en tanto, ach o q u e as p e sso a s se id en tificam facilm en te um as co m as outras e q u e, acim a d e tudo, o s resu ltad os d esta abor dagem têm sid o m u ito p o sitiv o s.
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Como conduzir uma reunião N a con d u ção das reu n iões de gru p os d e d iscu sã o há vários asp ectos a considerar. N as reu n iões que d irijo, sem pre que um n o v o m em bro está p resente, cada um d os p articip an tes fa z a sua própria apresenta çã o e d iz qualquer c o isa sobre a sua ex p eriên cia p assada e presente d e escu ta de v ozes: Q uando e c o m o co m eço u ? O q u e é que se estava a passar n e ssa altura? C om o é q u e as co isa s evolu íram ; co m o é que ela s m elhoraram ou se agravaram ? F o i seg u id a algu m a m ed icação? P ed iu ou receb eu algu m a form a d e ajuda? Q ual a situação neste m om en to? É p reciso ter em conta, ainda, as n e cessid a d es e ex p ecta tiva s d es ses n o v o s m em b ros, o que im p lica q u e, quando estão presentes na reu nião m u itos n o v o s m em b ros, e ste tem p o d ed icad o à partilha de ex p eriên cia s tem de ser n ecessaria m en te abreviado. N estes ca so s, os m em b ros m ais an tigos fa zem um apan hado geral do que a con teceu no grupo n os m eses m ais recentes. U m a das vantagen s d este procedim ento é dar oportunidade ao s m em b ros m a is an tigos d e se exprim ir e de debater quaisquer q u estõ es que o s esteja m a preocupar. R eserv a -se sem p re algu m tem p o para reflectir sob re a situação do grupo e para analisar a m aneira co m o as co isa s estã o a correr, por form a a perm itir q u e as p esso a s discu tam co m m a is p rofun didade as frustrações e d ificu ld a d es que estão a atravessar e sugiram o que é n ecessário fazer para as integrar m ais fa cilm en te n o grupo.
-
A escu ta d e v o z e s e a ca p a cid ad e d e con cen tração; A escu ta d e v o z e s e o s o b stá cu lo s à a scen sã o so cio p ro fissio n a l; A ex p eriên cia p e sso a l d e escu ta d e v o zes; V iver co m um a p e sso a q u e o u v e v o zes.
Trabalho de casa N u m a reunião d e grup o n e m sem p re é p o ssív e l tratar d e tudo o qu e há a tratar. M uitas v e z e s , é n ecessá rio q u e o s m em b ros do grupo d esen v o lv a m em ca sa d eterm in ad as tarefas, q u e serão tratadas p e lo grupo posteriorm en te. E x em p lo s d e algu m as d essa s tarefas: - F azer a recolh a b ib lio g rá fica d e cita çõ es, p oem as e ca n çõ es qu e cada um ach e p articu larm ente sig n ifica tiv a s para si próprio e q u e p ossam ser um a fo n te d e in sp iração e d e ajuda para outras p e s soas; - U m a prova d e avaliação: exp rim ir a sua ex p eriên cia d e p artici p ação n o grupo através d e um p rojecto ou plano; - F azer um a rev isão crítica d e um livro ou de um film e; - Inventariar as suas q u alid ad es p esso a is; - T en são e relaxam ento: q u e sig n ifica m para si e qu e sen tim en tos lhe p rovocam ?
Conclusão das reuniões Temas das reuniões A lgu n s ex em p lo s de tó p ico s qu e p o d em ser discu tid os: 306
M ed icam en tos e seu s efe ito s secu nd ários; A escu ta de v o z e s e a a ctiv id a d e profission al; A escu ta d e v o z e s e a vid a so cia l diária; A escu ta de v o z e s e o rela cion a m en to íntim o; A escu ta de v o z e s e as a ctiv id a d es de lazer;
A s reu niões encerram h ab itu alm en te co m um b reve pon to da agend a dedicado: - ao plan eam en to - D e c is õ e s c o le c tiv a s sob re o s assu n tos a tratar na próxim a reu n ião, o q u e im p lica determ inadas o p çõ es e o esta b elecim en to d e prioridades; - à a valiação - O q u e é q u e o s particip an tes ganharam c o m o debate? O qu e é q u e e le s ach am d aq u ilo q u e se passou?
307
N a m inha ex p eriên cia de d o is an os e m eio c o m o líd er de d iscu ssã o , tiv e o ca siã o de constatar alg u m a p erfeiçoam en to num certo núm ero d e ap tid ões que tinha adquirido na fa se de form ação. O m ais im por tante fo i a m elhoria da m inh a aptidão para:
Ser um líder d e d iscu ssã o b em preparado é a lg o qu e ultrap assa em m uito a m era co n d u çã o d o s d eb ates, por m ais fundam ental q u e essa tarefa seja. C o n clu o da m in h a própria exp eriên cia que sã o tam b ém im portantes as seg u in tes tarefas:
- escu tar o próxim o; - p rom over o debate, por ex e m p lo fazen d o as perguntas m ais ade quadas; -a p e r c e b e r -m e se um particip an te com p reen d eu correctam ente aq u ilo que outro disse; -o b s e r v a r o b jectivam en te o fu n cion am en to d o grupo; - analisar sen tim en tos sem p re q u e necessário; - d iscip lin ar o debate; - prestar aten ção ao s sin a is n ão verb ais que o grupo vai em itindo; - avaliar a situação d o grupo.
- O rganizar o grupo: p o d e in clu ir-se n esta q u estão o p rob lem a do esp a ço para as reu n iões; -R e c r u ta m e n to d e n o v o s m em b ros; - Preparar as reu n iões; m arcar a agenda; d efin ir a ordem d e traba lh os e o s tem as a d iscu tir, quando n ão tenham fica d o co m p leta m en te d efin id o s n a reu n ião anterior; - C ond uzir o d eb ate durante a reunião; - O rganizar as actas, etc.; - E stim ular e p rom over a d iscu ssão; - A presentar as d iv ersa s estratégias d e lidar co m as v o zes; - D iscu tir as p o ten cia lid a d es de cad a um a delas; - A nalisar e reflectir sob re os resu ltad os ob tid os p elo s d iv erso s participantes co m as d iferen tes estratégias; - O bservar o fu n cio n a m en to d o grupo; - P ôr as p e sso a s à v o n ta d e e , co m su a au torização, com u n icar aos seus terapeutas as ten sõ e s particularm ente graves qu e esteja m a atravessar; - P roporcionar um e sp a ç o d e debate sereno; por e x e m p lo , n ão p erm itin do a d isc u ssã o d e assu n tos q u e d esp ertem a n sied ad e, n om ead am en te falar d e su icíd io; - F azer g ra v ações d o s debates; - M anter co n tacto s c o m outros líd eres d e d iscu ssã o e resp ectiv as organ iza çõ es.
E stas aptid ões e cap acid ad es são ú teis em qualquer grupo d e d is cu ssã o . N o ca so de um grupo esp e cifica m en te v o ltad o para o debate da p rob lem ática da escu ta d e v o z e s , esto u em crer q u e se tom ará tam bém n ecessário que o líd er seja a lg u ém que o u v e ou o u v ia v o z e s e qu e tenha aprendido a aceitar a exp eriên cia e a v iv er co m ela. E v id en tem en te, é tam bém im portante ter um co n h ecim en to vasto e co m p leto do fen ó m en o glo b a l da escu ta de v o z e s. E m esp ecia l, é p reciso estar fam iliarizado co m a literatura ex isten te sobre o tem a, quer seja a d e autores lig a d o s ao sistem a ortod oxo de cu id ad os de saúde quer seja a de autores q u e p rop õem alternativas a e sse sistem a. E essen cia l estar co m p leta m en te fa m iliarizad o quer co m as ex p eriên c ia s d o s co m p a n h eiro s so fred o res qu er co m as e x p e cta tiv a s d o s prestadores de cu id ad os. E p r eciso , ainda, estar recep tivo a participar em jornadas e co n g resso s d e d ica d o s à escu ta d e v o z e s. E m sum a, o n o sso co n h ecim en to do fen ó m en o da escu ta de v o z e s d ev e expandir-se m u ito para lá da n o ssa própria ex p eriên cia p esso a l. 308
E m resu m o e para co n clu ir, a m inh a exp eriên cia co m gru p os d e ajuda m útua fo i d e gran d e u tilid ad e para o s esfo rço s qu e tiv e de em preender para c o n seg u ir aceitar a escu ta d e v o z e s. A ssim , aprendi a lidar co m essa outra realid ad e d e um m o d o m ais agradável, con d u zin d o -m e a um a rela çã o h arm on iosa co m as m inh as v o zes. 309
N ão se d e ix em atrapalhar. P restem m uita aten ção ao qu e v o s diz a v o ssa ca b eça , m as nu nca d escu id em o qu e v o s d iz o v o sso coração!
Concentrar-se nas vozes Gill Haddock e Richard Bentall A in v estig a çã o v em sugerin do que e x iste um a vasta gam a d e abor d agen s p sic o ló g ic a s q u e p od em ser ú teis às p e sso a s qu e sofrem de a lu cin a çõ es au d itivas. U m a rev isão ex a u stiv a d e tod as e ssa s aborda g en s, feita em 1988 por S lad e e B en tall, dem on strou qu e ela s tendem a d istribuir-se por três categorias principais: - T écn ica s d e d istracção das v o zes; - T écn ica s d e con cen tração nas v o zes; - T écn ica s d e co n tro le da ansiedad e. A s té c n ic a s d e d istra cçã o das v o z e s in clu e m a u tiliz a ç ã o de w alkm ans estéreo, a ex ecu çã o de jo g o s d e qu eb ra-cab eças, o e n v o l v im en to em a ctiv id a d es so cia is - em resu m o, qualquer tipo d e co m portam ento q u e sirva para afastar o p en sam en to d o o u v id o r d e v o zes das v o z e s q u e o u v e. P or outro lad o, as técn icas d e co n cen tração nas v o z e s im p licam , d e algu m m o d o , u m p roced im en to in v erso , isto é, prestar o m á x im o de aten ção às v o z e s q u e se o u v em e registar m eto d icam en te tudo o q u e e n v o lv e a sua escu ta , n om ead am en te aqu ilo que ela s d izem . T o d o s estes m éto d o s parecem ca p a zes de ajudar as p e sso a s a lidar m elh or co m as v o z e s que o u v em , m as o s m eca n ism o s da sua actuação p erm an ecem o b scu ros. E stam os em crer que as técn ica s de distracção das v o z e s (b asead as n o p ressu p osto d e q u e as v o z e s tenderão a d esa parecer por co m p leto se forem evitad as durante o tem p o su ficien te), em b ora p o ssa m ser efic a z e s n o curto prazo, acabam por deixar de lado o con teú d o sub jacente às v o z e s e , por isso , é im p rovável q u e ofereçam q u alq u er s o lu ç ã o du radou ra para as d ific u ld a d e s sen tid a s p e lo s ou vid ores. A in v estig a çã o su gere qu e, em geral, as a lu cin a çõ es audi310
livas têm um sig n ifica d o ou sen tid o e sp e c ífic o qualquer para aq u ele que o u v e v o zes; d este p on to d e vista , só as técn ica s q u e se dirigem exp ressam en te aos sig n ifica d o s das v o z e s têm p o ssib ilid a d e de cap a citar o ou vid or para ganhar d om ín io sob re a ex p eriên cia enquanto parte de si m esm o . T u do isto p on derad o, d e se n v o lv e m o s um a técn ica terap êutica ba seada na con cen tração nas v o z e s, técn ica através da qual o p acien te é ajudado a exp lorar o con teú d o, o d e se n v o lv im en to e o sig n ifica d o das suas v o z e s no con tex to da relação terap êutica. Isto co n se g u e -se por m eio d e e x erc ício s graduais e p ro g ressiv o s, c o n c eb id o s d e form a a tom ar o p ro cesso o m en os am eaçad or p o ssív e l para o p acien te. O s prim eiros e x erc ício s co n sistem em o p a cien te prestar aten ção às v o zes e d escrever as características física s d ela s, co m o o v o lu m e, a lo c a li zação, o tom e gén ero. P osteriorm en te, p e d e -se ao p acien te q u e relate com ex a ctid ã o aq u ilo qu e as v o z e s lh e d izem e q u e d ê esp ecia l aten ção a to d o s o s p en sam en tos ou id eias q u e lh es co stu m a m estar a sso ciad os, o s q u ais pod erão ind icar o sig n ifica d o q u e as v o z e s têm para ele. O o b jectiv o geral d esta abord agem , co m a ajuda d e um a p orm e norizada d iscu ssã o , é habilitar a p e sso a a lidar m elh or co m as v o z e s, iden tificar a sua verd ad eira o rigem e atingir u m p r o c esso d e con trole p essoal sobre ela s. S e o d o m ín io das v o z e s é perturbador para a p e sso a , é im p ortan te an alisar o seu sig n ific a d o , c o m o fa zem os terapeutas co g n itiv ista s qu e trabalham co m o s p en sa m en to s n ega tiv o s. O b reve estu d o d e ca so q u e se seg u e (extraíd o d o n o sso próprio projecto de in v estig ação sob re o tratam ento das a lu cin a çõ es, su b si diado pelo M edicai R esearch C ouncil d o R ein o U n id o ) ilustra as estratégias gerais en v o lv id a s. Senhor A
O senhor A tinha 44 anos de idade e sofria de alucinações auditivas há mais de dez anos. Estava empregado e vivia num lar dirigido pelo Exército de Salvação. Embora fizesse medicação neuroléptica há muitos anos, a in tensidade e a frequência das vozes mantinham-se praticamente constantes; quando o observámos pela primeira vez, ouvia vozes todos os dias. Expe311
rimentava as vozes como provindo do exterior de si próprio, vozes que podiam surgir nas mais diversas circunstâncias. O senhor A descrevia o conteúdo das vozes - que falavam na terceira pessoa gramatical - como sendo muitas vezes hostil e desagradável (por exemplo, “Vamos fodê-lo”; “O gajo não presta”). Uma voz particularmente frequente era a de um amigo íntimo; ocasionalmente, ouvia outras vozes que provinham do aparelho de televisão. O senhor A foi tratado com técnicas de distracção durante seis sessões, mas isso só serviu para agravar as alucinações e a ansiedade associada. Tentou-se então a técnica de concentração nas vozes, nos termos atrás des critos. Esta técnica revelou que o conteúdo das vozes do senhor A era bastante inócuo e não se dirigia necessariamente a ele (por exemplo, “O gajo não presta" pode muito bem referir-se a qualquer pessoa); no entanto, os pensamentos e reacções do senhor A convenciam-no de que era dele que as vozes estavam a falar. Ora, há determinadas circunstâncias em que isso é mais provável. Por exemplo, os quartos do lar onde estava hospedado esta vam longe de ser à prova de som e, muitas vezes, acontecia-lhe ouvir ruídos provenientes do hóspede do quarto ao lado, que resmungava e falava quando estava a dormir; o senhor A interpretava esses ruídos como sendo o seu vizinho a falar dele. Neste exemplo, parecia interpretar como vozes os seus próprios pensamentos e desconfianças, transformando-os num processo audi tivo real. Não seria inverosímil se as vozes oriundas do aparelho de televisão resultassem dum processo semelhante. O senhor A via sempre televisão à noite, quando estava deitado na cama, e muitas vezes deixava-se adormecer com a televisão ligada; assim, é provável que pelo menos algumas das suas experiências fossem hipnagógicas ou hipnopômpicas. Ao reconhecer que as vozes eram fruto dos seus próprios processos de pensamento, o senhor A começou a sentir que era capaz de aprender a identificar e a con trolar as vozes concentrando-se nelas. E assim consegue agora aceitar as suas experiências alucinatórias, embora saiba que nem sempre conseguirá ter um controle absoluto sobre os seus pensamentos (e, já agora, quem é que consegue?). A pouco e pouco, a frequência com que o senhor A relata as suas expe riências em termos de vozes baixou praticamente a zero, embora, quando está sob tensão, tenha, aqui e ali, momentos em que se interroga sobre a origem de algumas das suas percepções. Compreende-se que a abordagem de distracção das vozes tivesse dado pouco resultado no senhor A: ao fim ao cabo, só se conseguiram resultados quando se passou a prestar uma cuidada atenção às vozes que ele percebia como oriundas de fora e às crenças que proporcionavam aquilo a que ele chamava vozes. 312
Técnicas de controle da ansiedade Jack Jenner Princípios gerais In felizm en te, n ão há regras claras sob re a m aneira d e lidar co m as v o zes n em sob re o qu e fazer às p e sso a s q u e as ou v em . C on tu d o, há alguns p rin cíp ios gerais q u e p o d em ser ú teis se en carad os co m a d evid a aten ção. D e acord o co m as lin h as gerais d esta S e cçã o , v am os cham ar-lhes: -
A titude; Penetrar n o m u n d o do O utro; C on tra-estim u lação p ositiva; M otivação; R eg isto sistem ático; E xp o siçã o .
Atitude A d e fin içã o d estas p e r c e p ç õ e s c o m o fe n ó m e n o s sobren aturais im p lica praticam en te qu e as p e sso a s q u e as exp erim en tam se sin tam isolad as. O tabu qu e rodeia esta s ex p eriên cia s (a lu cin a çõ es ou o qu e q u iserm os ch am ar-lh es) d esen co ra ja a sua d iscu ssã o aberta. P or m ais d ifícil que seja, a criação d u m a atm osfera e dum cen ário cap azes de elim in ar essa barreira é e sse n c ia l a qualquer ten tativa d e prop orcionar co m p reen são e ap oio.
Penetrar no mundo do Outro P or m ais d elirantes qu e a ch em o s o s o u vid ores d e v o z e s, a verd ad e é q u e as exp eriên cia s em ca u sa sã o para e le s um a realid ad e c o n sis tente. A ssim , ao lid arm os c o m e s s e fen ó m en o , andarem os b em se 313
aceitarm os que essa realid ad e ex iste, o que e x ig e da n o ssa parte um a pronta d isp o n ib ilid a d e para aceitarm os que o ou vid or é, de p len o direito, o senhor da su a própria ex p eriên cia e que estejam os c o m p le tam en te abertos ao p r o c esso de aprend izagem da natureza da sua realid ad e e d o seu sofrim en to. A q u eles que não têm ex p eriên cia de ou vir v o z e s só p o d em fazer ju íz o s indirectos: para obter a in form ação q u e se p retende é n e cessá r io recorrer aos próprios o u vid ores d e v o z e s. A s p esso a s em d ificu ld a d e p od em tentar resp on sab ilizar em parte os outros p ela sua situação; n o ca so d os ou vid ores de v o z e s , essa ten d ên cia agrava-se q u an d o as p e sso a s que o s rodeiam o s con sid eram anorm ais, isto é, em certa m ed id a irresp on sáveis p e lo com p ortam en to q u e têm . N a n o ssa própria ex p eriên cia d escob rim os que a m aior parte d os o u vid ores d e v o z e s é perfeitam en te cap az de assu m ir a resp on sa b ilid ad e d os seu s a cto s. É m esm o n o ssa c o n v icçã o que serão tanto m ais cap azes de lidar b em co m as v o z e s quanto m ais forem estim u lad os a assu m ir essa resp on sab ilid ad e.
Exemplos A senhora Pelupessy, de 30 anos de idade, ouve, várias vezes por semana, a campainha da porta tocar a meio da noite. Nunca ninguém ouviu esse toque, mas a verdade é que a senhora se assustava e estava sempre a pedir ao companheiro que fosse ver o que era. Ele nunca viu ninguém, mas ela queixava-se de que ele não teria visto bem e mandava-o lá outra vez, para ter a certeza. O terapeuta confrontou-a com a inutilidade desse procedimento e pediu-lhe que, de futuro, quando ouvisse a campainha, fosse lá ela. Disse-Ihe, ainda, que o companheiro poderia acompanhá-la, se ela tivesse muito medo de ir sozinha, mas aconselhou o companheiro a nunca aceitar ir à porta sem ela. A senhora acabou por fazer o que o terapeuta lhe indicou e os barulhos desapareceram ao fim de uma semana. Annloes, uma moça de 16 anos, ouve a voz de um namorado secreto e pede aos pais que procurem o rapaz nas redondezas. Quando os pais se recusam a fazê-lo, ela acusa-os de não gostarem dela e torna-se agressiva. O terapeuta fez-lhe ver que ela era a única pessoa que ouvia o rapaz, pelo que deveria reconhecer que esse era, antes de mais nada, um problema seu e que, por isso mesmo, lhe caberia proceder a essa busca. Pediu-lhe que 314
considerasse a hipótese de estar enganada, mas que, sempre que estivesse realmente convencida de que estava a ouvir o seu namorado e tivesse uma urgente necessidade de o procurar, podia fazê-lo. Com o auxílio da medica ção, que aceitou tomar, recuperou ao fim de 15 dias. C ontra-estim ulação po sitiva P or v e z e s a au to-estim a p o d e estar tão em b a ix o e o s p en sa m en to s n ega tiv o s p od em ser tão g raves e tão d om in an tes q u e é n ecessário preparar o terreno para a a p licação d e técn icas d e con tra-estim u lação positiva. A n tes de o fazer é e ssen c ia l ter a certeza ab solu ta d e q u e a técn ica proposta é a ceite por todas as p e sso a s en v o lv id a s, isto é , o ou vid or de v o zes e a sua fam ília: todas as p e sso a s em cau sa sã o con v id a d a s a m od ificar o seu com p ortam en to, a fim d e ajudar na a d esão à técn ica e à sua op tim iza çã o .
Exemplo A senhora Wing era uma mulher gravemente deprimida que ouvia vozes que a acusavam de ser um fardo para a sua família. Ela não reagia às observações positivas nem às tentativas de empatia que lhe eram dirigidas e não encontrava nada de positivo para dizer a respeito de si mesma; os esforços no sentido de encorajar a sua auto-estima apenas serviam para lhe agravar os sentimentos de auto-recriminação. Na preparação para a contra-estimulação positiva, foi-lhe perguntado se ela albergava no seu íntimo alguma má intenção, o que, como era de esperar, a senhora Wing negou. E foi esta negação que lhe deu a oportunidade de aceitar a técnica: “Não tenho quaisquer más intenções.” E desse modo aceitou uma lista de frases do género “Não tenho...”, “Não sou...” P o d em o s incorporar frases co m o estas num a in terven ção terapêu tica com portam en tal a qu e cham aria con tra-estim u lação p o sitiva . C ada um a d essa s frases é escrita nu m cartão esp ecia l. S em p re q u e o pa cien te o u v e um a v o z n egativa, baralha o s cartões e lê em v o z alta as frases p o sitiva s q u e n e les con stam a seu resp eito. 315
Motivação O s sen tim en tos de desam p aro e d esesp ero p od em levar à inércia e à apatia, e aq u ele q u e cair nu m estado d e sses precisa d e um a n o v a m otiva çã o para qualquer a cçã o . U m a m aneira sig n ifica tiv a de dar um a m otiva çã o directa e ad eq uad a é forn ecer in form ação concreta sobre a escu ta d e v o z e s, isto é , sob re as d iversas form as d e aparecim en to, as d iversas teorias ex p lica tiv a s e as p o ssív e is via s de m anejo e trata m en to. Q ualquer tentativa d e m o tiva çã o e x ig e um a d efin içã o p recisa dos o b jectivos; quando este s n ão são claros é m uito fá cil qu e, em c o n se q u ên cia d e co n selh o s con trad itórios, a situ ação se torne con fu sa. U m a das p o ssív e is m aneiras d e criar m o tiva çã o é esclarecer o s o b je ctiv o s do tratam ento, através d a d iv isã o das v o z e s em duas categorias, p o sitivas e n egativas. F a zen d o isto, d e fin e-se im ediatam ente um a estra tégia d e p riv ilég io das v o z e s p o sitiva s e de m in im ização d o im p acto das v o z e s negativas. V a le a pena ter p resen te q u e quando um a p esso a está m uito a n sio sa ou m u ito paranóide ten d e a sen tir-se am eaçada por determ inadas fra ses ou in ten ções. N estes c a so s, é p referível incu tir-se a m o tiva çã o por m eio s in d irectos - por e x e m p lo , fazer perguntas em v e z de afirm a ç õ es. E ssas perguntas terão de ser feita s co m o n ecessário tacto, para se evitar qualquer p o ssib ilid a d e de fuga.
Exemplo No caso do registo sistemático (tratado a seguir), que dá reconhecida mente bons resultados na diminuição da frequência da experiência de ouvir vozes, é melhor não se perguntar se a pessoa gostaria ou não de fazer os registos; isso poderia dar azo a uma recusa imediata, o que poderia ser prejudicial para o seu bem-estar psicológico. Esta situação pode evitar-se centrando a conversa na negociação da melhor ocasião de dar início ao registo sistemático, de estabelecer o seu calendário e de saber em que medida é aplicável a todos os aspectos da experiência do ouvidor de vozes, etc. E de notar que, neste tipo de abordagem, a escolha não se pode fazer entre o sim e o não mas, simplesmente, entre o mais e o menos. Por exemplo, no caso 316
de uma senhora que ouvia vozes, mas apenas em certas divisões da sua casa, pedimos-lhe que escolhesse a divisão que achasse melhor para iniciar o registo sistemático. Registo sistemático e inquérito pormenorizado M u itos ou v id o res d e v o z e s, e em geral a m aior parte d os p acien tes com a lu cin a çõ es, g o sta m d e ser inq uiridos em porm enor sob re as suas exp eriên cias. N a realid ad e, o s o u vid ores d e v o z e s p arecem m uito ávid os de falar d as su as p e rcep çõ es, d esd e qu e o en trevistad or ev ite tudo o que p o ssa sugerir um interrogatório e na co n d içã o d e serem seguidas as regras n orm ais da co n v ersa çã o (por e x em p lo , iniciar a con versa co m tem as q u e fa cilitem um a interacção d escon traíd a e p ros seg u i-la co m tó p ico s q u e escla reça m os p on tos qu e v ã o fica n d o m en os claros). O s o u v id o res d e v o z e s referem , m uitas v e z e s, q u e o fa cto de lhes ser pedida um a d escrição detalh ada da sua ex p eriên cia o s faz sentir que estão a ser lev a d o s a sério. P or outro lad o , isso fá -lo s desejar colaborar m u ito m ais co m o interlocu tor no reg isto sistem á tico da natureza, freq u ên cia e duração das v o z e s, das circu n stân cias em que elas ocorrem , da m aneira co m o eles (e o s outros) reagem a elas. E ste tipo d e reg isto sistem á tico por parte d o o u vid or e tam bém , idealm ente, por outras p e sso a s, p od e proporcionar in form ação d e cisiv a para a esco lh a da in terven ção terap êutica m ais adeq uad a. O registo sistem ático sim u ltân eo por parte d o ou vid or (isto é , fe ito sem p re que e quando escu ta as v o z e s ) é d e particular im portância; d e fa cto , para alguns autores, e ssa é a ú n ica m od alid ad e d e registo q u e se m ostrou efica z na d im in u ição da freq u ên cia d as ex p eriên cia s alu cin atórias. Para m uitos autores, o reg isto retrosp ectivo d iferid o p arece ser in efi caz e p od e até agravar o s sin tom as. A d iv isã o das v o z e s nas categorias insultuosas, neutrais e am istosas p o d e con stitu ir um a referên cia útil e pod e ter um e fe ito m otivad or q u e aum enta a e fic á c ia d o p rocesso de registo sistem á tico e fa cilita a aceitação d e outros tip o s d e inter ven ção. O registo sistem á tico p o d e con stitu ir um a fon te extrem am en te útil de inform ação relevan te; igu a lm en te v álid a é a a ssistên cia q u e p od e 317
prop orcionar ao s esfo rço s dos o u vid ores de v o z e s n o sen tid o d e ga nharem alg u m sen tim en to d e d om ín io e co n tro le da sua situação.
Exemplo John é um rapaz de 24 anos de idade que começou a ouvir vozes há 8 anos. Aí vozes eram de tal modo terríveis que ele, mesmo no hospital, dava murros na cabeça, partia coisas e ameaçava o pessoal e os outros pacientes. Uma das vozes ordenava-lhe que se auto-agredisse arremessando-se contra uma porta de vidro, saltando da janela, etc. Estes problemas persistiram apesar dos vários internamentos (um deles compulsivo) no hospital psiqui átrico e das várias abordagens terapêuticas tentadas. Não é de estranhar que as pessoas tivessem medo dele, incluindo os médicos e os enfermeiros. Depois de um pormenorizado inquérito acerca da natureza e da frequên cia das vozes, da sua reacção e da reacção dos outros a elas, pedimos-lhe que registasse todos esses factores ao longo da semana seguinte. Verificous e que as vozes apareciam ao pôr do Sol; por isso, dissemos-lhe que meia hora antes do pôr do Sol se rodeasse de todas as precauções possíveis face a eventuais complicações e que dirigisse a sua agressividade contra o tra vesseiro em lugar de a dirigir contra si mesmo, contra as outras pessoas ou contra as instalações. Demos instruções ao pessoal de enfermagem para que, meia hora antes do pôr do Sol, o lembrasse disso, para o caso de ele poder esquecer-se do que tinha a fazer. Passada uma semana, o comportamento destruidor de John abrandara drasticamente e a partir daí nunca mais teve comportamentos explosivos. Resta saber até que ponto essa mudança de comportamento se ficou a dever apenas e só à intervenção terapêutica, mas o certo é que houve uma mudança radical. Técnicas de registo sistemático D e sd e q u e as instru ções a segu ir sejam adequadas às circu nstân cia s, até o s p acien tes p sicó tico s graves p arecem ca p a zes de fazer reg isto s sistem á tico s. Por ex em p lo , é p o u co prático pretender que um a p e sso a q u e o u v e v o z e s q u ase todo o dia as reg iste d etalh adam ente. P or outro lad o, já pod erá fazer um registo dos p erío d o s em que não as ou v e. A té o s an alfab etos, serv in d o-se de um re ló g io d e xadrez, p od em registar o s p eríod o s em que o u v em v o z e s e o s p eríod o s em que não as o u v em . 318
A form a e a o ca siã o d os p ro cesso s d e a u to-registo têm um a im por tância fundam ental; c o m o já se d isse, só é realm en te e fic a z o registo sim u ltân eo à escu ta das v o z e s. S e o in tervalo entre a ex p eriên cia e o registo é d em asiad o lo n g o , e s s e registo p o d e agravar até as alu cin a çõ es. A lgu n s o u vid ores d e v o z e s p od em ser contrários ao reg isto siste m ático por terem m ed o d e perder as v o z e s p o sitiv a s e o s seu s (b on s) co n selh o s. P essoa lm en te, esto u firm em en te c o n v icto d e qu e cab e ao ou vid or d e v o z e s d ecid ir se se quer v er liv re das v o z e s e d e quais. Q ualquer ten tativa prem atura d e persuadir um a p e sso a a silen ciar v o z e s qu e, em seu en tend er, lh e dão a p o io com p orta o risco d e um a ruptura da relação terapêutica. M as, s e garantirm os q u e n ão haverá nenh um a e sp é c ie d e p ressão, a m aior parte d os p acien tes n ão porá o b je cçõ es ao registo. O s resu ltad os p o sitiv o s do registo sistem á tico , referid os na litera tura, fa v o recem a relação terap êutica e d e se n v o lv e m o s p ro cesso s c o g n itiv o s. T anto o reg isto sistem á tico c o m o o q u estion ário p orm en o rizado que lh e está a sso cia d o fa zem co m q u e as p e sso a s an alisem , av aliem e p on d erem , su b jectivam en te, m as dentro d e u m a m atriz de referên cia, o sig n ifica d o q u e atribuem ao s a co n tecim en to s e às e x p e riências im portantes (ver a S ecçã o C oncentrar-se nas vozes, d este C apítu lo). O auto-registo sistem á tico p od e en carar-se co m o um a in terven ção co g n itiv a qu e e x ig e a con cen tração da a ten ção e que, por isso e indirectam ente, força o con fron to co m a realid ad e. D este m o d o , o pro c e s s o de registo sistem á tico im p lica a e x p o siç ã o in ten siv a às ex p eriên cia s a que d iz resp eito e p od e, por isso , torn ar-se n ecessário utilizar técn ica s de con trole da an sied ad e.
Exposição A eficá cia das técn ica s d e ex p o siç ã o e sa cia çã o no tratam ento de vários transtornos a n sio so s tem sid o d em on strad a con v in cen tem en te. Q uando o terapeuta p rescreve o sin tom a e in cita o ou vid or d e v o z e s 319
a co n v o cá -la s d elib erad am en te*, e s s e p roced im en to p o d e encarar-se co m o um a técn ica de e x p o siçã o . N esta abordagem so licita -se ao pa c ie n te q u e c o n v o q u e c o n s c ie n te m e n te as v o z e s e m m o m e n to s p reesta b elecid os e que tente in ten sificá -la s sem pre qu e elas ocorre rem . O resu ltad o d estes e x e r c íc io s de co n v o ca çã o das v o z e s é , co m o v em sen d o referido na literatura, a red u ção ou m esm o a elim in ação d as a lu cin a çõ es v isu a is e au d itivas. A prim eira tentativa de co n v o c a ç ã o das v o z e s p e lo p acien te d eve ter sem p re lugar na p resen ça d o terapeuta, já q u e as rea cções d este irão ser d e cisiv a s para tranquilizar o p acien te e o s seu s fam iliares. Q u and o as v o z e s são co n v o ca d a s co m êx ito , isso é geralm ente inter pretado co m o o prim eiro sinal d e co n tro le p essoal; se a tentativa é m al su ced id a, há qu em sugira q u e iss o seria um a form a de criar d e lib e radam ente intervalos livres d e v o z e s. D e qualquer m o d o , o s ex erc ício s d e co n v o ca çã o das v o z e s são ca p a zes de induzir sen tim en tos p o sitiv o s d e con trole p esso a l sobre ela s.
Apoio aos familiares Inform ação, instrução e a p o io são elem en to s e sse n c ia is no cu id ad o ao s fa m ilia res. T em sid o d em on stra d o q u e a red u ção d o s n ív e is d e a g ressivid ad e, de crítica e d e e x c e s s iv a p reocu p ação na fa m ília de p acien tes d ep rim id os e e sq u izo frén ico s p od e dar um sig n ifica tiv o contrib uto para a redução das taxas d e recid iva. A ajuda esp ecia liza d a aos fam iliares d e v e in clu ir in form ação sobre a d oen ça , a co n selh a m en to cen trado n o problem a e en sin o de ap tid ões para lidar co m situ a çõ es d e ten são (ver C apítu lo 9, S e c ç ã o Intera cção fa m ilia r). N ão d e v e m o s sub estim ar a d ificu ld a d e das tarefas que cabem aos fam iliares d os ou v id o res de v o z e s . E les estão ex p o sto s a em o ç õ e s contraditórias e extrem am en te p en osas: em bora co m p a d ecid o s perante
* Se as vozes tivessem um enquadramento somático inquestionável, esta técnica seria o equivalente a pedir ao paciente que, por um acto de vontade, provocasse a febre ou a dor. 320
alguém q u e am am , q u e é p erseg u id o p ela s v o z e s e está transtornado pelo d esesp ero , d eb a tem -se tam b ém co m sen tim en tos d e raiva e d e sam paro quando e ssa s v o z e s resvalam para a a g ressivid ad e, a n e g li gência p esso a l ou a a lien a çã o . A s suas atitudes o scila m am p lam en te entre a aceitação e a revolta. O m ais p eq u en o v islu m b re d e esp eran ça d esfalece rapid am ente e m u ltip lica m -se o s sen tim en tos d e culpa; e ste s sentim entos são p articu larm en te p ern icio so s e há qu e fazer tu d o para os neutralizar. N u n ca é d e m a is afirm ar qu e o s fam iliares têm um a grande n ecessid a d e d e a p o io , d e co m p reen são e d e segu ran ça d e q u e não serão cen su rad os. A té o s terapeutas, q u e têm um a aptidão p rofissio n a l para com b in ar o co m p ad ecim en to e a em p atia co m um a o b jectivid ad e d istan ciad a, têm d ificu ld ad e em reagir ad eq u ad am en te e em dar ajuda q u an d o são confrontados co m o s fen ó m en o s p sicó tico s; en tão, co m o é q u e p o d e m os estar à esp era d e q u e o s fam iliares se com p ortem co m o d e v e ser, no m eio d e todas e ssa s e m o ç õ e s e sen tim en tos angu stiantes? S erá essa uma ex ig ê n cia realista ou m esm o hum ana? N a au sên cia d e u m a s o lução fá cil, apen as p o d erem o s resp on d er “S im ”. A co m b in ação de com p ad ecim en to e razão p arece con stitu ir a resp osta qu e m elh or ajuda oferece àq u eles q u e o u v e m v o z e s e estes são, acim a d e tudo, a n o ssa m aior preocup ação.
Provocar o Diálogo entre Vozes Jurrien Koolbergen (terap eu ta) A. P. (clien te)
A s técn ica s d e co n cen tração nas v o z e s e d e m an ejo da an sied a d e têm -se m ostrado particularm ente úteis para proporcionar aos ou vid ores de v o z e s um m aior co n tro le sob re as su as v o z e s no aqui e n o agora. A s abordagens ligad as ao m an ejo da an sied ad e são co n ceb id a s, a ci ma d e tudo, para reforçar o p od er d e ex p ressã o p esso a l do in d iv íd u o na presen ça das su as v o z e s. A con cen tração nas v o z e s procura, por outro lad o, criar um a c o n sc iê n c ia m ais n ítid a da natureza d as res321
p ectivas p e rcep çõ es e m od ificar ou transform ar, d e sse m o d o , a sua interpretação. N este p r o c esso de m elh oria do con trole, ex iste um outro cen ário im portante q u e im p lica o alargam en to d o a u to co n h ecim en to , parti cu larm en te da c o n sc iê n c ia d e cad a um e d os seu s e fe ito s. A este prop ósito, tem sid o u ltim am en te d e se n v o lv id o um m éto d o co n h ecid o por D iálogo entre V ozes. Q u isem o s analisar os efe ito s b e n é fic o s desta técn ica e com p rovar se o s d iá lo g o s entre v o z e s, q u e ela pretende sondar, terão e fec tiv a m en te um a larga utilidade. N o s an os de 1991 e 1992 e sta b e lec em o s con tacto co m vários ou v id o res d e v o z e s e com terapeutas in teressad os em ensaiar esta abordagem terapêutica.
O m étodo O D iálogo entre V ozes é um m étod o de au to co n h ecim en to e de m o d ifica çã o da c o n sc iê n c ia q u e se b a seia num m o d elo da m en te d e se n v o lv id o p e lo s p sic ó lo g o s H al S ton e e Sidra W in k elm an . O diá lo g o em qu estão co n d u z -se co m a v o z ou v o z e s interiores q u e em er g em das p erson alid ad es fragm entares; essa s (d iferen tes) p erson alid a d es p od em ter von ta d e, vid a em o cio n a l, p en sam en tos e v o z próprios. T o d o s n ós n o ta m o s, quando param os para reparar n isso , q u e ex iste dentro de nós m esm o s um a e sp é c ie de d iá lo g o co n tín u o , que c o n si d eram os p erfeita m en te natural. A m en te c o n scien te vu lgar, a que ch am am os ego, qu e regu la o s n o sso s assu n tos e d e c isõ e s do dia-a-d ia, p o u co ou nada é afectad a por e sse d iá lo g o interno; n o en tan to, por vezes, o ego p o d e id en tificar-se tão fortem ente co m determ inadas partes da person alid ad e que as v o z e s que representam outras partes im portantes de n ó s m esm o s não se p od em exprim ir. O m éto d o do D iálogo entre V ozes (que in icialm en te não fo i d e se n v o lv id o co m o um a terapia, m as que tem , claram ente, um grande potencial terapêutico) perm ite um d iá lo g o p ergu n ta-e-resp osta entre o líd er d e d iscu ssã o - co n h ecid o por au xiliar - e as d iversas su b d iv isõ es da p erson alid ad e do clien te. E m P sic o lo g ia H u m anista e T ran sp essoal é b em c o n h ecid o o c o n ceito d e p erson alid ad e fragm entária, m as o term o fragm en to é g e 322
ralm ente u tilizad o num sen tid o sim b ó lico para d esign ar agregad os de m ó d u lo s fu n c io n a is. P or o u tro la d o , ao lo n g o d e m u ito s an o s de ex p eriên cia , S ton e e W in k elm an foram gan h an d o a co n v icçã o de que e ssa s person alid ad es fragm en tárias estã o realm en te p resen tes nas p esso a s, ten d o cad a um a das su b p erson alid ad es um a d otação própria de atributos p sic o ló g ic o s. Para im aginarem o m o d elo d e co n sciên cia em que o D iálogo entre V ozes se b aseia, S ton e e W in k elm an in sp i raram -se na sua própria exp eriên cia. E ste m o d elo está a sso cia d o à ch am ad a P sic o lo g ia da T ran sform a ção, e sc o la d e p en sam en to cu ja origem rem on ta ao s anos 60. T en d o surgido co m o reacção à P sica n á lise por um lad o e ao B eh aviou rism o por outro, a ch am ad a terceira aven id a da P sic o lo g ia H u m an ista c o n quistou um co n sid erá vel terreno n os an os 6 0 , sen d o M a slo w um d os seus m ais n o tá v eis p rop on en tes. T em a e sq u ecid o durante m u itos anos, a c o n sciên cia v o lto u à prim eira lin h a da in v estig a çã o co m a P sic o lo gia H u m anista, a par da q u estão da u n idade m en te-co rp o. E m parti cular, esta ten d ên cia realça o crescim en to p e sso a l e a au to-realização, e em resu ltad o d este n o v o v ig o r con cep tu al n asceram m uitas terapias dirigidas para exp eriên cia s corp o-en ergia. A co n sc iê n c ia , porém , está estruturada por cam ad as, p elo qu e p o dem ser exp erim en tad os vários n ív e is d e co n sc iê n c ia . E ste m o d elo tom a tam bém em lin h a d e con ta as ex p eriên cia s tran scend entais ou espiritu ais, reflectin d o a in flu ên cia d e trad ições o rien tais, co m o o yoga, segun do as q u ais as p esso a s irradiam c o n sciên cia em form a d e en ergia. A P sic o lo g ia da tran sform ação d e se n v o lv e u -se n os an os 80 na C alifórnia e d eu -n o s um a n o v a sín tese das ten d ên cia s in icia is, co m o intuito de integrar as en ergias terrestres e esp iritu ais na co n sciên cia hum ana. O ex p r essiv o título do prim eiro livro d e S ton e, E m bracing H eaven a n d E arth (U nir o C éu e a Terra), é p recisa m en te o fu lcro da co n sciên cia d e tran sform ação. A o d efin ir co n sc iê n c ia , d iz Stone:
“As vossas percepções dizem respeito a vários Eus que existem dentro de vós e que experimentam as suas próprias energias.” Para e le , a c o n sciên cia n ão é só um a q u estão d e co n h ecim en to, co m b in an d o -se tam bém co m um a ex p eriên cia física . 323
O q u e se seg u e é um excerto d e um a co m u n ica çã o apresentada p ela s autoras desta S e cçã o num C o n g resso sob re E scu ta de V o z e s que tev e lugar em M arço d e 19 92 na cid a d e h o la n d esa de D en B o sch . E ssa co m u n ica çã o co n sistiu na d escrição d e 10 se ssõ e s terapêuticas, cu jos p rop ósitos eram m u ito sem elh an tes aos o b je ctiv o s d o D iálogo entre V ozes, ou seja: - O ou vid or d e v o z e s aprende a co n h ecer o s seu s eus ou v o z e s e a participar das suas en ergias (m o d e lo d e co n sciên cia); - D á -se um a transform ação das v o z e s ou eus que d ificu ltam o b em -estar ou o crescim en to p essoal; - O ego - a fu n ção ex ecu tiv a - to m a -se m ais co n scien te, perm i tind o que o in d ivíd u o se to m e um a gen te m ais livre e dispon ha d e um a m ais am pla gam a de e sco lh a s. C lien te: D a d o que a m inha vid a tinha adquirido a licerces só lid o s, sen tia-m e su ficien tem en te forte para m e sub m eter a este p ro cesso . T inha a m igos a q u em recorrer, um em p rego que m e dava o s m eio s de su b sistên cia e a p len a co n fia n ça de qu e, co m a D r.a K o o lb ergen , esta v a em boas m ãos. T u do isso m e fa zia sentir segura d e q u e a p sic o se não voltaria a p recip itar-se. C om o se verá, a m inha n e cessid a d e d essa segurança v e io d e n o v o ao d e cim a durante a terapia. Terapeuta: A n tes de partirm os para a prim eira sessã o , a m inha clien te e eu co m b in ám o s co m eça r e encerrar sem p re as s e ssõ e s co n v o ca n d o o controlador-protector, um a das su b p erson alid ad es m ais im portantes no D iálogo entre V ozes. C om b in ám os ainda que o con tro lad or-pro tector p od eria intervir em qualquer altura das se ssõ e s, se algu m a c o isa n ão e stiv e sse a correr a seu g o sto . D e fa cto , isso viria a acon tecer várias v ezes.
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C om o a m inh a ju ven tu d e n em sem p re correu m u ito b em , o m eu
controlador n ão tinha a adeq uad a en ergia e p recisava d e se d e se n v o l ver co m m ais força e eficá cia . U m controlador é um a en ergia qu e
superintende a tudo, qu e p erm ite o u im p ed e outras en ergias. E le c o n trola todo o ser. S e o controlador n ão co n seg u e d e se n v o lv er um a su ficien te cap acid ad e d e co m p reen sã o , d e se n v o lv e -se , em co m p en sa ção, um a outra energia: trata-se d e um a en ergia m ascu lin a, qu e ex iste para estruturar e regular. D e v e z em qu and o, esta en ergia m ascu lin a assum e a fu n ção do controlador, qu and o este n ão está a fu n cion ar correctam ente. Isso perm ite q u e haja sem p re um a p rotecção e fica z contra outras en ergias qu e p o ssa m ev en tu alm en te entrar n o m eu e s pírito e m an ifestar-se sob a form a d e v o z e s. E ssas en ergias têm , m uitas v ezes, o rigem noutras p e sso a s (p erson alid ad es fragm en tares). Terapeuta:
N a prim eira sessã o , a m in h a clien te p arecia surpreendida co m a en ergia das várias su b p erson alid ad es in terven ien tes. N o en tanto, o controlador tinha m uita d ificu ld a d e em perm itir q u e algu m as das v o zes m ais n ega tiv a s c o n c lu ísse m o q u e tinh am para dizer; d izia e le que d eix á -la s contin uar a falar era dar-lh es d em asiad a aten ção. E m sessõ es p osteriores, entraram em cen a in term ediários, q u e exp rim iam os sen tim en tos n ega tiv o s das v o z e s origin ais, fican d o as v o z e s n e g a tivas a falar um as co m as outras o resto do tem p o. A clien te d istin gu ia claram ente entre v o z e s n ega tiv a s oriundas do interior d e si m esm a das v o zes n egativas oriundas d o exterior (em term os d e D iálogo entre Vozes, as prim eiras pod erão derivar da crítica interna, en qu an to qu e as segun das pod erão representar um s e lf ren egad o, um a person alid ad e rejeitada, se b em q u e n o D iálogo entre Vozes nu nca p o ssa m o s ex clu ir a p o ssib ilid a d e d e estas v o z e s v irem realm en te do exterior). C liente: D urante a prim eira sessã o fa lám o s tam bém co m p erson alid ad es fragm entares d e outras p e sso a s, q u e se tinham d iv id id o em co n se325
q u ên cia d e terem sid o p o sta s de lado ou rejeitadas. Isso iria ajudar-m e a confirm ar q u e as m in h as v o z e s não provinham só de dentro de m im , m as tam bém de fora. E fo i tam bém m o tiv o d e grandes co n flito s entre m im e o s operad ores so cia is qu e lid avam co m ig o . Terapeuta: N a segu n d a se ssã o , a m in h a clien te d escrev eu a m aneira co m o certas en ergias sup eriores a ajudavam a resistir às v o z e s n ega tiv a s. E la via n essa s en ergias um a e s p é c ie d e gu ia espiritual e o seu controlador a ceito u -a s de b om grado durante as n o ssa s se ssõ e s. E ssa s en ergias sup eriores d en otavam u m a b oa d o se de sen sa tez e m an ifestaram -se m uitas v e z e s em s e ssõ e s p osterio res, para exp licar ou corrigir deter m in ad os asp ectos. E ntre outras co isa s, ela s d iziam q u e n em sem pre p od eriam ajudar a c lien te, na m ed id a em que ela se d everia tom ar m ais forte por si m esm a. E x istem provas de um a certa polaridade - n este ca so , entre en er g ia s inferiores e sup eriores - q u e o controlador u tiliza para criar um a abertura para um a terceira v o z , que surge en tão, em geral, esp o n ta n eam en te. H ab itu alm en te é um a en ergia m u ito b em -d isp o sta , que exp rim e a sua sa tisfa çã o por lh e darem um a oportunidade, ainda que b reve, d e aparecer. N a terceira sessã o , a v o z falou tam bém de m ed o, sobretudo do m ed o d e se precipitar um a n o v a p sico se. N este ponto, o controlador d irigiu -se ao m eu próprio controlad or para se certificar da seguran ça da situ ação e d izer q u e a v o z n ega tiv a exterior à clien te tinha sid o terrivelm en te d ifícil d e suportar naquela sem ana. Propus que d e ix á s sem o s a v o z n egativa participar em p len o nas se ssõ e s, na co n d içã o de perm anecer in activa o resto da sem ana. E xp liq u ei, um a v e z m ais, qu e o m elhor para um a en erg ia c o m o ela seria receber a aten ção que procura (um dos p rin cíp io s do D iálogo entre V ozes é perm itir q u e um a en ergia se so lte até sair toda a ten são que con tém ). C liente: M uitas v e z e s as c o isa s corriam b em entre as se ssõ e s, m as quando ch eg av a a casa e fica v a so zin h a era tudo m uito diferente. Era um a luta 326
constante para con tin u ar a ser eu m esm a, apesar do acord o q u e fizera com as m inh as várias en ergias para qu e qualquer d elas d e sse um a ajuda quando su rg isse um en fraq u ecim en to d em asiad o. P or ex em p lo , quando a en ergia sen sitiv a e stiv e sse a passar um p eríod o d ifíc il e não andasse a fu n cion ar b em , a en ergia d e ju stiça assu m iria as suas fu n çõ es, p rotegen d o a en ergia sen sitiva . E ste p ro cesso d e co o p eração era im portante para um a p rotecção adequada. A s en ergias d iv id id a s ex teriores a m im tinham o háb ito d e aparecer sem avisar e p o d ia m esgo ta r as m inh as forças. Sem p re q u e a m inh a protecção - e au top rotecção co n scien te - m elh orava, tinha in ício um a luta encarniçada. O con trib u to qu e eu m esm a d ei para a m inh a pro tecção fo i c o n se g u id o através do encerram en to d elib erad o da m inh a aura, c o isa q u e tinha aprend id o a fazer nu m cu rso q u e frequentara com um a m ulh er d e d o tes paranorm ais. A aura é um ca m p o d e en er gias que e n v o lv e as p e sso a s e qu e p od e ser aberto ou en cerrad o v o luntariam ente p or m eio d e e x erc ício s d e con cen tração. C o stu m o re correr, por e x e m p lo , a im agin ar um m uro em v o lta d e m im ou um gradeam ento en tre m im e outra p esso a . Q uanto m ais o fa ço , m ais efica z se torna. A o co n scien cia liza r tod as as en ergias, adquiri tam b ém um a perspectiva do q u e esta v a a acon tecer, sobretudo d e algo q u e e stiv e sse próxim o. S en tia u m a ten são crescen te dentro d e m im e fica v a um pouco co n fu sa e atordoad a, co m a m inh a c o n sciên cia a esv a ir-se um p ou co. N e ssa s alturas, u tiliza va co n scien tem en te a m in h a p rotec ção: há m uito tem p o q u e n ão era cap az d e o fazer por m im própria. N o in ício d esta n o v a fa se d e inten sa p rotecção era para m im um a guerra trem enda tom ar ab solu tam en te claro qu e quando eu d izia “N ã o ” era m esm o N ã o , já q u e as en ergias faziam tudo para pôr à prova a m inha so lid e z. N o en tan to, fa zen d o m ais e m elh or u so das m inhas armas e co m a ajuda d o m eu controlad or, e doutras en ergias q u e m e en viam p en sam en tos p o sitiv o s, co n seg u i ven cer. Por isso , n ão p od en d o já entrar à von ta d e p ela brecha e ficar o tem p o que lh es ap etece, as energias fragm en tárias acabam por d esin teressar-se. O u v ia -a s m uitas v ezes dizer: “A lu z não, vam os em b o ra ". Eram duas en erg ia s que actuavam ju ntas. V en d o as co isa s retrosp ectivam en te, eu v iv ia no fio da navalha; h a v ia o c a siõ e s em qu e acred itava ser cap az d e ultrapassar 327
as d ificu ld a d es, m as havia outras em que a m inha co n fia n ça fraquejava. P or fim , porém , acabei por v en cer e bater o p é às en ergias. O m eu “ N ã o ” era fin alm en te N ão. T erapeuta: N a quarta sessão , o controlador afirm a qu e a v o z negativa ador m ecera co n form e co m b in ad o , m as apenas por m era co n v en iên cia . O con trolad or aceita p len am en te que não se dê qu alq uer liberdade de m o v im en to s a essa v o z e qu e, em v e z d isso , se d e ix e falar à vontade a v o z am orosa - co m o a m inha clien te lhe ch am ava. Isso radicava em a sp ectos fu nd am en tais para ela, co m o a a feiçã o e o aban dono e aquilo q u e eram as suas n ecessid a d es e carên cias. N a quinta sessã o , tem lugar a prim eira tran sform ação. U m a v o z in icialm en te negativa e arrogante apareceu d izen d o q u e era tristem ente in com p reen d id a. M as no fim da d iscu ssã o fo i-lh e feito sentir que não só era com p reen d id a co m o a va lid a d e das su as o p in iõ es era aceite. E ssa v o z au to-ap elid ava-se O Justo. N a sex ta sessã o , O Ju sto regressa para o ferec er-se co m o cavaleiro d efen so r da en ergia sen sitiva da clien te, b em co m o de outras. C o n fessa m esm o q u e é vu ln erável e q u e sem pre se sentiu um a vítim a, em virtude d e o controlador não ser su ficien tem en te afirm ativo. A p resen to u -se ainda a segun da v o z n ega tiv a d e crítica interna, d izen d o q u e se sentia agora m en os vin gativa; q u e a partir daí se ia com portar co m m ais d elica d eza e bom -h um or. É o in ício de um a segu n d a transform ação. N a d iscu ssã o prelim inar da sétim a sessã o , a c lien te d iz que se sen te m elh or, m en os solitária, m ais acom panhada. Já c o n se g u e voltar a ler. A s v o z e s n ega tiv a s interiores tornaram -se am bas p o sitiv a s e as v o zes n egativas exteriores passaram para seg u n d o p lan o. P orém , a en ergia paranorm al con tin u a a m anifestar-se; seg u n d o a clien te, essa en ergia rep resen ta um a fragm en tação da sua en ergia sen sitiva . Isto é um tanto p rob lem ático, já que essa en ergia ronda in cessa n tem en te recolh en d o in form ação. F elizm en te, porém , o controlador da clien te tem agora um m aior d o m ín io na situação. 328
À oitava sessã o - q u e fo i adiada um a sem an a por d o en ça m i nha - , en con trávam o-n os am bas num im passe: a clien te queria aban donar as se ssõ e s. A p rov eitá m o s a situ ação para analisar as d iferen tes m o tiv a çõ es da clien te e e la adm itiu ter r ec eio d e qu e as s e ssõ e s aca b assem . T inha bastante von tad e d e lutar, m as, co m o esta v a a a co n te cer tanta c o isa ao m esm o tem p o, p reo cu p a va -se co m o qu e pod eria su ced er se tod o este trabalho term in asse b ru scam en te. A lém d isso , esta v a tam bém a exp erim en tar um sen tim en to d e aban dono (q ue lhe era fam iliar). P or outro lad o, tinha co n su ltad o entretanto outras p e s soas que a acon selh aram a parar co m as se ssõ e s - agora q u e as co isa s estavam m ais ou m en os sob con trole. M as a v o z n egativa exterior, em bora m an ejável durante as se ssõ e s, co n tin u ava a fa zer-lh e a vid a negra em casa e isso era cau sa d e p reo cu p a çõ es para ela. “A con sciên cia d ó i” - d isse. D ep o is de eu lh e ter ter garantido q u e as se ssõ e s contin uariam um p o u co para lá das d ez in icia is, por form a a d eixar as co isa s adeq ua dam en te reso lvid as, d ecid iu continuar. A n on a sessã o , as co isa s co m eçaram a ficar m ais claras acerca da en ergia negativa exterior. S egu n d o a c lien te, a v o z fic o u m u ito pior e con tin u a a tentar in flu en ciá -la n egativam en te; essa v o z está a sso ciada ao ó d io , aos erros, aos sen tim en to s d e cu lp a e ao ca stig o e esp alh a a co n fu sã o qu and o a clien te se recu sa a ceder. A d écim a sessã o , o controlador ap areceu e d isse-lh e q u e, ao lon g o da sem ana, tam bém se tinha sen tid o so b in flu ên cia d e um a co n fu sã o que fora incap az d e dom inar. A s d ez se ssõ e s ch egaram ao seu term o. É ev id en te q u e a v o z n ega tiv a exterior, sen tid a p ela c lie n te c o m o um a v o z ditatorial e geradora de co n fu sã o , ainda n ão d esap areceu , m an tém -se p len a de v ig o r e ainda não fo i p o ssív e l transform á-la. C o n clu sõ es da terapeuta: D esta série d e s e ssõ e s co n c lu o , p rovisoriam en te, qu e um p roced i m en to exp erim en tal d este tip o fa z tod o o sen tid o , sem deixar d e conter o s seu s riscos. 329
C o n seq u en tem en te, - o terapeuta d e v e ser a lg u ém co m treino clín ic o e co m treino de
D iálogo entre Vozes;
- d e v e prop orcionar-se ao c lien te um b om ap oio p rofission al na sua situação d om éstica; - as se ssõ e s d ev em ter um lim ite tem poral com p a tív el co m a ad e quada reso lu çã o d o s prob lem as. C o n clu sõ es da cliente: C om o já sou capaz de d izer claram en te “N ã o ”, já sou m ais capaz tam bém d e traçar lim ites na m inh a vid a. Q uero esta b elecer fronteiras claras às p e sso a s que m e rodeiam ; n o passad o sem pre tinha evita d o isso , porque não era capaz de lidar co m a m inha agressiv id a d e quando ten tava esta b elecer lim ites. Isso pu n h a-m e d oen te, m ental e fisic a m en te - e fa zia -m e sentir reles. C o m o aprendi a fech ar-m e adeq ua dam en te, agora lid o m elh or co m isso . P or causa d e sses n o v o s lim ites, algu n s d os ch am ad os “a m ig o s” afastaram -se. Outra m udança p o sitiv a é que h oje sou m elhor a resolver e a assim ilar v elh o s traum as e b lo q u eio s, e isso sig n ifica que estou m en os co n fu sa e q u e sou cap az d e v er c o m m ais clareza on d e pon h o o s p és. C ontinuo en vo lv id a no D iálogo entre V ozes e esp ero ir ainda m ais lo n g e na m inha cam inh ad a para explorar o m undo das v o zes.
P ostscriptum da terapeuta: A o fim das 10 se ssõ e s, a c lie n te e eu con cord ám os em realizar algu m as se ssõ e s m ais, até ela atingir o eq u ilíb rio. N esta s se ssõ e s sup lem entares, con cen trám o-n os n o controlador, na en ergia vu ln erá v el (a vítim a) e na v o z n e ga tiv a exterior. O n o sso prop ósito era trans m itir à clien te a cap acid ad e d e lidar m elh or co m as suas perturbações e, a lém d isso , provocar um a transform ação na v o z negativa. N as prim eiras 3 se ssõ e s su p lem en tares, o controlador fartou -se de gritar vio len ta m en te co m a en ergia n egativa, ord en an d o-lh e que se fo sse em b ora. E ste p roced im en to n ão deu qualquer resultado e a v o z n egativa con tin u ou a in com od ar a clien te. T en tám os am bas descob rir 330
lod o o gén ero d e saíd as criativas para essa v o z , co m o escrev er e pintar, m as a clien te p arecia recear as co n seq u ên cia s n egativas d isso . A p ó s a terceira se ssã o , a clien te apareceu, su b itam en te, co m um a táctica da sua própria lavra: sem p re qu e a en erg ia /v o z n e ga tiv a sur g isse, ela o u v ia -a e d a v a -lh e réd ea solta até esv a zia r o saco. P areceu um ex celen te truque: seg u n d o a clien te, a en ergia entrou em c o la p so e fico u desarm ada. O ê x ito d esta ab ord agem fê -la sen tir-se su fic ie n tem ente forte para p rosseg u ir sozin h a, sem qualquer ajuda, ap ós a sexta sessã o sup lem entar. A elim in ação d e u m a en erg ia /v o z refractária p od e ex ig ir um ritual esp ecia l, do tipo d os q u e s e u tilizam n o luto; n este ca so , e le a co n te cerá esp on tan eam en te. D e m o m en to , n ão há resu ltad os d e seg u im en to a relatar m as, para m im , esta fo i um a ex p eriên cia q u e m e alargou os horizontes.
Reabilitação Marius Romme O uvir v o z e s n ão é um fen ó m en o m eram en te pessoal: está in fim a m ente lig a d o ao m eio so c ia l d o ou vid or. O lugar qu e o ou v id o r o cu p a no seu m eio so cia l d e p erten ça é, m uitas v e z e s, afectad o p ela e x p e riência de ou vir v o z e s , o q u e sig n ifica q u e é n ecessário prestar a devid a aten ção ao p r o c esso d e reab ilitação. E sta e outras in terven çõ es so cia is são e sse n c ia is para q u e p o ssa flo rescer o am b ien te o n d e d e correm as estratégias e as activ id a d es d escritas n este livro. O o b jectivo da reab ilitação é assegu rar as m elh ores circu n stân cias p o ssív e is para o d e se n v o lv im en to d o in d ivíd u o e perm itir que as terap êuticas possam dar o resu ltad o p reten dido. O s in gred ien tes e sse n c ia is a este p rocesso são: -
R ela çõ es d e q u alid ad e (p or ex em p lo , co m o operador so cia l); Inform ação d e qu alid ad e; R ecep tiv id ad e às em o çõ es; A u ton om ia social; R ela çõ es d e c o n fia n ça (p esso a s sig n ifica tiv a s). 331
R ela ções de qualida de C om o já v im o s - e co m o se com preend erá o s o u v id o res de v o z e s são a v e sso s às interpretações técn icas que n egu em as suas e x p eriên cias e p e rcep çõ es. Para e le s é im portante que o s outros o s oiçam co m aten ção e c o m in teresse sin cero, em v e z de p roced erem a um a m era co lh eita d e d a d o s paternalista. A relação d e v e ser de co n fia n ça m útua e d e v e b asear-se na igu ald ad e*. Para ex em p lifica r a im portância fundam ental d estas atitudes num a b oa relação terap êutica, gostaria d e citar um ex -p a c ien te (v er 12.° C ontributo, C ap ítu lo 8):
"Em 15 anos de intervenção psiquiátrica, só uma vez - tinha eu 36 anos de idade - encontrei alguém disposto a ouvir-me. Isso viria a constituir para mim um ponto de viragem e, a partir daí, deixei de ser uma vítima e comecei a tornar-me senhor da minha própria experiência. Esse alguém foi uma enfermeira, que, na verdade, arranjou tempo disponível para me ouvir falar da minha experiência e dos meus sentimentos. Ela fez-me sentir sempre bem-vindo e arranjava maneira de nunca sermos incomodados. Desligava o bip e punha o telefone fora do descanso e, às vezes, como havia sempre gente no corredor, corria as cortinas do gabinete. Tudo isso me fazia sentir mais à vontade. Em vez de se pôr atrás de uma secretaria, sentava-se ao pé de mim. Dizia-me que tudo o que fosse conversado entre nós era confidencial, excepto se e quando eu decidisse o contrário. A pouco e pouco, à medida que aumentava a confiança entre nós, tornei-me capaz de lhe falar dos abusos que sofri e das vozes. Às vezes, quando eu descrevia o que tinha acontecido comigo, ela dizia-me que essas coisas buliam com ela e que, por isso, pre cisava de parar por momentos. Finalmente, eu encontrava alguém que dava valor à dor que eu sentia. Ela ajudou-me a perceber que as vozes eram parte integrante de mim mesmo e tinham um sentido e uma validade próprios. Passado um período de 6 meses, consegui desenvolver uma estratégia de base para lidar com as minhas vozes. O mais importante nessa enfermeira foi a honestidade das suas motivações e as respostas que me deu ao que eu lhe dizia. Gostaria aqui de afirmar que talvez outros profissionais de Saúde Mental ou de Intervenção Social possam aprender com a abordagem seguida por essa enfermeira - que pode resumir-se como segue: * Ver conceito de “Parceria” na Apresentação à Edição Portuguesa deste livro. 332
- ser honesto sobre a motivação e as razões para intervir; - estabelecer regras de base à partida; - garantir e preservar uma atmosfera de segurança; - não forçar a agenda - garantir um espaço para respirar, de modo a que a pessoa possa decidir o que dizer ou não dizer; - deixar que a pessoa decida quais devem ser os objectivos a atingir e se pretende a mudança ou não.” Inform ação de qualidade Para se com p reen d er e ajudar a lgu ém , e saber o q u e e sse algu ém pretende, é e ssen c ia l q u e am bas as partes d isp on h am d e toda a in for m ação. A ssim , é b oa id eia co m eça r por um a in ven tariação p orm en o rizada d o n ú m ero d e v o z e s, seu gén ero, sua id ad e e características, de quem p rovêm , co m o estã o organ izad as, q u e in flu ên cia têm sob re o ouvidor, o qu e d izem , c o m o é q u e o ou v id o r reage, qu e acon teceu desd e o dia em qu e com eçaram , etc. Isto dá ao ou v id o r e ao operador socia l um assu n to d e qu e falar e este p r o c esso d e reflex ã o é um preced ente in d isp en sá v el à elab oração d e u m a ab ord agem às v o z e s. D á im en so trabalho a am bas as partes ch eg ar a um a p o siçã o co n sen su al sob re a natureza e o s o b je ctiv o s da relação qu e m antêm nesta abord agem . M as isso n ão ob sta à fo rm u lação d e o b je ctiv o s de curto prazo, qu e estã o , regra geral, rela cion a d o s co m o m anejo da ansiedad e. E sbater a an sied ad e e co n seg u ir um certo grau d e con trole, ainda que p eq u en o, fa z certam en te co m q u e se torne co n sid era v el m en te m ais fá cil pensar. O utras ajudas no sen tid o d e tom ar o p en sa m ento m ais fá cil p od em tam bém ser u tilizad as, c o m o , por ex em p lo , escrev er tarefas a cum prir, escrev er um d iário e fazer e x erc ício s de c o n c en tr a ç ã o n as v o z e s (para m a is in fo r m a ç õ e s so b re e ste tip o de técn ica s, ver as resp ectiv as S e c ç õ e s n este C ap ítu lo). L enta m as segu ram en te, este p ro cesso d e p en sa m en to e d e reflex ã o v a i-se orien tan d o n o sen tid o d e m elhorar a cap a cid ad e d e apreensão do sig n ifica d o das v o z e s na v id a do ou vid or. N e ste co n tex to , é im por tante id en tificar as situ a çõ es, as em o ç õ e s e as p e sso a s asso cia d a s à ocorrência ou à in ten sificação das v o zes - os ch am ad os desen cad ean tes. O s d esen ca d ea n tes rep resen tam circu n stân cias q u e parem as v o z e s
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q u e trazem dentro d e si. A s v o z e s p arecem reagir a a lg o q u e é id e n tific á v e l: p o d e m e v o c a r e x p e r iê n c ia s tra u m ática s (la m p ejo s m n é sico s), interferir num a dada situação (ord ens) ou proteger o ouvidor (p ro ib ições). O s d esen cad ean tes p o d em ser, m uitas v e z e s, d ifíceis de id en tificar. M u itos ou v id o res con sid eram útil escrev er um a au tob io grafia, em q u e as v o z e s figuram co m o p erson agen s principais (eg o d o cu m en tos). É particularm ente im portante n esta an á lise iden tificar o s sentid os m eta fó rico s e sim b ó lico s. V eja m o s, por e x em p lo , o ca so da v o z que fala co m o um robô. O robô sugere fo rça sem e m o ç õ e s, força a q u e é d ifíc il resistir e ven cer, e q u e p od e, por isso , sim b olizar um a p esso a sem m ed os. O robô to m a -se um a m etáfora d e lidar co m as em o çõ es; se o rob ô é um a figura am eaçadora para o ou vid or, a verdade é que tam b ém p od e ser um a m etáfora para lidar c o m as em o çõ es. N e ste s ca so s, é fundam ental qu e seja d iscu tid o o m ed o de ter m ed o e q u e se en sin e o ou v id o r a lidar co m o m ed o. O utro e x em p lo poderia ser a v o z de um a criança: ela p o d e sig n ifica r q u e se está a ser tratado c o m o um a criança ou p od e sugerir um a in fân cia traum ática. N o pri m eiro ca so , a v o z poderá, ev en tu alm en te, m andar fazer co isa s próprias d e criança, enquanto que no seg u n d o ca so p o d e aparecer relacion ada co m algu m a ex p eriên cia d ifícil q u e o o u v id o r tenha atravessad o em d eterm inada idade. A s m etáforas são, m uitas v e z e s, d e tal natureza que o seu sig n i fica d o só por m ero acaso se poderá atingir. N ã o e x iste nenhum d ic io nário d e m etáforas que nos ajude a enfrentar o prob lem a, m as ex istem in ú m eros ex em p lo s b em d o cu m en tad os, q u e se pod erão encontrar em v ários livros, co m o é o ca so das p erson alid ad es m últiplas. A técn ica d e con cen tração nas v o z e s con stitu i um b om auxiliar nesta ex p ed içã o através do m un do das m etáforas e d o s d esen cad ean tes.
R eceptivid ad e às em oções A o lidar co m o s o u vid ores de v o z e s, a fa m ília , o s a m ig o s e tod os o s q u e prestam ajuda d ev em estar rec ep tiv o s às em o ç õ e s d o p acien te 334
e estar preparados para recon h ecer as suas próprias e m o ç õ e s e as form as de lidar co m um as e co m outras. E sta recep tivid ad e requer um a sen sib ilid a d e esp ecia l para o s seg u in tes aspectos: E m patia A em p atia p ressu p õe a cap a cid ad e d e ou vir co m a adeq uad a e m o ção, de m aneira a dem on strar q u e o m ed o das v o z e s é sen tid o e tido em con sid eração, m as qu e n ão é razão para fu gir ao prob lem a. Isto não quer d izer qu e aq u ele q u e presta ajuda d eva encorajar a an sied ad e, m as tam bém n ão sig n ific a q u e e v ite m an ifestar qualq uer em o çã o quando lh e relatam ex p eriên cia s extrem am en te d esagrad áveis. R eacçõ es hum anas adeq uad as, da parte d e q u em presta ajuda, perm item ao ouvidor de v o zes adm itir co m m ais facilid ad e a intensidade das em o çõ es em causa e sentir qu e a su a tem p estad e em o cio n a l é p erfeitam en te com p reen sív el ten d o em co n ta as circu n stân cias qu e está a atravessar. Q uando as v o z e s são m u ito am eaçad oras, aq u ele q u e presta ajuda d eve ainda tentar form ular um a d escrição da exp eriên cia. Falar co m seriedade sob re as co isa s p o d e ajudar a d efin ir qu ais o s asp ectos do fen óm en o q u e assen tam na realid ad e e qu ais o s qu e são fruto da im aginação; ficar calad o só p o d e contribuir para reforçar a id eia d e que o prob lem a é apenas d o o u v id o r e d e m ais n in gu ém . U m a d isc u s são apropriada p od e ajudar o o u v id o r a apreender a estrutura d e p od er das v ozes; este p od er só e x iste n a m ed id a em qu e o ou vid or o atribua às v o z e s e in sista n o p od er ilim ita d o d elas, apesar d e todas as tenta tivas de o persuadir d o contrário. C onfrontação A s v o z e s p o d em servir para p roteger q u em as o u v e d e certas em o çõ es q u e inspiram fu ga o u evitam en to; em tais circu n stân cias, é im p o ssív el ao ou vid or aprender a lidar co m essa s em o çõ es. O prestador de ajuda d e v e por isso ter em co n ta q u e, para q u e se registem p rogres so s, pod e ser essen c ia l a con fro n ta çã o co m essa s e m o çõ es. N ã o d ev e 335
ser e v a siv o , ainda q u e pareça correr o risco de precipitar um a reacção vio len ta . E v id en tem en te, é n ecessário ter à m ão as n ecessária s m ed i das d e em erg ên cia para o ca so de essa crise acontecer. P or e x em p lo ,
um a estudante com eçou a ou vir vozes p ela prim eira vez aos 23 anos. N o ano anterior tinha sido subm etida ao cerim onial de iniciação dos caloiros (na H olanda, algum as organizações de estudantes têm o costum e de tentar esca n d a liza r os caloiros em m atéria de sexo, d u rante o períod o de recepçã o aos novos alunos). E la tinha sido lançada na confusão com as con fro nta ções p ró pria s desse ritual e a p a rtir d a í pa sso u a evitar a sexualidade. M esm o depois de vários anos de ajuda, em que se incluem algu ns anos de seguim ento na nossa consulta externa, ela p erm an eceu sexualm ente evasiva. D esde o início do seu p ro blem a, assum iu o p a p el de doente, vendo nesse p a p el o seu fu tu ro . N ã o se via a encontrar um com panheiro, a ter filh o s ou a arra nja r um em prego. E sta lim itação era de tal ordem que a confrontám os com o estilo de vida que tinha adoptado e com aquilo que sentíam os con stituir o seu pro blem a de fu n d o : o m edo da sua sexualidade. E sta confrontação fe z desencadear um a enorm e g ri taria p o r pa rte das suas vozes; a m oça fic o u psicótica e refugiou-se em casa dos pa is, on de se achava de algum m odo pro teg ida das suas p ró p ria s em oções. E sta reacção espontânea confirm ou as nossas su s p eita s da existência de um pro blem a sexual subjacente. U m a reacção v io len ta d este tipo requer um a p o io e um a orien tação esp e cia is. É claro q u e esta s co n fro n ta çõ es não d evem ser em p reen d i das sem um a cu id a d o sa preparação, m as é de vital im portância qu e o s prestadores de ajuda n ão sejam , co m m ed o da p sico se, co n iv en tes co m a fu ga d os seu s p acien tes a um problem a. N a verd ad e, um a reacção p sicó tica p o d e ser extrem am en te instrutiva tanto para o pa cien te co m o para q u em lhe presta ajuda. R eco n h ecim en to A s v o z e s p od em referir-se directam ente a situ a çõ es e ex p eriên cia s, p assad as ou p resen tes, q u e p rovocam sen tim en tos de vergon h a, m ed o ou horror; p od em , por e x e m p lo , estar a ssociad as a abu so sex u a l v io 336
lento, cuja record ação é d em asiad o d olorosa (n estes c a so s, p o d e ser dem asiado ten tador perm itir a n ega çã o e a rep ressão d essa s m em órias, dada a im p rev isib ilid a d e das rea cções in d ivid u ais à rep esca g em de m aterial d o lo ro so , m as, c o m o tem os verifica d o , e ssa atitud e n ão é m uito sensata). In felizm en te, o s a co n tecim en to s d o lo ro sos n ão resid em apen as no passado; às v e z e s p ersistem n o presente e n e sse ca so sã o até m ais d ifíceis de perscrutar e sondar. A o ex p lo rá -lo s, aq u ele q u e presta ajuda irá deparar, aqui e além , co m o ou vid or d e v o z e s em b renh ado a con tragosto n u m território d e sc o n h e cid o e, por isso , d e v e estar preparado para tod as as ev en tu alid ad es quando se aventura a partilhar as em o ç õ e s d o o u v id o r d e v o z e s e a su jeitar-se às suas próprias reac çõ es a essa s e m o ç õ e s. P od e ser tentador esq u iva r-se a estes d e sa fio s, m as a cim a d e tudo está o co m p leto reco n h ecim en to da exp eriên cia do o u vid or. Q uando se evita encarar a situ ação d e fren te, a em o çã o am eaçad ora p od e desaparecer da c o n sc iê n c ia m as con tin u a a m an ifestar-se através de v o zes de gran d e carga em o cio n a l. C o n h ecem o s, por e x e m p lo , um a senh ora cu jo filh o se tinh a en for cado. D ep o is d e m orrer, o filh o ch am ava por ela freq u en tem en te, pedindo-lhe q u e fo s s e para ju n to d ele. N esta situ ação, se aq u ele que presta ajuda n ão recon h ecer com p leta m en te o con teú d o da m en sa g em daquela v o z, haverá um alto risco d e aqu ela m ãe fazer um a even tu al tentativa de su icíd io . C on seq u en tem en te, antes d e m eter m ãos ao processo de lu to, estu d ám os a natureza d essa m en sa g em .
A utonom ia social O uvir v o z e s é um a ex p eriên cia m u ito in v a siv a e requer da parte dos o u vid ores m u ita en ergia e m uita resistên cia para m anter o c o n trole sobre a su a con d u ta. A p o u ca co m p reen são e falta d e tolerân cia da so cied a d e para co m esta ex p eriên cia to m a d ifícil a ajuda e fa v o rece o isolam en to d a q u ele q u e o u v e v o z e s. A m an u ten ção e o d e se n v o lv i m ento do p od er p e sso a l e x ig e um a adequada au ton om ia social: por 337
outras p alavras, a ob ten çã o d e um lugar na so cie d a d e que ajude a d e se n v o lv er a id en tid ad e e a auton om ia. O q u e p ressu p õ e, entre outras c o isa s, um a vasta d isp o n ib iliza çã o de serv iço s so c ia is, co m o habita çã o própria, um qualquer tipo d e ocu p a çã o e u m certo grau de in d e p e n d ê n c ia e c o n ó m ic a . E ste s sã o a sp e c to s q u e p ro p o rcio n a m às p e sso a s a oportu nidad e d e estruturar a sua vid a qu otidiana e d e se n v o l ver rela çõ es so cia is e a fectiv a s e que co n stitu em a b a se da identidade so cia l. T o d o s o s ou v id o res d e v o z e s q u e contaram a sua h istória no C ap ítu lo 8 con segu iram alcançar e ste s o b jectiv o s; tod os e le s c o n se guiram obter a ajuda e o a p o io d o s a m ig o s, d o s fam iliares e dos p restad ores d e ajuda, e to d o s e le s acabaram tam b ém por assu m ir a resp on sab ilid ad e por si próprios. N o p ro cesso d o d e se n v o lv im en to da id en tid ad e so cia l p od em sur gir p rob lem as in esp erad os, co m o n o ca so d e um a ou vid ora de v o z e s q u e c o n h eci. Q uando v e io p ela prim eira v e z à m inh a con su lta, v iv ia em casa própria na com p an h ia de d o is en orm es c ã es, rodeada por um a v izin h a n ça cujas norm as e v a lo res so cia is lh e eram estran hos. E x p li q u ei à fa m ília o prob lem a d ela e , co m o a p o io d os fam iliares, a sen h ora m u d ou -se para um a zo n a m ais de acord o c o m a sua idade, form ação e cultura. E sta m udança rev elo u -se extrem am en te b en éfica para estim u lar o seu d e se n v o lv im en to e iden tidade. U m outro o b stácu lo à ob ten çã o da auton om ia so cia l p od e observar-se nas p e sso a s que v iv e m d em asiad o tem p o em ca sa d os pais. Isto é tão verd ad e para o s ou v id o res de v o z e s co m o para qualquer outra p essoa; quando a d ep en d ên cia de alg u ém em rela çã o a outrem se tom a d em asiad a, é d ifícil aprender a tom ar d e c isõ e s so zin h o , a assu m ir rela çõ es p e sso a is e a con q u istar um a id en tid ad e própria. A s v e z e s o u v im o s o s pais dizer que a falta d e sen tid o d e resp on sab ilid ad e d os seu s filh o s o u vid ores de v o z e s se d e v e ao fa cto d e e le s serem in ca p a zes d e ser in d ep en d en tes, m as a n o ssa ex p eriên cia ind ica qu e eles são, m uito freq uentem en te, cap azes de levar um a vid a bastante nor m al e in d ep en d en te, m esm o durante os ch am ad os e p isó d io s p sicó tico s. A privacidad e que proporciona o facto d e se ter casa própria pod e con stitu ir, a lém d isso , um im portante a sp ecto para o d e se n v o lv im en to d e um sen tid o de au ton om ia so cia l, se bem q u e haja que distinguir privacidad e de isolam en to. C o m o a co n tece c o m tod os n ó s, é fu nd a 338
m ental q u e o ou vid or d e v o z e s esta b e leç a rela çõ es, m antenha con tacto co m o s outros e se en v o lv a em a ctiv id a d es so cia is. A q u ilo d e que esta m o s a falar é da cap acid ad e d e se ser senh or d o seu próprio esp a ço , lo n g e da in terferên cia d os ou tros. Será tod avia prud ente, n este ca so , evitar qualquer risco d e iso la m en to . Para algu n s, isso p od e sig n ificar o treino d e ap tid ões so cia is, en q u an to outros pod erão precisar de d esen v o lv er um in teresse por activid ad es exp ressiv a s, co m o a dança, a m ú sica , o d esen h o , etc. ou d e se e n v o lv e r num trabalho d e ín d ole literária ou cien tífica . D ada a m aneira co m o a n o ssa so cie d a d e está organ izad a, o sen tid o de auton om ia está m u ito d ep en d en te d e se ter um tip o d e em p rego qualquer; isso fa z co m q u e seja esp ecia lm en te im portante qu e o ou vid or de v o z e s c o n sig a m anter o seu em p reg o o u arranjar um a outra ocu p a ção adequada (v er algu n s b on s e x e m p lo s n o C apítu lo 8). O s d ad os de que se d isp õ e apon tam para qu e o trabalho, ou a ctivid ad e eq u iv alen te, pod e proporcionar a o ca siã o para o d e se n v o lv im en to da resp on sab i lidade ind ivid u al, d e acord o co m o tem p eram en to d e cad a um . O u vir v o zes p od e ser d eb ilitan te, ao p on to d e roubar ao o u vid or as en ergias de q u e n e cessita para ap roveitar e ssa s o c a siõ e s. C o m o v im o s no C apítulo 8, se lh es d erem as co n d iç õ e s n ecessá ria s, m u itos o u vid ores de v o z e s m ostram von tad e e cap acid ad e para se adaptar às c o n d içõ es de trabalho, quando estas sã o fle x ív e is e d ão m argem d e m anobra à sua criativid ad e.
R elações de confiança Q u ase tod os o s ou v id o res d e v o z e s q u e aprenderam a v iv er com a sua ex p eriên cia co n fessa m quanto fo i im portante para e le s ter um am igo, um com p an h eiro ou um fam iliar q u e o s o u v isse , o s a ceita sse e o s fiz e sse sen tir em seguran ça. O q u e im porta aqui n ão é a quan tidade d essa s rela çõ es m as a sua qualidade: um a apen as p o d e bastar para proporcionar um verd ad eiro sen tid o d e segu ran ça n os p eríod os em que as v o z e s são particularm ente o p ressiv as. E ncontrar o ap oio adeq uad o n os p eríod o s d ifíc e is é q u ase um a arte. M esm o o s ou v id o res d e v o z e s qu e fa zem q u estão d e evitar qualquer 339
tip o d e tratam ento p siq u iátrico referem que há o ca siõ e s em q u e as v o z e s o s oprim em d em asia d o , o q u e o s leva a aceitar, en tão, o risco d e internam ento hospitalar e fazer um tratam ento p rolon gad o. T o d o s o s qu e d escreveram as suas ex p eriên cia s n o C apítu lo 8 se resguarda ram d e recorrer aos p réstim os das autoridades m éd icas. E m L on dres, por e x e m p lo , a o rg a n iza çã o L am b eth L ink p õ e à d isp o siçã o d o s o u vid ores d e v o z e s um apartam ento alu gad o, o n d e p o d em passar um a n o ite ou algu n s dias e b e n eficia r d o ap oio de outros m em b ros que tam bém são o u vid ores de v o z e s. P orém , n em toda a gen te tem a sorte de ter um a rede d essa s à sua d isp o siçã o; seja co m o for, ta lv e z im porte ainda encontrar form as de se sentir segu ro no seu próprio am b ien te. Por isso , qualquer e sfo rço d e reab ilitação d e v e incluir um a adequada inform ação ao s fam iliares, com p an h eiros, a m ig o s e co n h ecid o s d os o u vid ores de v o z e s e, ainda, a qualquer p esso a qu e co m e le s ten ha um con tacto sig n ifica tiv o . E ssa partilha de inform ação d e v e in clu ir o s seg u in tes pontos: - D eb ater o m ed o e o p reco n ce ito que p ossam ex istir no se io da fa m ília ou n o círcu lo d e a m ig o s a resp eito das v o zes; - O bter da fa m ília um reg isto da duração d os p eríod os em q u e as v o z e s são m ais o p ressiv a s, de m aneira a qu e ela com p rov e que o s ch am ad os e p isó d io s p sic ó tic o s não têm , efec tiv a m e n te , a duração que se pensa. U m a v e z q u e as e m o ç õ e s m uito extrem as p o d em fazer lem brar ep isó d io s p sic ó tic o s, é fundam ental estar cien te da natureza tem porária d essa s fases; - D iscu tir o s o b jectiv o s d e qualquer p o ssív e l tratam ento, por form a a assegurar a co o p eração d e to d o s (ver S e cçã o T écnicas de co n trole da ansiedade, n o p resen te C apítulo); - R eco n h ecer q u e a realid ad e qu otidiana não é a ún ica c o isa que im porta e que o ou v id o r d e v o z e s n ecessita (m uitas v e z e s no sen tid o literal) de tem p o e de esp a ço para se ocupar delas; - Incutir co n fia n ça ao o u v id o r d e v o z e s e , sim u ltan eam en te, pro curar so lu ç õ e s adaptadas à sua exp eriên cia. Isso ajudará a evitar co n flito s e p od e, a lém d isso , ter um e fe ito b e n éfico sobre a duração d os p eríod os d e su jeiçã o ao d om ín io das v o z e s (ver S e cçã o Interacções fa m ilia res e psicose n o C apítu lo 9); 340
- D ep o is d e q u alq u er fa se op ressiv a, analisar em con ju n to aq u ilo que o ou vid or d e v o z e s v iv en cio u c o m o rea cções agrad áveis ou desagrad áveis d o m eio so cio fa m ilia r e a fectiv o , por form a a qu e to d o s p o ssa m aprender co m a ex p eriên cia v iv id a (ver S e c ç ã o Interacções fa m ilia res e psicose n o C apítu lo 9); - R egistar o s e fe ito s b e n é fic o s d e determ inadas rea cções d o m eio na m elh oria d o co n tro le sob re o com p ortam en to, tom an d o assim m ais fácil o m an ejo e fic a z d e qualquer ep isó d io su b seq u en te (ver S ecção Interacções fa m ilia res e p sico se no C apítu lo 9 ). D e v e escla recer-se q u e tod as as m ed id as d e reab ilitação aqui d is cutidas se b aseiam n o s p rin cíp io s da igu ald ad e e da p articip ação das próprias ex p eriên cia s d o ou v id o r d e v o z e s no p rocesso d e ajuda. D este m odo, tod o o a p o io q u e se puder o ferecer terá d e ser co n c eb id o por form a a evitar fa v o recer a d ep en d ên cia e a fom en tar a p o ssib ilid a d e de um crescim en to d o au tod om ín io e da autod eterm inação. O u vir v o z e s rep resen ta um en orm e d esafio: um d e sa fio q u e tanto pode ser en carado co m o u m a am eaça q u e to m a a p e sso a in cap az, com o p od e con stitu ir u m a e sc o la q u e prepara a p e sso a para enfrentar os d e sa fio s da vid a. C on tu d o, o d e se n v o lv im en to d o p od er p e sso a l só poderá ter lugar se o m eio so cio fa m ilia r e a fectiv o p rop orcionar o adequado estím u lo e as reais op ortu n id ad es n o seio da so cie d a d e em geral. O o b jectivo fin al é o d e se n v o lv im en to integral da id en tid ad e d e um a p e sso a a q u em a co n te ce ou vir v o zes.
Medicação e escuta de vozes Adríaan Honig Introdução A ch ám o s por b em in clu ir esta S e cçã o , por ser m u ito freq u en te receitar-se m ed ica m en to s q u an d o o s ou v id o res d e v o z e s recorrem à Psiquiatria. A freq u ên cia d esta resp osta d o s psiquiatras é a co n seq u ê n cia natural da interpretação q u e a m aioria d e les fa z d o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s. Para e le s, o u vir v o z e s p o d e ser um sin al ou um 341
sin tom a d e várias d o en ça s psiqu iátricas, cada um a das q u ais integra outros sin ais ou sin to m a s m ais ou m en os e sp e c ífic o s. S e algu ém vai ao psiquiatra, e ste irá indagar da presen ça d e sses sin a is, acabando por id en tificar a d o en ça m ais p rovável n o ca so . E, c o m b a se n e sse d iag n ó stico , acon selh ará d e seg u id a a m ed ica çã o q u e ach a m ais indicada. E sta S e cçã o procura situar o leitor na p o siçã o do psiquiatra, para o ajudar a p erceb er por q u e razão, quando algu ém d iz q u e o u v e v o z e s, o psiquiatra fa z determ inadas perguntas e receita d eterm in ad os m ed i cam en tos. O n o sso o b jectiv o é tornar m ais co m p r een sív el e m ais p rev isív el o com p ortam en to d o psiquiatra e, porventura, dar um co n tributo para o d e se n v o lv im en to d e um a relação m a is co n fia n te e de um tratam ento m elhor. D o p on to d e v ista p siq u iátrico, há d o is tipos de prob lem as que se p od em resp on sab iliza r p ela escu ta d e v ozes: a p s ic o s e ou a neurose. N a p sic o se , a escu ta d e v o z e s acom p an h a-se, m u itas v e z e s, de p en sam en to c o n fu so e m ed o - m ed o q u e p od e ser d e tal m o d o op res siv o qu e o p a cien te fic a co m p leta m en te petrificad o ou inten sam ente inq uieto. A s v o z e s p o d em ser tão p od erosas que as su as ordens, por m ais bizarras e p reju d iciais q u e sejam , têm de ser o b ed ecid a s, tal é o d om ín io q u e ex erc em sobre o ouvidor. N a n eu rose, e m geral, a p e sso a con tin u a em c o n d iç õ e s d e m anter as v o z e s sob co n tro le, ainda que por v e z e s à cu sta d e um esfo rço con sid erá vel. O p a cien te não se sen te esp e cia lm en te c o n fu so n em com p letam en te à m ercê das v o z e s, e a exp eriên cia, por v ia de regra, não o im p ed e d e p rosseg u ir as a ctivid ad es qu otid ian as norm ais. P assarem os a analisar o s vários tipos d e m ed ica çã o u tilizad a quer na p sic o se quer na n eu rose, b em co m o o s seu s e fe ito s secu n d ários, e dar algu m as su g e stõ e s d e estratégias que se p od em seg u ir quando essa m ed icação é prescrita.
A escuta de vozes e a psico se S e b em q u e a p sic o se p o ssa por v e z e s persistir por um largo p e ríod o, m uitas v e z e s é um estad o tem porário ou m esm o transitório. O estad o de p sic o se p od e caracterizar-se por qualquer d e três tipos de 342
sintom as: um a perturbação d o p en sam en to ord en ad o (d esag rega çã o do p en sam en to); um a perturbação da p ercep çã o (escu ta d e v o z e s); e um a perturbação da v o liç ã o (in cap acid ad e d e ex ercer a von tad e pró pria). Q u and o um a p e sso a está p sicó tica , as v o z e s ab sorvem -n a d e tal m aneira q u e d om in am toda a sua vid a e tu do o m ais decorre em fu nção delas: só a realid ad e das v o z e s e x iste . O m u n d o exterior, qu e para o s outros é o ú n ico m undo real, en con tra-se ob scu recid o. O m un do do p sicó tico m ud ou rad icalm en te e, em co n seq u ê n cia , o com p orta m ento m ud ou tam bém . É um m u n d o em q u e as v o z e s tom aram o poder. N ã o há an á lise ao san gu e n em raios X esp e c ia is q u e ajudem a fazer o d ia g n ó stico d e p sico se; o m éd ico d ep en d e q u ase por co m p leto da inform ação dada p e lo p acien te e seu s fa m ilia res e a m ig o s. A s p ergu n tas q u e é co stu m e fazer qu and o se su sp eita d e p sic o se são, n om ead a m ente: - A lg u m a v e z se sen tiu d om in ad o por certas forças exteriores, que o levaram a pensar ou a fazer co isa s contra su a von tad e? - A lgu m a v e z sen tiu q u e a rádio ou a te le v isã o transm itiam m en sa g en s e sp e cia is dirigid as a si, ou qu e um d eterm in ad o program a d e rádio ou d e telev isã o era feito d e p rop ó sito para si? - A lg u m a v e z sentiu qu e alg u ém lh e lia o u roub ava o s p en sa m en tos? A té agora n ão ex iste co n sen so sobre um a cau sa e sp e cífica da p sico se m as, seja co m o for, n o en ten d er d os psiq u iatras, p arece q u e terá de existir, à partida, um a vu ln erab ilid ad e qualquer. A p sic o se p o d e tam bém estar relacion ad a ou d esen ca d ea r-se co m co isa s co m o a p red isp o sição g en ética (a esq u izo fren ia ? ) e outros factores de vu ln erab ilid ad e (ver F ig. 1). U m a ex p lica çã o corrente d o q u e se p assa na p sic o se é a ch am ad a T eoria d o F iltro. E m co n d iç õ e s n orm ais, to d o s tem o s um a certa n oção de tudo o que se p a ssa dentro d e n ós e à n o ssa v o lta , m as só tem os um a verdadeira p ercep ção das im p ressõ es e im p u lso s q u e con sid era m os im portantes ou n ecessário s; in co n scien tem en te, filtram os o b o m bardeam ento diário por toda a in form ação em o cio n a lm en te carregada 343
T raços de person alid ad e
i
P rob lem as e traum as im portantes
i
Isolam en to so cia l
E x p eriên cias d e in fân cia
t
t
C on stela çã o g en é tic a
D o en ça físic a
Fig. 1 - Psicose: Factores de vulnerabilidade q u e n o s é dirigida. E sta cap acid ad e d e filtrar in form ação encontrar-se -ia en fraqu ecida durante a p sic o se . P or isso , não será de estranhar q u e esta perturbação se fa ça tantas v e z e s acom pan har de m ed o. U m a co n seq u ên cia da avaria d este filtro seria o in d ivíd u o deixar-se invadir por um a en orm e quantidade d e im p u lso s qu e lhe tom am m u ito d ifícil pensar co m clareza. N esta s circu n stân cias, a p e sso a é, m u itas v e z e s, apontada por dizer p a rv o íces contar histórias sem p és n em cab eça, ter um discu rso sem n e x o , e assim por diante. O utro dos sin a is d e perturbação d os p ro cesso s d e p en sa m en to é a p esso a poder ser incapaz d e form ular ou exp rim ir p en sa m en to s - ta lvez durante horas ou m esm o dias a fio . A lém d isso , o p acien te p od e d esen v o lv er id eias fix as, que não são partilhadas por m ais n in gu ém , e persistir n ela s apesar de toda a ev id ên cia em contrário - o s ch am ad os d elírios. P o d e haver ainda alterações da p ercep çã o (ou vir, ver, cheirar e sentir), co m o , por ex em p lo , a escu ta de v o z e s. E m P siquiatria, estes fen ó m en o s d e fin em -se c o m o p ercep çõ es q u e surgem na a u sên cia de um estím u lo extern o; para q u e esta d esig n a çã o se p o ssa aplicar, as v o z e s terão de ser p erceb id as co m o eg o -d istó n ica s (isto é, n ão serem geradas dentro d o ou vid or), terão de ser claras e lo c a liza r-se n o m un do exterior. 344
É p o ssív e l q u e um a p e sso a vu ln erá vel, q u e entra em p sic o se por acção de um d eterm inado factor p recipitante, seja portadora d e um a d isfu n ção cerebral. O céreb ro é um con ju n to organ izad o e m u ito co m p lex o de célu la s e circu ito s n ervosos; entre o s circu itos n e rv o so s d á-se um a con stan te troca d e su b stân cias q u ím icas ch am ad as neurotran sm issores, e o eq u ilíb rio n orm al entre e s s e s n eu rotran sm issores estaria alterado na p sic o se . D aq u i resultaria o ap arecim en to d e a lu ci n ações, alterações do p en sa m en to e m ed o. A lg u n s fárm acos sã o ca pazes de restaurar o eq u ilíb rio entre o s n eu rotran sm issores, esb aten d o assim os sin tom as p sic ó tic o s, c o m o é o ca so da escu ta d e v o zes; e sse s fárm acos ch am am -se n eu ro lép tico s ou tranquilizantes m ajor.
M edicação na p sicose E xistem m ais d e 3 0 n eu ro lép tico s d iferen tes. O prim eiro d e le s, a clorprom azina (L arga ctil® ), fo i d escob erto há m ais d e 4 0 anos e ainda hoje é largam ente utilizad o. O s n eu rolép ticos n ão p rovocam habituação nem d ep en d ên cia. M uitas v e z e s , a sua acçã o d eterm ina o d esap areci m ento co m p leto d os sin tom as p sic ó tic o s, ainda q u e, por v e z e s , só ao fim de algu n s dias ou m esm o sem an as. E m algu n s c a so s, o ú n ico efeito do n eu rolép tico é p rovocar um m aior d istan ciam en to (e m o c io nal) em relação ao s sin tom as p sic ó tic o s, fa zen d o co m q u e as alu cin a çõ es e o s d elírios se d esv a n eça m , em b ora se m antenham p resen tes em fundo. O s n eu rolép ticos p rovocam um a “reparação” parcial ou m esm o total do filtro avariado. O s estím u lo s vo lta m a ser filtrad os, m as, agora, co m a d iferen ça d e ch eg arem , total o u p arcialm en te, d esp ro v i dos da carga em o cio n a l própria (ver F ig. 2 ). O s n eu ro lép tico s têm , além d isso , um a acção p o sitiv a sob re as id eias fix a s e as c o n v ic ç õ e s erróneas (d elírio s), b em c o m o sob re as ex p eriên cia s d e se estar a ser esp iad o, roubado d o s p en sa m en to s ou su jeito à d ifu são d os p en sa m en tos através da rádio e da tele v isã o . O e feito am orteced or sob re as e m o çõ es fa z co m q u e o s n eu ro lép tico s p rovoq u em um sen tim en to de d istan ciação e x c e ssiv a em rela çã o ao m u n d o exterior, d e in sen sib ili dade, de in cap acid ad e d e in icia tiv a ou até d e co m p leta apatia. N o 345
en tan to, sen tim en tos d e ste tip o p od em ser tam bém , por outro lad o, um sin a l d a d o e n ç a p ara a q u al o n e u r o lé p tic o fo i r e c e ita d o . N a esq u izofren ia, por e x e m p lo , a apatia e a falta de in iciativa con stitu em sin ais (n eg a tiv o s) n u cleares.
N o rm a l
N e u ro se
P sic o se
-*• E stím u lo sem c a rg a e m o c io n a l. -**■ E stím u lo co m c a rg a e m o c io n a l. F ig . 2
E stes efe ito s fa z e m co m q u e, por v e z e s, as p esso a s d e ix e m de tom ar a m ed ica çã o , m as n em tod os o s n eu rolép ticos têm o s m esm o s e fe ito s, quer o s p o sitiv o s quer o s ad versos. E stes ú ltim os sã o variá v e is, são qu ase sem p re rev ersív eis e variam de um a p esso a para outra. M as, se algu m d estes e fe ito s desagrad áveis surgir, é im portante tentar encontrar um n eu ro lép tico e sp e c ífic o num a d o se esp e c ífic a q u e red uza tanto quanto p o ssív e l e s s e s efe ito s sem prejudicar a acção an tip sicótica. S em p re q u e um a p s ic o s e rem ite (ou se interrom pe) p o d e haver o risco d e reap arecim ento d o s sin tom as e, por isso , é im portante d etectar os sin ais p r eco ces da aproxim ação de um n o v o ep isó d io - sin ais e sse s qu e p od em in clu ir a lterações d o so n o , aum ento da irritabilidade, d ificu ld ad e de con cen tração , ten d ên cia para o isolam en to so c ia l, e s cuta d e v o z e s m a is in ten sa e im in en te perda de con trole. Q u and o estes sin ais aparecem , é co n v en ien te recom eçar a tom ar o n eu ro lép tico e iden tificar o s precipitantes q u e p o ssa m even tu alm en te estar a reacender 346
a d oen ça. T a m b ém é co n v en ien te debater co m o m é d ic o assisten te os tipos de m ed ica çã o q u e anteriorm ente m ostraram m a is u tilidade. N em sem pre é n ecessário tom ar n eu rolép ticos co n tin u am en te durante lon gos p eríod o s, m u ito em b ora, n o ca so da esq u izo fren ia , p o ssa ser útil fazer u m a d o se d e m an u ten ção. E m geral, a p rescrição d e um a m ed icação a um p acien te in d ivid u al con tin u a a ser um trabalho por m edida. A lgu n s d o s n eu ro lép tico s q u e é m ais co stu m e receitar são: N om e co m ercial
N om e quím ico
O b serv açõ es
L arg actil H aldol, S erenelfi
C lo rp ro m azin a H alop erid ol
H aldol D ecan oato O rap F orte C en ilen e A natensol D ecan oato (não com ercializado em P ortugal) F luanxol F luanxol R etard
D ecan oato de H aloperidol P im o zid a F lu fenazin a D ecan oato de F lu fenazin a P en iflurid ol
C o m p rim id os e injecções C om p rim id os, gotas, in jecções Injecções retard C om p rim id os D rageias Injecções retard C om prim idos de longa acção
F lu pentix ol D eacanoato de F lupentixoi
D rageias Injecções retard
M anejo dos efeitos secundários E feitos secu n d ários são efe ito s n ão p rocurad os, q u an d o se p res creve determ in ad o m ed icam en to, e qu e se m ostram in d esejá v eis por tra zer em m a io r o u m e n o r d e s c o n fo r to ao p a c ie n t e . C o m o s n eu rolép ticos, e s s e s efe ito s d im in u em geralm en te ap ós um a ou duas sem anas de tratam ento. O s efe ito s secu n d ários m a is freq u en tes d os neurolépticos são: trem or grosseiro , rig id ez d o s m em b ros, in són ia, incapacidade d e estar q u ieto , m o v im en to s anorm ais d o corp o e ver tigens. E ainda, em b ora m ais raram ente, v isã o turva, b o ca seca , au m ento do ap etite e perturbações sex u a is. Q uando su rgem efe ito s secu n d ários, p od e seg u ir-se um a das se guintes estratégias: 347
-E s p e r a r e ver: o s e fe ito s secu n d ários, m u itas v e z e s, dim inu em d e p o is da prim eira sem ana de tratam ento; - D im in u ir a d o se do n eu rolép tico ou m udar para outro; - A d icio n a r um com p rim id o e s p e c ífic o para o s efe ito s secu n d á rios: prociclidina (não com ercializad a em P ortugal) ou orfenadrina (N o r fle x ® ). E m P o rtu g a l e stã o c o m e r c ia liz a d o s ta m b ém o b ip eriden o (A k in eto n ® ) e o trih exifen id il (A rtan e® ). E stes ú ltim os fárm acos dim in u em algu n s d o s e fe ito s secu nd ários d os n eu ro lép tico s, co m o a rig id ez dos m em b ros e a incap acid ade de estar q u ieto; m as p o d em agravar outro tipo de e fe ito s secu nd ários, co m o a v isã o turva ou a secura da b oca. O utra d esv a n tag em é qu e, de algu m m o d o , d im in u em a acçã o a n tip sicó tica d o n eu rolép tico. Por isso , é co n v en ien te tom ar o m ín im o d e co m p rim id o s p o ssív e l para os efe ito s secu n d ários d o s n eu rolép ticos. T o m a d os por p eríod os d e 6 m eses ou m a is, o s n eu rolép ticos p o d em p ro v o ca r um e fe ito a d v erso a q u e o s p siq u iatras ch am a m “d iscin ésia tardia” . E sta situação co n siste e m m o v im en to s in volu n tá rios, esp e cia lm en te da lín gu a e d os m ú scu lo s da fa ce, p od en d o atingir tam bém outras partes do corp o. O risco d e d isc in é sia tardia aum enta quando a tom a p rolon gad a d e m ed ica çã o n eu rolép tica se a sso cia a m ed ica m en to s co m o a p rociclid in a e a orfenadrina. In felizm en te, não e x iste n en h um tratam ento e fic a z para estes e fe ito s secu n d ários tardios d os n eu rolép ticos.
A escuta de vozes e a neurose C o m o já referim os, o s ou v id o res de v o z e s qu e p erten cem ao grupo das n eu roses são geralm en te cap azes d e m anter d istân cia em relação às su as v o z e s e são, por v e z e s, até, ca p a zes de m anter as suas activid a d es q u otid ian as, co m m aior ou m en or su ce sso . P or n eu rose en ten d em o s um estado em q u e há sin ais de d o en ça p siq u iátrica m as sem perturbação d os p r o c esso s d e p en sam en to n em do co n tacto co m a realidade, m an ten d o-se portanto em vig o r o teste 348
da realidade. O teste da realid ad e sig n ific a q u e se é cap az d e recon h e cer que aqu ilo qu e se o u v e ou se p en sa n a sce d e dentro e só o próprio o o u v e ou o pensa. P or outras p alavras, a p e sso a in terroga-se a si m esm a, e não ao m u n d o exterior, a resp eito da natureza d aq u ilo que percebe. A lém d isso , a p esso a p o d e n ão se sentir co m p letam en te subjugada por estas p ercep ções n ovas. C om o atrás d issem o s (ver S ecçã o A personalidade dissociada, C ap ítu lo 9 ), o s factores cau sais das n eu roses p od em resid ir m ais em co n flito s e m o cio n a is do q u e, propria m ente, num a d isfu n ção cerebral. A lgu m a s a fe c ç õ e s p siq u iátricas ch am ad as P erturbações dissociativas tam bém in clu em a lu cin a çõ es. D isso c ia ç ã o sig n ifica , à letra, “ se paração”, “d iv isã o ”; n esta situ ação, o in co n scien te afasta ou recalca algum a c o isa (m u itas v e z e s um traum a p sic o ló g ic o grave), d e m aneira que o sen tim en to ou a record ação a sso cia d o s n ão sã o p erceb id o s p elo Eu. E ste recalcam en to é um m eca n ism o d e d e fesa natural, m as, a certa altura, se c o m eça a ter vid a própria, acab a por ser m ais p reju d icial do que protector. A s perturbações d isso cia tiv a s in icia m -se m uitas v e z e s em factos am eaçadores graves d o p assad o, c o m o um acid en te d e a u tom óvel, um a v io la çã o , etc. (ver S e cçã o A p erso n a lid a d e dissociada, C apítu lo 9), em que a p esso a se d efen d e d e um a situ a çã o tão in tolerável co m o im p ossível de contornar d estacan d o parte d o seu próprio E u. A parte do Eu (Ego) qu e se d estaca p o d e ser um a parte qu e n ão esteja sob am eaça nem a ser atacada d e m om en to; p assad o o a con tecim en to traum ático, a parte d estacad a p o d e reu n ir-se d e n o v o ao E go ou p ros seguir um a vid a própria (ver F ig. 3 ). S e e ssa separação con tin u a (Ideia fixa), a parte destacad a p o d e ser id en tificad a p elas outras partes do Ego co m o um a v o z , qu e p od e reaparecer p osteriorm en te em o ca siõ es de stress ou em qualquer n o v a co n fron tação c o m o traum a am eaçador original. E stas situ a çõ es p od em fa zer-se acom pan har das m esm as em o çõ es qu e foram exp erim en tad as durante o traum a in icial.Q uando se su sp eita d e um estad o d isso cia tiv o , p o d e fa zer-se as segu in tes perguntas: - A lgu m a v e z tev e a ex p eriên cia d e n ão ser cap az d e se lem brar d o que fe z durante horas ou dias? 349
- A lg u m a v e z deu c o n sig o num lugar sem fazer a m ín im a id eia de c o m o lá ch eg o u ou d o qu e lá esta v a a fazer? -i A lg u m a v e z sentiu q u e esta v a a ob servar-se a si m esm o fora do seu corp o, co m o se e s tiv e s se a ob servar-se de lo n g e ou a assistir a um film e sobre a sua p esso a ?
neurolépticos. N e ste s c a so s, p orém , n ão é por cau sa d os seu s e fe ito s an tip sicóticos m as p e lo s seu s efe ito s sed a tiv o s. A prin cipal v a n tagem 6 que o seu u so , m esm o p rolon gad o, n ão p rovoca hab itu ação. O s m ed ica m en to s receita d o s na n eu rose p od em incluir: N om e com ercial
N om e quím ico
T ip o de acção
S erenai L orenin, L orsedal (não com ercializado em P ortu gal) M elleril N eu leptil (não com ercializado em P ortu gal)
O xazepam L orazepam O pipram ol T io rid azin a P ericiaz in a P ro m azin a
S ed ativ o S ed ativ o A n tid ep re sso r N eu ro lé p tico N eu ro lé p tico N eu ro lé p tico
O s efe ito s secu n d ários h ab ituais d os sed a tiv o s in clu em so n o lên cia , reacções lentas, em b otam en to d o a fecto e, o ca sio n alm en te, d e sin ib iç ã o paradoxal. T al co m o na p sic o se , o m ed ica m en to d e e sc o lh a d ep en d e m uito da situ ação d o in d iv íd u o e requer um a cu id ad osa n e g o cia çã o entre o m éd ico e o p acien te.
M edicação e neurose A o contrário da p sic o se , a n eu ro se requer apenas um a m ed ica çã o d e a p o io , para reduzir o s sen tim en to s d e m ed o e algu m as sen sa çõ es física s q u e o costu m am acom pan har (falta de ar, p alp ita çõ es, etc.). O s m ed icam en tos m ais u tiliza d o s n estas circu n stân cias sã o o s sed a tiv o s, qu e em geral só são receita d o s por curtos p eríod os (n o m áxim o 14 dias seg u id o s), d ev id o à p o ssib ilid a d e d e habituação. S ã o p referíveis o s sed a tiv o s d e curta duração d e a cçã o , porque o s fárm acos sed a tiv o s d e a cçã o lon g a ten d em a acu m u lar-se no organ ism o e a acentuar p rogressivam en te o s e fe ito s sed a tiv o s. A lém dos vários tipos de b en zod iazep in as (por ex em p lo , V a liu m ® ), r e c e ita -s e , p o r v e z e s , o u tr o tip o d e m e d ic a m e n to s , c o m o o s 350
C onclusão A escu ta d e v o z e s tanto p o d e acon tecer na p sic o se c o m o na n eu rose e, por isso , é im p ortan te q u e o psiquiatra a v alie qual das situ a çõ es está em jo g o , antes d e form u lar qualq uer acon selh a m en to sob re a m ed icação a tom ar. O s n eu ro lép tico s são p referíveis n os c a so s em qu e a escu ta d e v o z e s se fa z acom pan har doutros sin tom as p siq u iátrico s, co m o perturbações d o p en sam en to e alterações d o com p ortam en to d e certa gravid ad e. P or outro lad o, na n eu rose - isto é, na a u sên cia de perturbações ev id en tes d o p en sa m en to e d e alterações d o teste da realidade - é p referív el u tilizar o s sed a tiv o s co m o co m p lem en to das restantes m ed id as terap êu ticas. E sta d iv isã o da escu ta d e v o z e s em duas categorias, p s ic o s e e neurose, é um b o ca d o sim p lista; co m o a co n tece co m a m aioria d os 351
sistem a s d e c la ssific a ç ã o , na prática há um a grande interpenetração entre as duas ca teg o ria s. Im porta ter em aten ção que m uitas v e z e s a m ed ica çã o , só por si, n ão é su ficien te para aliviar o s sin tom as e perm itir a retom a de um a vid a norm al: em regra, a m ed ica çã o não p assa d e um a ajuda ao resta b elecim en to. E m co o p eração co m o m éd ico prescritor, o pacien te qu e o u v e v o z e s p o d e ser cap az de descob rir o tipo de m ed ica çã o m ais útil para aliviar o s seu s sin tom as e facilitar o ê x ito doutros tipos de tratam ento.
11 COMPREENDER AS VOZES M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r “ S e rá q u e s e m p re h o u v e e s e m p re h á -d e h a v e r u m a te n sã o n a tu ra l e n tre v e r e o u v ir, e n q u a n to v ias do sa b e r? O u e la é m ais um re fle x o d a te n sã o q u e ex iste e n tre o m o d o c ie n tífic o d e o b te r in fo rm a ç ã o e o m o d o h u m a n ístic o d e c o n h e c e r o s s o fre d o re s ? ” (S ta n le y W . Ja c k s o n , 1992,
American Journal of Psychiatry)
Para que é precisa uma linguagem? A P siquiatria criou um a lin gu agem sim p les q u e perm ite ao p siq u ia tra fazer o d ia g n ó stico d e um a p e sso a co m b ase em con ju n tos de sin tom as, ou sín d rom es, q u e p o d em in clu ir a escu ta d e v o z e s. E ssa lin guagem é su ficien te para fin s d ia g n ó stico s, m as reflecte um in te resse m u ito lim itad o p elas ex p eriên cia s d e escu ta d e v o z e s propria m ente ditas. Q uando se quer falar d essa s ex p eriên cia s, há m u itos a sp ectos q u e in teressam , por ex em p lo se se quer com p reen d er, em terapia, o q u e se p assa na ex p eriên cia d e o u vir v o z e s ou d e aprender a lidar co m ela s. A P siq uiatria trad icional n ão está interessad a, d esig 352
353
n ad am en te, n o con teú d o daquilo q u e as v o z e s d izem à p e sso a que as ou v e. Para fin s d iagn ósticos, o con teú d o tem p ou co interesse, na m edida em qu e essa s diferen ças d e con teú d o não con stitu em um critério de d ia g n ó stico . E , no en tanto, aq u ilo q u e as v o z e s d izem ao pacien te e n v o lv e -o m uito inten sam ente e fá -lo sen tir-se im p ression ad o, já que é a lg o qu e tem a ver co m a sua p e sso a , o s seu s v a lores, sen tim en tos e p assad o b io g rá fico , e se reflecte nas suas em o ç õ e s e no seu co m portam ento. Para criarm os um a lin gu agem q u e n o s perm ita falar da exp eriên cia d e ou vir v o z e s, d e se n v o lv em o s um a en trevista plan ificad a. Para e sse efe ito , partim os da inform ação forn ecid a p elo s próprios ou vid ores de v o z e s, na seq u ên cia d o program a te le v isiv o de que fa lám o s na S ecçã o Os p rim ó rd io s , do C apítu lo 2. E sse p a sso rev elo u -se verdadeiram ente d e c isiv o , in flu en cian d o, n om ead am en te, a n o ssa m aneira d e fazer pergun tas. S e tiv é sse m o s partido d o s n o sso s próprios sistem a s de cren ças p sico ló g ica s e psiqu iátricas, as perguntas q u e faríam os seriam m uito diferentes das que agora fa zem o s na n o ssa E ntrevista Estruturada. P or ex em p lo , d ep o is do program a te le v isiv o , ao telefo n e, cada qual d isse de sua ju stiça a resp eito das v o z e s q u e o u v ia , dando relevo particular a este ou àq u ele asp ecto. U m d os telesp ectad ores d isse que o u v ia 10 v o zes; por isso , pergun tam os agora na n o ssa E ntrevista: “Q uantas vozes é que você o u ve? ”. O ra, co m o psiquiatra, eu apenas perguntaria: “V ocê ouve vozes?”. U m outro d isse q u e o u v ia a v o z da m ãe, fa lecid a há m uitos anos. T ran sform ám os o ca so num a pergunta: “É capaz de reconhecer a identidade da vo z? ”■ C om o psiquiatra, eu apen as perguntaria: “A sua v o z v em d e dentro de si ou é de outra p esso a ? ” e não estaria interessado em saber quem é q u e falava à p esso a ou que im portância é que tinha para a sua vid a a relação que m antinha co m a v o z , m as interessar-m e-ia som en te o facto de a v o z ser interpretada co m o “não sen d o a própria p e sso a ”. M u itos telesp e c tadores do program a disseram , ao telefo n e, que o u v ia m v o z e s p rove n ien tes d os d eu ses ou do contacto telep á tico co m p esso a s v iv a s. N a n o ssa E n trevista in clu ím o s, en tão, a pergunta: “D o nde é que você
p en sa que as vozes vêm ?”.
T al co m o os p rofissio n a is de S aú d e M en tal, o s o u vid ores de v o zes procuram um sistem a de crenças qu e lhes perm ita com preend er a experiência. P o r essa razão, tivem os de estabelecer contacto íntim o 354
com os m uitos e variados sistem as de referência que os ou vidores de vozes utilizam p a ra explicar a sua experiência (ver C ap ítu lo 7 ). C o m o
psiquiatra, só estaria in teressad o na q u estão d o teste da realid ad e, e perguntaria sim p lesm en te: “V o c ê acredita m esm o qu e D eu s p o d e falar co n sig o ? ”. E , n e sse ca so , a co n v ersa pod eria ficar su b itam en te inter rom pida ou acabar num a d isp u ta sem saída. C o m a ab ord agem aberta q u e en sa iá m o s, ap ren d em os c o m o s ou vid ores d e v o z e s por qu e é q u e p en sam qu e D eu s fala co m e le s, por causa de qu ê e d e qu e m an eira fala. A ssim , ficá m o s a saber q u e a interpretação é p o ssív e l m as n ão é o asp ecto essen c ia l. S a b em o s agora que o essen cia l é o co n teú d o , as características e, em m u itos ca so s tam bém , a iden tid ad e v iv en cia d a das v o zes.
N ós não pa ssá m o s a a cred ita r que D eus p o ssa fa la r connosco no m esm o sentido em que nós fa la m o s uns com os outros. M as ficá m o s, sem dúvida, a sab er que cap ta r a fa la de D eus p o d e estar, de m uitas m aneiras, em relação com a história biográfica de quem a escuta.
P ode representar, por e x e m p lo , a afirm ação d e d eterm in ad os id ea is, com o na relig iã o , ou representar a figura d e ed u cad ores q u e, durante a n o ssa in fân cia, se com p ortavam c o m o d eu ses em relação aos q u ais nos sen tíam os im p oten tes e ob rigad os a ob ed ecer, etc.
P ara p o d erm o s com preen der o O utro, tem os que fa ze r a tra n sp o sição do sistem a de crenças do ouvid or de vozes p a ra o nosso p ró p rio sistem a de crenças. A o con trá rio da P siquiatria tradicional, nós não negam os lim inarm ente a experiência só p o rq u e a explicação qu e o ouvidor de vozes nos dá é in verosím il ou fa lsa aos nossos olhos. A inda que essa explicação fo s s e com pletam ente fa lsa no nosso sistem a de crenças, a experiência, essa, está lá e p o d e fa ze r todo o sentido.
Objectivos e estruturação da Entrevista A lém da procura de um a lin g u a g em qu e perm ita falar da ex p eriên cia de ouvir v o z e s, o s o b je ctiv o s da E n trevista preten dem ultrapassar o acanham ento d e falar d aq u ilo q u e se o u v e m as n ão se v ê , estruturar o d iá log o acerca da ex p eriên cia e prom over a com p reen são da relação entre a escu ta de v o z e s e a h istória b iográfica das p esso a s. U ltrapassar 355
o acanh am ento é u m a n e cessid a d e co m u m ao ou vid or de v o z e s e ao p rofission al de saúd e, já q u e am bos aprenderam , nas suas in teracções so cia is ou durante o treino p rofissio n a l, que o m elhor é n ão falar d essa s ex p eriên cia s. P or isso , é natural que nenh um d e les saib a co m o falar das v o z e s e q u e am b os tenham n ecessid a d e de um a certa estru tura para estar em c o n d iç õ e s d e dialogar. O derradeiro o b je ctiv o , com p reen d er a relação da escu ta d e v o z e s co m a história b io g rá fica da p esso a , v e io d os n o sso s e stu d o s-p ilo to e da in v estig ação da literatura, que to m a m ev id en te que a escu ta de v o z e s se p od e radicar profun dam ente na biografia da p esso a . A estrutura principal da E ntrevista assen ta n o s seg u in tes pontos: - A sp ecto s da ex p eriên cia em si; - C aracterísticas das v o z e s, co m o idade, género e carácter; - O rgan ização das v o z e s na sua relação co m a p essoa; - D esen ca d ea n tes q u e p rovocam ou esbatem as v o zes; - C ircun stâncias relacion ad as co m o in ício da experiência; - In flu ên cia das v o z e s n o b em -estar da p e sso a que as ou ve; - Identidade das v o zes; - Interpretação; - E stratégias para lidar co m as v o zes; - H istória ju v e n il e ex p eriên cia s traum áticas; - R ed e social; - H istorial d o s cu id a d o s p esso a is de saúde. N ão é obrigatório segu ir tod o este rol de assu n tos, em b ora o c o n sid erem os m uito im portante. M as o que é m esm o im portante, de acordo co m o estu d o -p ilo to , é q u e não se pergunte de chofre: “O que é que as v o z e s lh e d izem ? ” . A n tes de m ais, porque as p esso a s, m uitas v e z e s, têm vergon h a d aq u ilo qu e as v o z e s lh es d izem , porque falam de m u itos asp ectos da sua vid a nas m ais d iversas circu n stân cias. T a m b ém não será m u ito fá cil, para as p esso a s, responder à pergunta: “O qu e é que v o c ê p en sa d isso ? ”. O m elhor será inquirirm os de form a indirecta, procurando a lgu n s ex em p lo s ao divagar p elo s m ais variad os assu n tos. R ela cio n a n d o o con teú d o co m o co n tex to , as p e sso a s falarão co m m ais fa cilid a d e e sim p licid ad e do con teú d o das suas v o z e s. 356
Entrevista e resultados T ratarem os em seg u id a das perguntas da E n trevista, ten d o em conta a sua u tilização n o s C u id ad os d e S aú d e M en tal. A o d escrev erm o s e analisarm os o s resu ltad os da E ntrevista, seleccio n a rem o s o s item s m ais úteis aos p ro fissio n a is para analisar as ex p eriên cia s e com p reen der o s o u v id o res d e v o zes.
A percepção A E n trevista c o m eça por fazer perguntas sob re a p ercep ção de v o zes prop riam ente dita e as características d e ssa p ercep ção. E sta questão in teressa aos p ro fissio n a is, na m ed id a em q u e e le s costu m am querer saber, antes d e m ais nada, se a p e sso a tem ou n ão aq u ilo que em term os técn ico s se ch am a a lu cin a çõ es aud itivas. É por isso que, na n ossa E n trevista, fa zem o s perguntas sobre as características prin cipais dum a alu cin a çã o . U m a das características é “o u vir um a v o z ” que se d irige à p e sso a , co m o se pod eria dirigir um a p e sso a qualquer, em bora sem a p resen ça o b serv á v el d e q u em fala. U m a segu n d a característica prin cipal é qu e a v o z é v iv en cia d a co m o “n ão e u ” , em lugar de ser v iv en cia d a co m o “e u ” - co m o no d iá lo g o interior, quando falam os co m o s n o sso s b otõ es. O seg u n d o asp ecto da en trevista qu e in teressa aos p r o fissio n a is, para fin s d ia g n ó stico s, são as características das a lu cin a çõ es aud itivas em causa: isto é, referem -se a um a d o en ça e sp e c ífic a ou sig n ifica m , sim p lesm en te, q u e a p e sso a n ão está bem ? N o s instru m en tos d e d ia g n ó stico p siq u iátrico q u e se u tilizam em todo o m un d o n o estu d o da esq u izo fren ia , co m o é o ca so d o P SE -P r e s e n t State E xam in ation (W in g , 1 9 7 0 ) - p ressu p õ e-se qu e ex iste um a d iferença entre “alu cin a çõ es verdadeiras” e “p seu d o -a lu cin a çõ es”. A s a lu cin a çõ es au d itivas verd ad eiras estariam relacion ad as co m a esq u izofren ia, en q u an to qu e as p seu d o -a lu cin ações estariam em rela ção co m as ch am ad as perturbações d isso cia tiv a s. A s características das a lu cin a çõ es au d itivas verd ad eiras são: - A v o z é escu tad a p e lo s o u v id o s, co m o se v ie ss e d e fora; 357
- A v o z é perceb id a co m o “não e u ”; - A p e sso a não co m u n ica n em m antém d iá lo g o co m a v o z. D iz -se q u e as p seu d o -a lu cin ações são d iferen tes, porque: - S ão o u vid as dentro da cabeça; - S ão p erceb id as “com o se não fo sse m e u ”; - A p e sso a é cap az d e com u n icar co m ela s. A prim eira secçã o do n o sso Q u estion ário abrange estas características (ver Q uadro 5). QUADRO 5 C arac terístic as d a p ercep ção e d a com unicação com a(s) voz(es), em três gru po s E sq u iz o fre n ia P e r tu rb a ç ã o d iss o c ia tiv a
Onde são ouvidas as vozes N os ouvidos N a cabeça
Comunicação com as vozes
N ão consegue falar com a voz F ala co m a voz
N ão p a c ie n te s
n-18
n-15
n-15
13 9
9 11
7 10
6 12
10 5
5 10
outros não. É im portante ter em con ta q u e n ão ex istem quaisq uer cracterísticas e sp e c ífic a s qu e in d iq u em a ex istên cia d e d o en ça m ental. P or isso , o d ia g n ó stico só p o d e ser fe ito co m b a se na ex istên cia doutros sin tom as, ex clu in d o os q u e são parte da reacção da p e sso a às v o zes.
Vozes e outras percepções extra-sensoriais H á ca so s em qu e as v o z e s são a ú n ica p ercep ção extra-sen sorial presente, em bora a p e sso a p o ssa exp erim en tar ainda outras m od alid a d es d e P E S, co m o seja o ca so d e p ercep çõ es v isu a is, o lfa ctiv a s e tácteis (ver S e cçã o A escuta de vozes e a parap sicologia, C ap ítu lo 7). E razoável que se pergun te por ela s, um a v e z qu e p od em trazer pro b lem as às p e sso a s e fazer parte do c o m p le x o d e rea cções às e m o çõ es esm agad oras d esen cad ead as p or m em ó ria s d e a co n tecim en to s traum á tico s, etc. N o n o sso estu d o, em 21% d os qu e resp on deram só havia v o zes; em 52% h avia tam bém im ag en s v isu ais; em 31% ocorriam tam bém ch eiros a flo res, a q u eim ad o ou a esperm a; e em 42% havia igu alm en te sen sa çõ es corp orais, d o g én ero sen tir-se to ca d o por al gu ém ou sentir b ich os a subir p e lo corp o. F in alm en te, 51% d os que responderam d isseram qu e tinham 3 ou m ais tip os d iferen tes d essas p ercep ções.
Características das vozes N e ste estu d o, os resu ltad os não m ostram qualquer relação e sp e c í fica entre as ch am ad as a lu cin a çõ es verd ad eiras e a esq u izo fren ia , n em , por outro lad o, entre as p seu d o -a lu cin a çõ es e as perturbações d isso cia tiv a s. D e igual m o d o , os grupos “não p a cien tes” e “p a cien tes” não d iferem entre si a este resp eito. A lg u n s p acien tes tanto o u v em v o z e s n o s o u v id o s co m o na cab eça. N a n o ssa am ostra, o s p acien tes esq u izo frén ico s até falavam m ais freq u en tem en te co m a v o z do que o s p acien tes d isso cia tiv o s. O s não p acien tes tam bém ou viam v o z e s n os o u v id o s e na cab eça e alguns d eles falavam co m ela s, enquanto 358
P ergun tam os p ela s características das v o z e s, co m o o seu núm ero, gén ero, idade, m aneira d e falar, a ssu n tos d e qu e falam e aq u ilo que d izem concretam en te. Falar d estes item s tem d o is o b jectivo s. O pri m eiro é estim ular o ou vid or d e v o z e s a fam iliarizar-se m ais co m ela s, co m o na T écn ica d e C oncentração nas V o z e s, d esen v o lv id a por B entall e H ad dock (ver a resp ectiva S e c ç ã o n o C ap ítu lo anterior). O ou vid or de v o z e s vai aprend end o a falar d elas p rogressivam en te, do m esm o m odo que se aprende a falar das p e sso a s. E quanto m ais se fala das p esso a s m ais se aprende a c o n h ecê-la s. Falar das v o z e s red u z a an359
sied ad e e a freq u ên cia co m q u e ela s aparecem (H ad d ock et al., 1 996) e fa z, sim u ltan eam en te, co m q u e o ou v id o r se fa m ilia rize co m a p resen ça d elas. O seg u n d o o b jectivo d e falar das características das v o z e s é , atra v és da an álise da sua m aneira d e com u n icar co m a p esso a , obter m ais escla recim en tos sobre o seu sig n ifica d o para a vid a qu otidiana do ou vid or (R o m m e e E sch er, 1 996). A id ad e, por e x em p lo , p o d e ind iciar em que altura da v id a da p e sso a se deu o even tu al a co n tecim en to traum ático. O g én ero (m a s cu lin o ou fem in in o ) e a m aneira de falar (v o lu m e, agressiv id a d e, in ten ção construtiva ou d estru tiva) p od em dar in d ica çõ es sob re o carácter da p e sso a que as v o z e s representam . P o d em o s ilustrar m elhor o qu e acab ám os d e ex p o r c o m o segu in te exem p lo:
Uma senhora de 28 anos de idade começara a ouvir uma voz masculina que se identificava como Steve. Steve dominava-a por completo: chegava a dizer-lhe o que ela havia de comer e de que maneira o devia fazer. Ela tinha lapsos de consciência que a assustavam imenso. Depois desses lapsos de consciência mais ou menos prolongados, acontecia-lhe dar consigo mesma toda ensanguentada na casa de banho ou, então, a passear na praia e coisas assim. Durante a terapia a que se submeteu, acabaria por reconhecer que Steve tinha todas as características do seu padrasto, que tinha abusado dela sexualmente. Tanto a voz de Steve como aquilo que dizia eram muito seme lhantes à voz do padrasto e àquilo que ele lhe dissera quando abusou dela. Até o nome da voz lhe fazia lembrar o padrasto. E sta m aneira de falar d o con teú d o e d o carácter das v o z e s é um a form a d e analisar a ex p r essiv id a d e m etafórica das v o z e s (ver S e cçã o R ea b ilita çã o , S u b se c ç ã o Inform ação de qualidade, C ap ítu lo 10). A ex p ressiv id a d e m etafórica das v o z e s con tém elem en to s que in d i cam as su as rela çõ es c o m a biografia da p esso a . P or exem p lo: 1 - 0 con teú d o do q u e a v o z d iz à p e sso a p o d e reflectir aq u ilo q u e p esso a s sig n ifica tiv a s lh e d izem . 2 - A interacção entre as v o z e s e a p e sso a que as o u v e p o d e r e fle c tir a interacção desta co m p e sso a s sig n ifica tiv a s, co m o no ex em p lo atrás referid o. P o d e reflectir ainda a m aneira co m o a p esso a co stu m a resolver o s seu s p rob lem as ou co n flito s. P od e ser o ca so , por ex em p lo , 360
de um a p e sso a q u e d e ix a tod as as d e c isõ e s para as v o zes; u m a p e sso a assim irá ter d ificu ld a d e em fazer esco lh a s por si própria sem p re qu e se ex ig ir d ela um a d e cisã o em situ a çõ es reais. N ão é correcto co m eça r um a an álise da ex p ressiv id a d e m etafórica das v o z e s quando o p a cien te ainda está m u ito ch ocad o c o m a e x p e riência que atravessa. P rim eiro co m eça m o s por abordar as caracteríticas das v o z e s, seg u in d o d e p o is tod os o s p assos da en trevista, crian d o ao m esm o tem p o um am b ien te d e m aior con fia n ça , qu e perm ita falar das v o zes. É m elh or falar da ex p ressiv id a d e m etafórica das v o z e s nu m a altura em que a p e sso a já seja cap az d e falar d elas à von tad e - n aq u ela fase que d esig n a m o s por “fa s e de org an izaçã o” (ver S e cçã o F a se de organização, C ap ítu lo 2 ). N u m a p ersp ectiva d e in v estig ação , as carac terísticas das v o z e s p o d em ser encaradas co m o parte da sua gravid ad e e , p o s s iv e lm e n t e , c o m o e le m e n t o s d e p r e d ic ç ã o d e u m a d escom p en sa çã o p sicó tica .
Organização das vozes A s perguntas d esta se c ç ã o da E n trevista têm o m esm o p rop ósito que as perguntas da se c ç ã o anterior. P o d em dar-nos in d ica çõ es sobre o tipo de in teracções q u e se esta b elecem entre o ou vid or d e v o z e s e as outras p e sso a s nas situ a çõ es reais da vid a, p resen tes e p assad as. P odem ainda dar-nos a lg u m a in form ação sob re a form a c o m o aq u eles que as v o z e s rep resen tam co m u n ica m entre si e co m o com p rom etem o ouvidor n e ssa co m u n ica çã o . P or exem p lo: d irigin d o-se d irectam en te ao ouvidor, na segu n d a p e sso a gram atical; ou falan do d ele p elas co sta s, na terceira p e sso a gram atical; ou , ainda, coch ich a n d o u m as co m as outras a resp eito d e le , esp ica ça n d o -o , segred an d o um as co m as outras, falando em c ó d ig o , etc. U m outro m o tiv o por q u e fa zem o s estas perguntas resid e n o facto de na P siquiatria trad icion al se estar in teressad o em saber se as v o z e s falam com (isto é , na segu n d a p esso a ) ou do (ou seja, na terceira p essoa) ouvidor, m u ito em b ora este critério, usad o co m o critério diag361
n ó stico fin a l, n ão seja su ficien tem en te d iferen ciad or para constituir grup os c la ssific a tiv o s claros entre o s o u vid ores d e v o z e s . Q u ase todos os ou v id o res de v o z e s (96% ) as o u v em dirigir-se-Ih es na segun da p essoa. N a P siquiatria tradicional o e q u ív o c o p o d e ter estad o em não p erceb er q u e um a p e sso a p o d e ou vir m ais d o que um a v o z e que as v o z e s têm características diferen tes um as das outras. E m P siquiatria não era co stu m e ind agar-se d o núm ero de v o z e s o u v id a s n em inquirir d o seu carácter. N o en tanto, ou vir v o z e s que a g em cada um a à sua m aneira p o d e m u ito b em querer sign ifica r q u e se trata d e m em órias reflectid as so b a form a d e diferen tes p esso a s, co m as q u ais o in d iv í duo interagiu, p o sitiv a ou n egativam en te, das m ais d iv ersa s m aneiras.
p a cien tes e n ão-p a cien tes. E ssa s d iferen ças en con tram -se ilustradas no Q uadro 6. QUADRO 6 In flu ên cia d as vozes na p essoa q u e as ouve E sq u izofren ia P ertu rb a çã o d isso ciativa
N ão-p a cien tes
n=18
n=15
n=15
V ozes positivas V ozes negativas
15 (83% ) 1 8 (1 0 0 % )
10 (67% ) 1 4 (9 3 % )
1 4 (9 3 % ) 1 0 (6 7 % )
Influência das vozes e suas consequências
P redo m in an tem en te p ositivas P redo m in an tem en te negativas
2 1 2 (6 7 % )
2 1 0 (6 7 % )
11 (78% )
O s ou v id o res diferem uns dos outros con form e a in flu ên cia que as v o z e s têm nas su as e m o ç õ e s e no seu com p ortam en to. E sta in flu ên cia varia em fu n çã o das várias v o z e s que a p e sso a o u v e. A m aior parte das p e sso a s q u e o u v em v o z e s tanto o u v e v o z e s p o sitiv a s co m o n eg a tivas, m as o e fe ito geral e as co n seq u ên cia s p o d em ser diferentes. É por isso qu e n ós perguntam os: “V o c ê o u v e v o z e s p o sitiv a s? ”; “E elas o qu e d izem ? ”. E ainda: “ V o c ê o u v e v o z e s n ega tiv a s? ” ; “E ela s o que d izem ? ”. S eg u id a m en te, in d agam os do seu efeito geral - q u e p od e ser p red om in an tem en te p o sitiv o , p redom inantem ente n eg a tiv o ou neutro. D ep o is, in q u irim os das co n seq u ên cia s, co m o ter m ed o das v o zes, sen tir-se b em c o m ela s, sen tir-se in com od ad o por e la s, ter a vid a diária perturbada p ela s v o z e s , sen tir-se ajudado por ela s, etc. N a P siq uiatria tradicional este tipo de perguntas con cen tra-se na p erigosid ad e: “ V o c ê receb e ordens das v o z e s? ” ou “E las d izem -lh e para v o c ê fazer m al a alg u ém ? ” ou , ainda, “V o c ê é ca p a z d e resistir a essa s ord en s?” . T am b ém fa zem o s perguntas sobre a ex istên cia de v o zes im p erativas, m as procuram os aprofundar a in flu ên cia que as v o z e s ex erc em sobre q u em as ou v e. E stam os sa tisfeito s por term os p roced id o d este m o d o , porque esta inform ação viria a perm itir esta b elecer um a im portante d istin çã o entre
M edo d as vozes Incom odado pelas vozes
1 4 (6 8 % ) 1 6 (8 9 % )
11 (78% ) 13 (87% )
4 (27% )
P ertu rbação d a vida diária
1 9 (1 0 0 % )
1 4 (9 3 % )
5 (33% )
362
E ste quadro com p rova, antes d e m ais nada, a sem elh a n ça ex isten te entre o s 3 grup os. E m tod os e le s se v erifica a p resen ça d e v o z e s p o sitiv a s, isto é, v o z e s qu e elo g ia m ou d ão a p o io a q u em as o u v e. M as em tod os e le s, tam bém , se v erifica a p resen ça d e v o z e s n ega tiv a s, isto é, v o z e s que criticam q u em as o u v e. A gran d e d iferen ça, n o entanto, resid e em qu e o s d ois prim eiros gru p os (p a cien tes) p erceb em as v o zes c o m o p redom in an tem en te n egativas (67% ), en qu an to qu e no terceiro grupo (n ão-p a cien tes) n ão su rge n in gu ém co m v o z e s pred om in an te m en te n egativas; p e lo contrário, aparecem an tes v o z e s pred om in an te m en te p o sitiva s (78% ). V erifica -se tam bém qu e a m aioria d os p a cien tes, isto é, d os in d iv íd u o s qu e integram o s d o is prim eiros grup os, tem m ed o das v o z e s, en qu an to qu e no grupo d o s n ão -p a cien tes n in gu ém tem m ed o d elas. A m aioria d os p acien tes sen tia -se in com od ad a co m as v o z e s (89% no grupo “E sq u izo fren ia ” e 87% n o grupo “Perturba ç õ e s d isso cia tiv a s”) e, um a v e z m ais, q u ase n in gu ém d o grupo “ N ão363
-p acien tes” se sen tia in com od ad o por ela s. F in alm en te, m as não m en os im portante, v erificá m os que tod os o s p acien tes sofriam perturbações na su a vid a diária por cau sa das v o z e s , enquanto q u e isso era m en os freq u en te n o grupo d os n ã o -p a cien tes. A d iferen ça entre o s d ois gru p os d e p acien tes e o grupo d e n ã o -p a cien tes no que resp eita à in flu ên cia das a lu cin a çõ es au d itivas é já em si m esm a um a razão c o m p reen sív el para o facto de um as p e sso a s s e tom arem p a cien tes e outras não.
História da escuta de vozes e circunstâncias relacionadas com o seu início E m C u id ad os de Saú de M ental é bastante co m u m perguntar-se p e lo in ício das q u eix as, m as não por esta ou aqu ela circu nstância em particular. N o n o sso estu d o h avia duas ra zões para o fazer: a prim eira era o n o sso in teresse n o fen ó m en o de escu ta de v o zes; a segun da resid ia no facto d e, no n o sso p rim eiro estu d o (ver C apítu lo 2 ), term os v erificad o que 70% da p op u lação q u e estu d ám os tinha co m eça d o a ou vir v o z e s d ep o is da ocorrên cia d e d eterm inado tipo de traum as. Por isso, um item im portante, na escu ta d e v o z e s, é reunir inform ação sobre e sse s traum as, razão por q u e tiv em o s in teresse em averiguar co m o as co isa s se passavam n os gru p os de p acien tes e n o grupo de n ão-p acien tes. A s perguntas sobre este tem a sã o form u ladas de um m od o um tanto esp ecia l. C o m eça m o s por perguntar em que idade a p e sso a ou viu v o z e s p ela prim eira vez; seg u id a m en te, so licita m o s-lh e que recue na m em ória até essa idade, n os fa le da sua situação d e vid a n e ssa ép oca e n os d iga se a lg o d e esp ecia l teria a co n tecid o en tão. Partindo dum a lista derivada do n o sso prim eiro estu d o, fa zem o s perguntas respeitantes a aco n tecim en to s traum áticos da vida: “A lg u m a destas circunstâncias está relacionada com o fa c to de ter com eçado a ouvir vozes?”. E m segu id a v erifica m os quando e qual das circu nstâncias ocorreu e qual das v o z e s se relacion a co m ela , dado que v o z e s diferen tes se rela cio nam co m d iferen tes p eríod os da v id a e c o m aco n tecim en to s traum á tico s diferentes. 364
N este estu d o com p arativo fo i-n o s p o ssív e l ser m ais d iscrim in an tes do qu e no prim eiro, na m ed id a em qu e p u d em os analisar os traum as rela cion a d o s co m o in ício da exp eriên cia d e escu ta d e v o zes e m u itos outros traum as ex p erim en tad os ao lo n g o da vid a. E sta d iscrim in ação parece-n os im portante, na m ed id a em qu e fe z a lgu m a luz sob re d o is a sp ectos da escu ta d e v o z e s. E m prim eiro lugar, d efin e aq u ilo qu e p rovoca o in ício da ex p eriên cia d e escu ta d e v o zes; em segu n d o lugar, d efin e aq u ilo q u e irá d ecid ir se a p esso a vai ser p acien te o u não. S eja co m o for, v erificá m os q u e, tanto na história b iográfica d os p acien tes co m o na d os n ã o -p a cien tes, o in íc io da ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s está relacion ad o co m aq u ilo a q u e ch am am os traum as ex isten cia is.
Alguns exemplos de acontecimentos traumáticos 1. U m a m iúda de 9 anos fo i agredida p elo p a i tão violentam ente que teve de ser hospitalizada, com duas vértebras deslocadas. D u a s horas depois do internam ento com eçou a ouvir vozes p ela p rim eira vez. 2. U m a senhora de 2 8 anos com eçou a ou vir vozes p ela p rim eira vez durante um p erío d o de gra nd e tensão conjugal. O m arido batia-Ihe cada vez m ais freq u en tem en te, con tro lava -lhe todas as suas actividades e só lhe fa z ia ob servações negativas. P ara ela, a situação não tinha qualquer saída. 3. Um hom em de 40 anos com eçou a ouvir vozes p o u co s dias antes de fa z e r um exam e decisivo p a ra m anter o em prego. E stava co n ven cido de que ia fa lh a r, dado que achava o grau de dificuldade d em a siado para si. 4. U m a m oça de 12 anos com eçou a ouvir um a voz de m u lh er crescida, na altura em que o seu irm ão de 18 anos tinha deixado o lar. A p a rtir daí, esta m o ça com eçou a sentir-se com pletam ente iso lada e desam parada em casa, devido à existência de fa cçõ es no seio da fa m ília e ao fa c to d e já não ter um parceiro. 365
5. U m a senhora d e 4 0 anos com eçou a ou vir vozes depois da m orte consecutiva, no curto espaço de 3 m eses, de três p esso a s m uito im po rta ntes na sua vida: o m arido, o p a i e um a cunhada. 6. Um rapaz d e 11 anos, hospitalizado com um a d o ença fa ta l, encontra-se num a enferm aria cheia de doentes idosos, vários dos quais vão m orrendo sucessivam ente. D urante este período, com eça a ouvir um a voz nitidam ente. E stes ex em p lo s foram extraídos d os três grupos estu d a d o s, d ois por cada grupo. A o s traum as sofrid os d em os a d esig n a çã o d e existen ciais porque: 1. S ão em si m e sm o s am eaçad ores, co m o era o ca so d o s m aus tratos físic o s e da d o en ça fatal. 2. S ão am eaçadores porque d estroem as exp ectativas de vid a, co m o é o ca so da perda d o em p reg o , da perda d o com pan heiro por d iv ó rcio , da m orte d e um en te qu erido e da circu nstância d e ficar só . S ão am eaçad ores p orque as p e sso a s acreditam que e le s tiveram u m e fe ito d isru ptivo na sua vid a. 3. S ão am eaçad ores porq ue fa zem d esen cad ear a r e v iv e sc ê n c ia de um a situ ação em o cio n a l passad a m uito op ressiva. D esco b rim o s q u e e ste tip o de traum as estava relacion ad o co m o in ício da escu ta d e v o z e s em 72% do grupo da esq u izo fren ia , em 93% das p essoas do grupo das perturbações d isso cia tiv a s e em 80% das p esso a s do grupo d e n ão-p a cien tes.
O que influencia o vir a ser-se paciente ou não O p róxim o p a sso da E ntrevista, “O que é que influencia o vir a ser-se pa cien te ou n ã o ” , é um a m atéria bastante co m p lex a e d ifíc il de
expressar em n ú m eros. S en d o a ssim , com eça rem o s por dar algu n s ex em p lo s. N a E n trevista in clu ím o s um a secçã o sobre a H istória Ju v en il, qu e d ep o is se m ostrou m uito im portante para se com p reen d er a escu ta d e v o z e s. 366
1. A m iúda d e 9 an os m altratada p elo pai recuperou totalm en te no hosp ital, tendo sid o d ep o is co lo c a d a em ca sa da a v ó, o n d e g o za v a de um am b ien te agrad ável e p rotegid o. A ssim , n os p rim eiros tem p o s, n ão se verificaram n o v o s efeito s n e g a tiv o s relacion ad os co m o traum a. N o entanto, a a v ó fa leceu 3 an os d ep o is e a m iú d a fo i co lo c a d a num a instituição. N e ssa in stitu ição, tal c o m o su ced ia em ca sa do pai, d eix o u de sen tir-se protegid a; d e um m od o m uito a g ressiv o , era ob rigad a a portar-se b em e n e sse am b ien te p od e ter fica d o m ais sen sív el. Seja co m o for, fico u d em asiad o vu ln erável para co n seg u ir lidar co m as v o zes. 2. V eja m o s o e x em p lo do h o m em d e 4 0 an os q u e tinha m ed o de perder o em p reg o e qu e com eçara a ou vir v o z e s a lgu n s dias antes do ex a m e em q u e recea va falhar. N a vid a d ele, e s s e traum a era um a e sp é cie de sina. E n con trava-se vu ln erável e n ão c o n seg u ia lidar co m a situ ação, p rov a v elm en te porq ue, na sua ju ven tu d e, tinha sid o h u m i lhado p elo pai, q u e deixara a quinta ao filh o m ais n o v o , en qu an to que o n o sso h o m em tev e d e segu ir a p rofissão d e jard in eiro - qu e agora estava em risco d e perder. 3. N o ca so da m ulh er d e 4 0 an os que tinha co m eça d o a ou vir v o z e s d ep o is da m orte d e três en tes q u eridos n u m curto esp a ço de tem p o, tratava-se d e um traum a do p on to d e v ista em o cio n a l, q u e, no entanto, não trou xe co n seq u ên cia s so cia is n ega tiv a s para a vid a dela: não tev e de alterar a sua vid a fin an ceiram en te, n ão tev e d e m udar de casa n em perdeu o s filh o s. A lém d isso , durante a ju ven tu d e tev e um a ed u cação em q u e fo i m u ito estim u lad a e ap oiada. D e se n v o lv e u um a identidade está v el e, portanto, n ão estava esp e cia lm en te vu ln erável quando sofreu as perdas. E nquanto n o s d o is prim eiros ex em p lo s as p e sso a s se tornaram p acien tes, a últim a não. M as todas ou viam v o z e s há m u itos anos. Q uando com p arám os o s p acien tes e o s n ão -p a cien tes v erificá m os que h avia im portan tes d iferen ça s em relação à a u to co n fia n ça e à vulnerabilid ad e. N e m tod os o s traum as têm as m esm a s co n seq u ên cia s na vid a de um a p esso a . Q u anto m ais d isru ptivo for o traum a m aior é o risco d e se vir a ser p acien te. N a P siquiatria trad icion al, a teoria da vulnerabilid ad e ao stress é altam ente valorizad a, sen d o a v u ln e367
rabilid ade en tend ida co m o um factor de natureza b io ló g ica . N o entan to, o s resu ltad os d o n o sso estu d o apontam para que essa vu ln erab ili dad e n ão seja m eram en te um factor de natureza b io ló g ica , h aven d o, p e lo contrário, boas razões para adm itir factores p sic o sso c ia is de v u l nerab ilid ad e em p e sso a s que ou v em v o z e s e se tornam p acien tes. A s duas principais diferen ças entre o s q u e se to m a m p acien tes e o s qu e p erm an ecem n ã o -p a cien tes p arecem ser: 1. A s co n seq u ên cia s para a vid a futura d o traum a a segu ir ao qual a escu ta d e v o z e s co m e ç o u . N o s p a cien tes e s s e traum a fo i m ais d isru p tivo (para a sua vid a) do que n os n ão-p a cien tes. 2. A vu ln erab ilid ad e p sic o sso c ia l em q u e se in screv e a ex p eriên cia do traum a. E ncontrám os n os pacientes um a vulnerabilidade p sico sso cia l qu e o s to m a v a m uito m a is sen sív eis a a co n tecim en to s traum áticos do que n os n ão-p acien tes. E sta vulnerabilidade está relacionada co m fortes sen tim en tos de inseguran ça e co m perturbações do d esen v o lv im en to da id en tid ad e durante a infância. N a P siq uiatria trad icional, esta seq u ên cia de a co n tecim en to s é geralm en te a ceite co m o a origem da d o en ça neurótica. C aracteristicam en te, no entanto, não se adm ite o m esm o m eca n ism o para a d o en ça p sicó tica . M as a n o v a lu z que o n o sso estu d o v e io fazer sobre a escu ta d e v o z e s enquanto “sin tom a p sic ó tic o ” é qu e este sin tom a, tal co m o o “n eu ró tico ”, é o reflex o de prob lem as p e sso a is. E m bora haja um ou outro ca so em que não co n seg u im o s encontrar um a relação clara, valerá a pena ter em con ta que a d o en ça psiqu iátrica, seja neurótica ou p sicó tica , p o d e ser seriam en te in flu en cia d a p ela seq u ên cia de ex p eriên cia s de vida.
Desencadeantes imediatos N em a inten sid ade das v o z e s nem o s tem as de que falam são sem p re o s m esm os; p e lo contrário, variam de acordo co m as situ a çõ es e as e m o çõ es. A relação das v o z e s co m determ inadas situ a çõ es ou em o ç õ e s p o d e ajudar a com preend er que tipo de situ a çõ es e de e m o ç õ e s perturbam a p esso a . P o d e ainda forn ecer um a p ista para m o d ifi 368
car a m aneira de lidar co m as v o z e s nas situ a çõ es ou e m o ç õ e s qu e as fa zem desencad ear. P or isso , p ergu n tam os à p esso a “N o ta que as vozes aparecem em determ inada situ a çã o ? ” e d am os e x em p lo s, co m o
“quando você está no m eio de outras p esso a s e se sente exclu íd o”,
etc. E p ergu n tam os-lh e o qu e é q u e a v o z d iz n essa situ ação. E m segu id a, perguntam os qu e tip o d e e m o ç õ e s e ssa s situ a çõ es p rovocam . Sob re as e m o ç õ e s, perguntam os: “H á algum as em oções que fa ça m desencadear as vozes?" e d am os algu n s ex em p lo s, co m o seja estar num estad o d e hum or n ega tiv o , estar in segu ro, estar a n sio so , estar apaixon ado, sen tir-se a g ressiv o , estar so b in flu ên cia d e im p u lso s se xu ais, etc. U m ex em p lo qu e ilustra b em um a situ ação q u e fa z disparar as v o z e s é o da m o ça que, qu and o ia a um a festa co m o nam orad o, ou via um a v o z às o n ze horas da n o ite q u e a m and ava ir para casa (ver S ecção E screver um diário, C apítu lo 10). É claro que esta situação
não era aceitável p a ra o nam orado. Q uando a m oça fa lo u no assunto ao seu terapeuta, os dois p en sara m num a solução e acharam p o r bem estabelecer um acordo p révio sob re a hora de sa ir da festa . Q uando ela p ô s isso em prá tica , as vozes deixaram d e a incom odar nas festa s. U m segu n d o ex em p lo relacion ad o co m as em o ç õ e s é o d aq u ele senhor que referia que um a das sua s vozes aparecia habitualm ente à
noite e se tornava activa e do m inan te quando fic a v a escuro. D isse-nos ele: “E sta era a voz que m e m etia m ais m edo, m as agora arranjei um a m aneira de lidar com ela, deixan do -m e assu star - e isso fa z com que a voz se desva n eça .” A principal co n c lu sã o acerca das d iferen ças entre os p acien tes e os não p acien tes é qu e o s p a cien tes têm m ais ten d ên cia a apontar a presença de determ in ad os esta d o s em o cio n a is antes d o in ício da e s cuta de v o zes. N en h u m d os n ão p a cien tes d e se n v o lv eu qualquer an siedade prem onitória. A o con sid erarm os cada um d os d o is gru p os de p acien tes, v erificá m os qu e tod os o s p a cien tes do grupo das perturba ç õ es d isso cia tiv a s m en cion aram a p resen ça d e esta d o s em o cio n a is precedendo a escu ta d e v o z e s, m as a verd ad e é qu e 89% d os p acien tes do grupo da esq u izo fren ia referiram tam bém a p resen ça d e sses esta dos em o cio n a is. A ssim , um p a cien te o u v id o r d e v o z e s p o d e sentir 369
prim eiro um a d eterm inada em o çã o e ou vir um a v o z de segu id a. N ã o en con trám os quaisquer d iferen ça s n os d o is grupos de p acien tes quanto ao facto d e a v o z agravar o s sen tim en tos e o s p en sam en tos de qu em as o u v e. N o que d iz resp eito às em o ç õ e s que p reced em a escu ta de v o z e s, os p acien tes do grupo das perturbações d isso cia tiv a s referiram : hum or triste (83% ), an sied a d e (67% ), a g ressivid ad e (53% ) e sen ti m en tos d e in seguran ça (53% ). O s p acien tes do grupo da esq u izo fren ia referiram : an sied ad e (69% ), hum or triste (56% ), sen tim en tos de in se gurança (50% ), e a g ressiv id a d e (44% ).
Identidade das vozes A m aior parte das v e z e s a v o z não é sim plesm ente um a voz. A s v o zes p od em ter um a id en tid ad e. O s o u vid ores p od em ou vir v o z e s co m um a id en tidade con creta e está v el. P od em referir, por exem p lo: “E u oiço cinco vozes, três m asculinas e duas fe m in in a s”. A s d iferen ças entre essa s v o z e s situ am -se: n o v o lu m e, no tom em que falam , n o seu gén ero, no seu co n teú d o ou num a “id entida de” está v el, co m o seja “o m eu p a i" , “o m eu a filh a d o ”, “o vio la dor”; no fa cto de terem um a iden tidade cultural carregada d e sig n ifica d o , co m o “D e u s”, “D ia b o ”, “K ing-K ong”; ou a iden tidade dum a figura pública co m o “Jim m y H en d rix”, “K a rl M a rx”, “L in da de M o l” - um a co n h ecid a ap resen tadora da T V h olan d esa. O utras v o z e s têm um a identidade m etafórica, com o seja a “ voz c o n fid en cia l" , a “voz desesp era d a ” , etc. 80% d o s que responderam ou viam v o z e s co m um a identidade concreta e está vel; 23% ou v ia m v o z e s co m um a iden tidade in stável. E stas v o z e s in stáveis p od iam tom ar a iden tidade de um a v izin h a, de um p a ssageiro do co m b o io , de um esp írito , etc., m as não ob ed ecia m a nenh um pa drão d efin id o. Q uando a v o z tem u m a id en tid ad e concreta e está v el p o d e anu nciá-la ao ou vid or (23% ) ou , en tão, é o ou vid or que n ela recon h ece um a p e sso a esp e c ífic a (68% ). N o tá v e l é o fa cto de 48% terem referid o q u e, p elo m en os, um a das v o z e s tinha a iden tidade dum a figura parental (p ositiva ou n egativa). 370
A o pergun tar-se p ela id en tid ad e das v o z e s, a in ten ção é facilita r o estu d o da relação entre as v o z e s e a h istória b iográfica d e q u em as ou v e. Q uando um a ou v id o ra d e v o z e s referiu que o u v ia a v o z da m ãe já falecid a, ora fa zen d o sem p re com en tários n eg a tiv o s, ora d a n d o -lh e bons c o n selh o s, isso p od erá, num ca so e noutro, dar-nos p reciosa s in form ações sob re a id eia q u e ela fazia da m ãe. N o en tan to, e s s e tipo de relação raram ente é tão im ed iato. P or ex em p lo , um a m u lh er o u v ia a v o z da sua fa lecid a m ã e acon selh a n d o -a a d ivorciar-se. E sse c o n se lho era bastante estran h o, porq ue a m ãe, tanto quanto sup un ha, nu nca lhe diria em vid a tal co isa . O facto d e a fa lecid a m ãe lh e dar um co n selh o d e sses co n stitu ía para ela um a prova d e qu e o s seu s p rob le m as con ju g a is ju stifica v a m m esm o o d ivórcio. U m a razão m a is co m p lica d a , m as n ão m en os im portante, para se perguntar p ela id en tid ad e da v o z é relacion ar o con teú d o d aq u ilo que a v o z d iz co m a p e sso a -v o z qu e o d iz. Isto é n ecessário para se ter um a id eia m ais clara da relação entre a v o z e a história b io g rá fica de quem a o u v e. E é n e cessá r io tam bém porque um certo n ú m ero de ouvidores de v o z e s d isso cia o con teú d o em relação à p esso a ou m od ifica a identidade da p e sso a -v o z - e, por isso , não co m p reen d e p or que, nem co m o , a v o z se rela cion a co m a sua história b iográfica.
A interpretação O s o u vid ores d e v o z e s exp erim en tam -n as c o m o n ão-E u e na sua m aioria atribuem à v o z um a id en tid ad e está v el, um a id en tid ad e igu a l m en te não-E u. P or isso , n ão é de estranhar qu e ten tem d escob rir um a razão ou um a interpretação q u e ex p liq u e essa exp eriên cia tão peculiar. O s o u vid ores d e v o z e s testam , m uitas v e z e s, a realidade da su a e x p eriên cia e, por isso , c e d o d escob rem qu e as v o zes n ão se situ am na realidade externa im ed iata. V ários ou v id o res d e v o z e s referiram que, a p rin cíp io, olh a v am e m vo lta para ver d e on d e vin h am as v o z e s, m as depressa aban don avam e s s e com p ortam en to porq ue v erifica v a m que n in gu ém , no m u n d o exterior, tinha falad o para e les. O utros procura vam um a e x p lic a ç ã o n o s p siqu iatras ou n os p sic ó lo g o s, m as não 371
obtin ham qualquer resp osta que tiv esse algo q u e ver co m a sua e x periên cia. O s o u v id o res de v o z e s ten dem ainda a ler tudo o q u e en contram , à procura d e um a ex p lica çã o p la u sív el e , ao fa z ê -lo , en contram e x p li ca çõ es em teorias relig io sa s, p a ra p sico ló g ica s e m eta físic a s, teorias essa s q u e estã o relacion ad as bastante d e perto co m a sua ex p eriên cia (ver C apítu lo 7). E les adoptam essa s teorias porque é m elhor com p reen der algu m a c o isa acerca da exp eriên cia do que ficar com p letam en te à m ercê d ela. O s ou v id o res de v o z e s p od em , por isso , agarrar-se co m unhas e d en tes à teoria q u e adoptaram . P rocuram os recolh er inform a ç õ e s sob re a interpretação da exp eriên cia porque essa interpretação escla rece um a parte d o relacion am en to p esso a l co m a v o z . Indica, em esp e cia l, a estrutura d e p od er entre a p e sso a e as v o z e s. S e a p esso a se sen te vitim iza d a p elas v o z e s, as v o z e s arrebatarão tod o o poder; se a p e sso a se sen te apoiada p elas v o z e s, estará en tão apoiada tam bém na sua vid a d o dia-a-d ia. A estrutura de pod er in d ica ainda se a p esso a dom in a as v o z e s, se estas lhe dão b on s co n selh o s ou se, p e lo contrário, é v itim iza d a por ela s. P orém , quando um a p e sso a quer com p reen d er as v o z e s e o seu sig n ifica d o b io g rá fico , a interpretação é m en os im portante d o que o con teú d o ou as p e sso a s qu e elas representam . A interpretação pod e até m ascarar as p e sso a s representadas p elas v o z e s, por e x e m p lo se c o n ceb e as v o z e s co m o d e u ses to d o -p o d ero so s, em lugar d e n elas reco n h ecer o s p ais. N e ste sen tid o, é co m p reen sív el q u e a P siquiatria tra d icion al ten ha d ificu ld a d e em aceitar as interpretações, rejeitando-as co m o p erturbações d o “teste da realidade”. P orém , ao proceder desta form a, a P siquiatria tradicional ren ega tam bém o seu in teresse p elo con teú d o, o q u e con stitu i um a d esv a n tag em irreparável para a co m preensão das v o z e s na sua relação co m os p rob lem as da p essoa.
Lidar com as vozes In teressám o-n os tam bém p elas estratégias que o ou v id o r de v o z e s adopta para lidar co m ela s, já que está v a m o s c o n v e n c id o s de que a d iferen ça entre p a cien tes e não p acien tes resid e não na escu ta de v o zes 372
em si m as na m aneira d e lidar co m ela s. E n con trám os não p acien tes que ou viam v o z e s e qu e reuniam as m esm as características diagn ósticas que o s p acien tes. A ssim , a p sico p a to lo g ia p o d e n ão ser a co n seq u ên cia n em a o rigem da ex p eriên cia d e escu ta d e v o z e s m as, an tes, a c o n seq u ên cia do e stilo d e lidar co m ela s. In icia lm en te, p en sá v am o s que o s p acien tes p od eriam aprender co m os n ão p a cien tes estratégias m ais adequadas de lidar c o m as v o z e s e reso lver, d e sse m od o, o s seu s p rob lem as co m ela s. M as esta ideia n ão resu ltou porque os co n teú d os variavam dos n ão p acien tes para o s p a cien tes e rela cion a v am -se com situ a çõ es de vid a na in fân cia e co m as co n seq u ê n cia s d os traum as rela cion a d o s co m a irrupção das v o z e s. A s d iferen ça s quanto ao c o n teú d o e quanto às ex p eriên cia s d e v id a to m a m co m p reen sív eis as d iferen ças n o e stilo d e lidar co m as v o z e s , m as tam b ém im p ed em de reso lv er os prob lem as q u e a p esso a tem co m ela s recorrendo apenas à aprend izagem , co m não p acien tes, d e e stilo s d e en ten d im en to co m as v o z e s. A ssim , so m o s forçad os a con clu ir q u e o estilo d e lidar co m as v o z e s se relacion a co m o con teú d o d o q u e as v o z e s d izem à p e sso a e co m as ex p eriên cia s d e vid a qu e ela tev e. N esta E ntrevista, in d agam os d e um certo n ú m ero d e e stilo s d ife rentes que os ou v id o res d e v o z e s adoptam para se en ten d er co m elas. Parte d os quais n os fo i revelad a p elo s próp rios ou v id o res d e v o z e s na resp osta ao n o sso prim eiro Q u estion ário (ver C ap ítu lo 2 ), en qu an to q u e outra parte fo i extraída da literatura, esp e cia lm en te de um artigo de F allo o n e T alb ot (1 9 8 1 ) - que d escrev e o s e stilo s d e en ten d im en to c o m a s v o z e s s e g u id o s p o r p a c ie n t e s d ia g n o s t ic a d o s c o m o esq u izo frén ico s. O principal p rop ósito é esta b elecer se um a p e sso a se com porta diante das v o z e s co m o sua v ítim a ou co m o seu senhor. A principal d iferen ça entre p a cien tes e n ão p acien tes é q u e o s não p a cien tes se com p ortam perante as v o z e s c o m o algu ém q u e escu ta outra p e sso a m as d ecid e por si o q u e h á -d e fazer, en qu an to qu e os p a cien tes são m u ito m ais in flu en cia d o s p ela s v o z e s q u e o s am eaçam e, por isso , são m ais vítim a s d elas d o qu e seu s com p an h eiros ou sen h ores. 373
Conclusão D urante a E ntrevista é im portante guardarm o-nos de intervir, ainda qu e a resp osta d o ou vid or de v o z e s p o ssa despertar algu m as id eias ou r eflex õ es. É d ifícil ign orá-las, m as, se reagirm os no m o m en to em que a resp osta estim u la a n o ssa m en te, p od erem o s confun dir o ou vid or de v o z e s e interferir no p ro cesso da E n trevista. E preciso ter em atenção q u e m uitas outras resp ostas n o s pod eriam levar noutras tantas direcç õ e s - o qu e acabaria por con fu n d ir-n os tam bém . C on d u zim os toda a E ntrevista d e um a form a sistem ática, interfe rindo o m en os p o ssív e l. S eg u id a m en te, fa zem o s um resu m o de cada um dos item s m en cio n a d o s. S ó a partir d o resu m o final de toda a E n trevista se torna p o ssív e l fazer um a an á lise sistem ática d os p rob le m as em cau sa. D isc u tim o s e s s e resu m o fin al co m toda a eq uipa m u ltifu n cion al, debaten do os co n teú d o s, as m etáforas e as p o ssib ili d ad es terapêuticas.
12 CONSIDERAÇÕES FINAIS M a riu s R o m m e e S a n d ra E sc h e r
“Embora muitas vezes ignoradas pela literatura psicanalítica e psicoterapêutica, existem outras tradi ções de escola nas quais se dá uma cuidada atenção a noções afins da empatia como vias de avaliar e conhecer a vida interior de outra pessoa. Desde os inícios dos anos 20, a Psicologia Social e a Sociologia vêm desenvolvendo essas ideias, estudando o seu lugar nas relações inter-humanas.” (Stanley W. Jackson, 1992, American Journal of Psychiatry)
N a n o ssa Introdução (C ap ítu lo 1) ex p u sem o s o s o b je ctiv o s qu e esp erávam os alcan çar co m este livro. C onvirá en tão passar aqui em revista o contrib uto d os n o sso s colab orad ores para qu e fo sse m atin g id o s o s o b jectivo s p rop o stos - qu e eram: 1. D ar a p o ssib ilid a d e às p e sso a s qu e o u v em v o z e s d e relacion ar a sua própria ex p eriên cia co m a ex p eriên cia d os outros; 2. D em onstrar qu e o verd ad eiro prob lem a não reside tanto na escu ta de v o z e s m as na in cap acid ad e d e lidar co m a exp eriên cia co r respondente; 374
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3. M ostrar a gran d e varied ad e d e exp eriên cia s e suas o rigen s e as m ú ltip las ab ord agen s que se p o d e tentar para lidar c o m elas; 4. P ôr à d isp o siçã o d o s terapeutas e dos fam iliares d o s ou v id o res d e v o z e s toda a in form ação que o s ajude a e le s e ao s próprios o u vid ores a lidar m elhor co m as v o zes.
Partilha de experiências P ed im o s a alg u n s o u v id o res d e v o z e s que n os relatassem as e x p e riên cias qu e viveram . A s suas histórias fa zem parte d os C ap ítu los 6 e 8. A s d e scriçõ es p e sso a is que aparecem n o C apítulo 6 têm m u itos p on tos em co m u m . T rata-se das exp eriên cia s de p e sso a s qu e nu nca se tornaram p a cien tes p siq u iátricos e que fu n cion am ad eq u ad am en te, na vida do dia-a-dia, co m o esp osas e donas de casa, professores, terapeutas, etc. S ão p e sso a s co m um a vid a so cia l activa: tod os co n seg u iram e s tab elecer co n tacto c o m p e sso a s que com preenderam e deram valor às suas ex p eriên cia s - e iss o d eu -lh es a capacid ad e n ecessária para evitar os p erigos d o iso la m en to . E ssa s p e sso a s descobriram m aneiras de integrar as v o z e s na su a vid a e revelam um a grande ten d ên cia para segu ir um a p ersp ectiv a p ara p sico ló g ica ou espirita. In felizm en te, n em tod a a gen te tem a sorte de ter ex p eriên cia s tão p o sitiv a s. M u itos o u v id o res de v o z e s passam por grandes d ificu ld a d es e têm d e recorrer a tratam ento psiqu iátrico. H istórias d estes ou v id o res são relatadas n o C ap ítu lo 8. E ssas histórias traçam , por v e z e s, um quadro d e extrem o iso la m en to durante lo n g o s p eríod os d e tem p o. A lgu n s d e sses o u v id o res de v o z e s con segu iram , aqui e ali, d escob rir um a saída para este iso la m en to , m as só d ep ois de terem tido a sorte bastante para encontrar p e sso a s que o s aceitaram a e le s e às v o zes; isso aju d ou -os a tom ar as rédeas das suas p ercep ções a p o u co e p ou co. É b om escla recer q u e e ste desiderato d ev e ser c o n seg u id o antes de o s ou v id o res d e v o z e s p od erem d e se n v o lv er ad eq u ad am en te as suas próprias id en tid ad es, c o m a ajuda do trabalho e de rela çõ es p e sso a is que acolh am as v o z e s. D e sse m od o, o s o u vid ores d e v o z e s en con tra 376
rão um padrão d e vid a está v el em qu e o s m o m en to s p iores são c o m p en sad os p e lo s p eríod os m elh ores. T o d o s o s q u e aprenderam a lidar co m as su as v o z e s acabaram por descob rir a im p ortân cia d e com u n icar co m o s outros a resp eito das suas ex p eriên cia s. A co m u n ica çã o é um a form a d e derrubar e transpor as barreiras do iso la m en to e é essen c ia l para o p r o c esso d e integração das v o z e s na v id a q u otidiana. N o C apítu lo 5 fiz e m o s referên cia às vantagen s qu e se p od em extrair d esta co m u n ica çã o - e qu e p o d em o s resum ir c o m o segu e: - A o falar e escrev er acerca das v o z e s, c o m e ç a -se a co n h ecer os seu s jo g o s e truques, m as tam b ém os seu s a sp ecto s m ais p o si tiv o s. A p ren d e-se a id en tificar o s d esen ca d ea n tes e as situ a çõ es em q u e as v o z e s estão m ais ou m en os activ as ou p roem in en tes. - O m ed o p o d e levar ao evitam en to e este ao iso la m en to e à d e p en d ên cia. A co m u n ica çã o esb ate a an sied a d e e quebra estes círcu lo s v ic io s o s d isru p tivos. - A troca d e o p in iõ es e d e in form ação tanto p o d e trazer id eias ú teis co m o p reju d iciais. E m term os gerais, as su g e stõ e s m ais p ositivas são as q u e aum en tam a au ton om ia d o o u v id o r d e v o zes: por e x em p lo , a au to m ed icação ou a estruturação do con tacto co m as v o z e s (ver C ap ítu lo 5 ). A s atitudes para co m as v o z e s, d o tipo da cren ça na p o sse ssã o , qu e ten d em a agravar a im p otên cia do ou vid or perante ela s, n ão têm grande h ip ó tese de dar b on s resu l tados. - Falar da m ed ica çã o p o d e ser m u ito ú til, d esd e q u e a d iscu ssã o se b a seie em co n c lu sõ e s eq uilib radas, extraíd as da ex p eriên cia e não fund ad as em m eras c o n v ic ç õ e s ou p reco n ceito s d e parte a parte. - A a ceita çã o d o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s to m a -se c o n sid e rav elm en te m ais fá cil para tod os se se co n seg u ir reunir (em C o n g resso , por ex em p lo ) um b om nú m ero d e p e sso a s fam iliari zadas co m a ex p eriên cia . Isso p od e ser sim u ltan eam en te m u ito estim u lan te e p acificad or, contrib uin do tam bém para aum entar a aceita çã o da ex p eriên cia p elo s ou vid ores e seu s fam iliares. P od e ser ainda m u ito gratifican te d esen v o lv er co n tacto s in d ivid u ais estreitos entre o u vid ores d e v o zes; a igu ald ad e d e status p od e 377
p rop orcionar a exp eriên cia de se ser ca p a z de ajudar o s outros, em lugar d e se ficar preso ao papel d e v ítim a (ver C apítulo 11). - A partilha da exp eriên cia d e ou vir v o z e s fa cilita a integração e a cam aradagem . - C om u n icar sobre as v o z e s que se o u v e já sig n ifica aceitar-se a si m esm o . C o m o d isse um a ouvidora:
“Não é possível varrer para debaixo do tapete algo que existe dentro de nós mesmos e se manifesta com tamanha intensidade.”
O problema de lidar com as vozes C o m o v im o s, a escu ta de v o z e s p o d e ser um a ex p eriên cia extre m am en te p o sitiv a e gratifican te. V erificá m o s q u e ao lo n g o da H istória foram surgind o grandes figuras da H u m an id ad e, h om en s e m ulh eres, qu e eram g u iad os p elas suas v ozes: S ócrates, M o isés, Jesu s, M aom é, E ck h art, T eresa d ’Á v ila , Joana d ’A rc, G io rd an o B ru n o, G ich tel, S w ed en b o rg , F ech ner, Jung, etc. (ver C ap ítu los 4 e 7 ). U m m ín im o d e co n h ecim en to s h istó rico s tom aria a ex p eriên cia de escu ta de v o z e s m u ito m en os estranha e ta lv ez, qu em sab e, m a is a ceite pela so cied a d e em geral. V erificá m os tam bém q u e há p esso a s q u e p resentem ente o u v em v o z e s e qu e se m antêm so cia lm en te adequadas, fu n cion an d o em p len o (ver C ap ítu los 2 e 6 ). S ã o p esso a s q u e aprenderam a en ten d er-se com as suas v o z e s e a integrá-las na sua vid a - p e sso a s essa s que “não são santas n em p sicó tica s”, co m o d isse M yrtle H eery (ver C apítu lo 7, S e cçã o E xperiências de vozes interiores). A n o ssa c o n v icçã o in icial de que as v o z e s n ão são em si o verda d eiro prob lem a saiu reforçada d os resu ltad os d o n o sso Inquérito a 173 o u v id o res d e v o z e s (v er C apítu lo 2); 58 d essa s p esso a s p arecem ter c o n seg u id o descob rir um a m aneira de se en tend er co m as suas v o z e s. O a sp ecto com u m m ais sa lien te é que todas con segu iram esta b elecer um a relação co m as v o z e s em que am bas as partes fica m em pé de igu ald ad e. E m contrapartida, quem não era ca p az de se entender com as suas v o z e s ten dia a sen tir-se inferior a ela s. C om parando o s d ois 378
grupos, to m a -se ev id en te q u e, ao aprender a lidar co m as v o z e s, o m ais im portante é o d e se n v o lv im en to da p erson alid ad e do ouvidor. Q uando se d iz “nã o ” às v o z e s, d iz -se “nã o ” a n ós m esm o s, isto é, aos n o sso s d ese jo s, às n o ssa s e m o ç õ e s, ao n o sso p assad o, a tudo aqu ilo que realm ente a co n teceu - a tu do aq u ilo qu e n o s am eaça e q u e n os fa z sentir im p oten tes. Q u and o se d iz “sim ”, é n ecessário aceitar um a série de realidad es d esagrad áveis, interiores e exteriores, m as é essa atitude que n os p erm ite con tin u ar a crescer.
Diversidade de origens D ep o is de ou vir contar as ex p eriên cia s d os ou v id o res d e v o z e s e tom ar co n ta cto co m m u itas d as teo ria s e x iste n te s a resp eito do fen ó m en o , é -se lev ad o a co n clu ir q u e as v o z e s têm um a grande d iver sid ade de origen s. Já referim os o s dad os h istó rico s qu e n o s revelam grand es h om en s e grandes m ulheres qu e foram g u ia d o s p elas v o z e s q u e o u viam . Entre eles con tam -se líd eres relig io so s, cien tista s e p o lític o s. S a b em o s tam bém que há m arinh eiros qu e co m eça m a ou vir v o z e s quando perm a n ecem m uito tem p o so zin h o s no m ar. A A m n istia Internacional refere que as v ítim as d e tortura o u v em v o z e s freq u en tem en te, em esp ecia l durante e d ep o is d o ord álio. S a b em o s, p ela literatura m ais relevan te e por algu n s ex em p lo s co n tid o s n este livro (ver C ap ítu lo 9 ), qu e tod os o s tipos de traum as infan tis e das idades su b seq u en tes p o d em dar origem à escu ta d e v o z e s. A lg u m a s p e sso a s têm ex p eriên cia s telep á ticas q u e in clu em a escu ta d e v o z e s, en qu an to outras a sso cia m o fen ó m en o das v o z e s à m ed iu n id ad e ou à p resen ça d e um esp írito G u ia (ver C apítulo 6 ). S a b em o s qu e as v o z e s p od em aparecer p ela prim eira v e z na in fân cia e persistir na vid a adulta. S a b em o s tam bém qu e há m uitos p acien tes q u e o u v em v o z e s q u e são seg u id o s n os cu id ad os p siq u iátricos. P assarem os agora em revista as d iferen ças m ais sig n ifica tiv a s entre as diversas ex p lic a ç õ e s para o fen ó m en o da escu ta d e v o z e s, quer de dentro quer de fora d o cam p o da P siq uiatria. A s m ais ev id en tes são as diferen ças entre a tese seg u n d o a qual as v o z e s p od em ser o m estre 379
qu e orienta um curriculum in terior (ver C apítu lo 7 ) e a tese seg u n d o a qual essa s m esm a s v o z e s sã o sin tom as d e um a d o en ça (ver C ap í tu lo 10). N o C ap ítu lo 7, M yrtle H eery d eu -n o s con ta d o seu estu d o d e 30 ca so s d e p e sso a s co m ex p e riê n cia de v o z e s interiores. E sse estu d o lev o u -a a d ivid ir e s s e grupo d e 30 ca so s em 3 categorias principais: 1. A q u eles cujas v o z e s eram interpretadas co m o partes fragm en tárias do Eu; 2. A q u eles que referiam q u e as suas ex p eriên cia s de v o z e s lh es p rop orcionavam orien tação através de um d iá lo g o criativo; 3. A q u eles que sen tiam q u e as suas exp eriên cia s d e v o z e s abriam can ais em d irecção e para lá d os n ív e is m ais elev a d o s d o Eu. E sta ca teg o riza çã o p o d e ap licar-se aos autores d os C ontributos P esso a is do C apítulo 6. P or ex em p lo , o autor do 7.° C ontributo pod e ser con sid erad o um rep resen tante da C ategoria 1, já que as v o z e s tinham origem num a parte fragm entária d e sse jo v em . E le d e sc rev e as v o z e s co m o se an d assem à procura de a lg o sign ifican te; co m toda a p rob abilid ade, e le próprio estaria à procura do seu e stilo d e vid a p esso a l, da sua própria id en tid ad e. O s autores do l . ° e 3.° C ontributos p od em con sid erar-se e x e m p lo s da C ategoria 2 , na m ed id a em q u e as v o z e s qu e ou viam lh es d avam orientação. P or sua v e z , o s autores do 2.° e 4.° C ontributos p o d em con sid erar-se ex em p lo s da C ategoria 3, na qual se abrem can ais para o s n ív e is superiores do Eu. P or outro lad o, a m aior parte d o s autores dos C ontributos do C apítu lo 8 repre senta a C ategoria 1 e tem bastante m ais prop en são para procurar ajuda psiqu iátrica do que o s o u v id o res que integram as outras duas C ate gorias. H eery relacion a esta s três C ategorias n ão co m a p sico p a to lo g ia m as com o despertar esp iritu al, b a sea n d o -se na obra de A ssa g io li - qu e d efin iu três tip os de reacção ao despertar espiritual, q u e são p aralelos às três C ategorias de exp eriên cia de v o z e s interiores d e que fala H eery. A ssa g io li refere que: 1. U m d os p o ssív e is resu ltad os de um a exp eriên cia extraordinária é ela n ão con d u zir a um n ív el m ais elev a d o de organ ização. N este ca so , a ex p eriên cia é, m uitas v e z e s, penosa. 380
2. U m a seg u n d a p o ssib ilid a d e é a exp eriên cia ind icar um id eal a seguir, u m sen tid o d ireccion al qu e p od e ser p o sto em prática. 3. U m terceiro resu ltad o p o ssív e l é dar-se um a in tegração m ais elev a d a da p erson alid ad e qu e transform a p erm an en tem en te a vida do in d iv íd u o . S e a sso c ia r m o s o s a ch a d o s d e H eery às te se s d e A s s a g io li, a p erceb er-n o s-em o s d e q u e a segu n d a e a terceira C ategorias d e H eery sugerem um p r o c esso d e ed u cação interior con tín u a, qu e tem as v o z e s por m estre, en q u an to q u e a prim eira C ategoria in clu i as v o z e s que su gerem um refle x o d as co isa s q u e são p erceb id as co m o n eg a tiv a s.
Q uadros p siq u iá trico s d e referência P ela natureza das ab ord agen s em cau sa, as ca teg o riza çõ es traçadas por H eery e A ssa g io li sã o m u ito d iferen tes das qu e são geralm en te segu id as na P siq uiatria. E n qu anto n o s d o is p rim eiros c a so s o p acien te encontra ajuda em resu ltad o d e um p ro cesso d e ap ren d izagem , na P siquiatria a ajuda ten d e a ser dada sob a form a d e tratam ento co m n e u r o lé p tic o s , e s p e c ia lm e n te q u a n d o é fe ito o d ia g n ó s tic o d e esq u izo fren ia - o q u e n ão estim u la o crescim en to da p esso a . E m P siquiatria, as ca teg o riza çõ es fa zem -se em fu n ção d o s tip os de d o en ça que se p resu m e resp o n sá v eis p ela escu ta d e v o z e s. A s c a te g o rias prin cipais são: -E s q u iz o fr e n ia (ver C ap ítu los 9 e 11). -P e r tu r b a ç õ e s d isso cia tiv a s (v er C ap ítu los 5, 9 e 11). - P sic o se m a n ía co -d ep ressiva . - P sic o se sem outra esp e cifica çã o . -T r a n sto r n o p sico rg â n ico (d rogas, ep ilep sia , etc.). A co n seq u ê n cia d esta ca tegorização p siqu iátrica é a p e sso a qu e o u v e v o z e s ser tratada co m m ed ica m en to s (ver C ap ítu lo 10), em esp ecia l nos c a so s d e esq u izo fren ia e de p sic o se m a n ía co -d ep ressiva , enquanto a perturbação d isso cia tiv a se trata co m p sicoterap ia (p o ssi velm en te com b in ad a co m m ed icam en tos). T o d o s os ou vid ores d e v o z e s que d escreveram as su as ex p eriên cia s n o C apítu lo 8 tinham o d ia g n ó s381
tico d e esq u izo fren ia . N o entanto, há tam bém im portantes in d ício s da ex istên cia d e um a relação entre traum as p reco ces e escu ta de v o z e s (8.° e 13.° C ontributos); on d e essa relação está p resen te, as p esso a s pod erão ser igu a lm en te categorizad as co m o tendo um a perturbação d isso cia tiv a . E m n o s s a o p in iã o , a c o n e x ã o en tre a e s c u ta d e v o z e s e a esq u izofren ia deverá sem pre estab elecer-se com grande cuidado. M uitas v e z e s n ão se p en sa na d istin çã o entre esq u izo fren ia e perturbação d isso cia tiv a , n em na p o ssib ilid a d e da sua co ex istên cia , o que faz co m qu e se p o ssa com eter m u itos erros (8.° e 13.° C ontrib utos). Q ualquer d ia g n ó stico d e esq u izo fren ia deverá p o is incluir sem p re m eca n ism o s d e id en tificação de fen ó m en o s d isso cia tiv o s. U m a seg u n d a razão para ter e sse s cu id ad os é a p o ssív e l com b in ação de sin tom as esq u izo frén ico s co m o tip o d e ex p eriên cia s extraordinárias d escritas por A ssa g io li. O n o sso co n h ecim en to d este terreno é m uito lim itad o. T a lv ez p o ssa m os vir a saber m ais algu m a c o isa se a P siquiatria, a P arap sicologia e a P s ic o lo g ia T ran sp essoal (ver C apítu lo 7) puderem com partilhar m ais liv rem en te o s resp ectiv o s esfo rço s de in v estig a çã o e seu s resu l tados. A P siq uiatria n em sem pre co n fin a o fen ó m en o da escu ta de v o zes ao d ia g n ó stico d e esq u izofren ia; há um certo nú m ero d e outros ca so s de referên cia q u e foram d escritos no C apítu lo 9. C ada um d eles re presenta um a faceta de interpretação d iferente, q u e, por sua v e z , se a sso cia a um a sen sib ilid a d e particular na abord agem da terapia. E de notar, ainda, q u e o s p acien tes não se con form am co m estas d iv isõ es sistem áticas: um ú n ico ca so p od e reunir em si to d o s o s asp ectos teóricos. B rian D a v e y ilustra isso m esm o na sua S e cçã o sobre P sicose, no C apítu lo 9, o n d e se refere à sua interpretação d o s ruídos de fundo co m o sen d o v o z e s qu e falam d ele. E sta ideia p o d e integrar-se n os d o m ín io s da P sic o lo g ia C ogn itiva. D a v ey d iz, ainda, q u e, quando um a criança é m altratada ou em o cio n a lm en te ignorada p e lo superior poder d os ad u ltos, p o d e vir a d ese n v o lv er um a e sp é c ie de
N a sua m aioria, as p e sso a s q u e o u v em v o z e s - m esm o aqu elas que se en ten d em b em co m as su as ex p eriên cia s - con tin u am co n v en cid a s d e q u e as v o z e s p rovêm do exterior d e si m esm a s. Por isso , tom ám os em d evid a con sid era çã o o s quadros d e referên cia qu e d irectam en te se relacion am co m essa c o n v ic ç ã o e qu e foram d escritos n o C ap ítu lo 7 - cu jo s autores interpretam as v o z e s c o m o con stitu in d o a p rova de um a co m u n ica çã o co m en ergias ex teriores ao n o sso m un do da percep ç ã o sensorial. D o is d e sses autores d escrev em as su as ex p eriên cia s d e v o z e s de um pon to de vista m eta físico , asso cia n d o as v o z e s a espíritos dos m ortos. O utros adop tam um a p ersp ectiv a esp iritu al, qu e atribui às v o z e s um a natureza m ística ou um a rela çã o co m aq u ilo a q u e a psicoterap ia espiritu al ch am a o E u m ais elevado ou , ainda, um a rela çã o co m o n o sso inconsciente colectivo.
“distanciamento ou paralisia emocional extremos, uma espécie de zombificação. Os psiquiatras chamam-lhe ‘embotamento dos afectos’, quando esta perda da resposta emocional é revivida na idade adulta."
* Sobre esta matéria poderá consultar-se o notável trabalho de A. C. D. Monteiro (1983), The Concepts of Understanding and the Schizophrenia Problem (Tese de doutoramento apresentada à Universidade de Sheffield).
382
E stes sã o algu n s d os m ais freq u en tes esta d o s em o cio n a is ex p eri m en tad os na p sic o se . E m P siquiatria C lín ica interpreta-se a escu ta de v o z e s e o “em b otam en to d os a fecto s” c o m o sin tom as d e esq u izofren ia, sem o s relacion ar co m a história d e vid a da p esso a * . A relação sugerida por D a v ey entre a h istória d e vid a e as rea cçõ es em o cio n a is na vid a adulta é precisam en te o tip o d e q u estõ es v a lorizad as p elas abord agens p sico d in â m ica s. D a v ey p ro sseg u e d izen d o q u e e sse s esta d o s e m o c io nais são ev o ca d o s e recriad os na idade adulta em situ a çõ es qu e c o m b in am m ed o e sen tim en tos d e desam p aro. A p ersp ectiva da P siquiatria S o cia l cen tra-se p recisam en te n estes a sp ecto s, procurando d escrever o papel d esem p en h ad o p elas relações e p ela s situ a çõ es am eaçad oras, q u e p od em ser sim b o liza d a s através d e v o z e s. Q u and o as em o ç õ e s ev o ca d a s são su ficien tem en te in ten sas, fa zem d esen cad ear um a re g ressã o p sicó tica .
Q uadros de referência não psiqu iátricos
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N este livro reu nim os um a série d e lin has de p en sam en to d iferen tes, num esfo rço por dar sen tid o ao fen ó m en o da escu ta de v o zes. D a d a a gran d e v a ried a d e d e e x p e r iê n c ia s p e ss o a is e d e teo ria s ex p lica tiv a s, há um certo nú m ero de q u estõ es pertinentes que nos d e v e m o s co lo ca r quando n os d eparam os c o m o u vid ores de v o z e s em b u sca d e ap oio e ajuda: - A té qu e p on to as v o z e s in d icam um a sen sitivid ad e às em o çõ es das outras p e sso a s ou a determ inadas situ a çõ es q u e se passam algu res (por ex em p lo , durante a G uerra do G o lfo )? - A té q u e pon to as v o z e s se rela cion a m co m um determ inado estád io do crescim en to espiritu al, m a n ifesto em term os de e x p e riên cias extraordinárias? - A té q u e pon to as v o z e s são o r eflex o de um a iden tidade instável, por e fe ito de um traum a ou d e um d e se n v o lv im en to in com p leto? - A té qu e pon to as v o z e s reflectem traum as p assad os ou recentes? - A té qu e pon to as v o z e s são o re fle x o de prob lem as em o cio n a is correntes? - A té qu e p on to as v o z e s reflectem rela çõ es correntes ou circu n s tâncias da vid a d esfav o rá v eis? - A té qu e p on to as v o z e s reflectem um a interferência co m en ergias d e natureza m etafísica? - A té qu e p on to as v o z e s são o re fle x o de um a d o en ça , físic a ou p sico ló g ica ? A n tes d e p od erm os resp on der a todas estas q u estõ es, terem os nós próprios q u e p ossu ir um quadro d e referên cia. T a lv ez a d iferen ça m ais sig n ifica tiv a que ex iste entre o s v á rios m o d elo s d isp o n ív eis dentro e fora da P siquiatria sejam : - D en tro da P siquiatria, o tratam ento parte de um a presunção sobre a origem das v o z e s. U m a v e z d efin id a essa p resu n ção, p od e-se tentar interpretar as v o zes; - Fora da P siquiatria, o tratam ento tom a co m o p on to de partida a exp eriên cia su b jectiva da p e sso a q u e o u v e v o z e s. N esta base, p a ssa -se a d ese n v o lv er um a ex p lica çã o relacion ada, tanto quanto p o ssív e l estreitam en te, co m essa exp eriên cia. 384
D erru ba r barreiras O s terapeutas, quando procuram ajudar as p esso a s qu e o u v em v o z e s, d efron tam -se co m algu m as d ificu ld a d es im portantes. Entre a e x p e riên cia sub jectiva d os ou v id o res d e v o z e s e a abordagem racion alizan te de m uitas form as d e terapia ex iste um a d istân cia co n sid erá vel q u e é n ecessá rio transpor. N e ste co n tex to , ta lv ez só n os seja p o ssív e l tom ar c o n sciên cia das barreiras ex isten te s entre as co n o ta çõ es o b jectiva s d o terapeuta e a ex p eriên cia su b jectiv a do p acien te. E m n o sso en tend er, terá de tom ar-se cu id a d o sam en te em lin h a d e con ta o seguinte:
Barreira 1: D iferen ças na percep ção
O facto d e, n o co n tex to terap êu tico, haver duas p esso a s q u e falam sobre v o z e s não sig n ific a q u e ex ista um a igu ald ad e d e p o siç õ e s entre as partes. N o s ca so s ex trem o s, o terapeuta p od e in clin ar-se para e n carar as exp eriên cias d o s o u v id o res d e v o z e s co m o a lg o n ão ex isten te ou para rem etê-las para o rein o da fantasia. S e o ou vid or d e v o z e s se apercebe d essa in clin a çã o d o terapeuta poderá ficar co m m ed o d e falar das suas ex p eriên cia s. N e ste s c a so s, ficará abruptam ente interrom pida toda a com u n ica çã o acerca d as v o zes.
Barreira 2: D iferen ças conceptuais
Para com p reen d er o sig n ific a d o das v o z e s , o s terap eutas e o s ou v id o res de v o z e s serv em -se d e quadros d e referên cia con cep tu al d iferen tes, que m uitas v e z e s se ex clu em m utuam ente. O terapeuta p od e optar, sim p lesm en te, por esco lh er um d ia g n ó stico c lín ic o e s p e c ífic o , enquanto o ou v id o r d e v o z e s as p od e atribuir, por e x em p lo , à ex istên cia de d em ó n io s. P erante p on tos d e v ista tão d ivergen tes, tor n a -se n ecessário um co n sid erá v el esfo rço d e com u n ica çã o da parte do terapeuta e do p acien te para se com p reen d erem um ao outro. D e p o u co servirá tentar im p or a um a p esso a seja qu e ex p lica çã o for; d e v e recon h ecer-se qu e n o v o s quadros d e referên cia pod erão oferecer n o v o s tipos de e x p lic a ç õ e s (ver C ap ítu lo 9 ) e q u e, seja co m o for, p o d em ser procurados p elo p a cien te apesar das p ressões p esso a is do terapeuta. Q ualquer quadro d e referên cia tem por fu n ção ordenar o p en sam en to e ten d e a estim u la r o d e se jo d e procurar um a am p la v a ried a d e de ex p lica çõ es. E m v e z d e se insistir ob stin ad am en te nu m quadro de 385
referên cia e sp e c ífic o - q u e além do m ais p od e ser in efica z - p od eria ser m ais van tajoso explorar outras ex p lic a ç õ e s p o ssív e is.
Barreira 3: Id eia s diferentes acerca do tratam ento
O terapeuta e o ou v id o r de v o z e s p od em ter d ificu ld a d e em c o o perar no co n tex to d e u m tratam ento unilateral que se restrin ge à p res crição d e n eu ro lép tico s. O ou vid or de v o z e s p od e sen tir-se in co m preend ido e sem resp osta, um a v e z que p ou cas ou n en h u m a das suas p reocu p ações e ex p eriên cia s foram ob jecto de d iscu ssã o . U m a outra p o ssib ilid a d e é a m ed ica çã o prescrita não produzir o s resu ltad os pre ten d id os; p o d e, por e x e m p lo , ter d em asia d o s e fe ito s secu n d ário s. S itu a çõ es d estas p o d em surgir quando as interpretações psiqu iátricas são d em asiad o e sp e c ífic a s ou in flex ív e is. In felizm en te, iss o p o d e fazer co m qu e se preste p o u ca aten ção a outros asp ectos im portantes, co m o a p ercep ção, a m aneira de lidar co m o p roblem a e o fu n cio n a m en to so cia l.
Barreira 4: P ou ca atenção à história biográfica
U m a aten ção in su ficien te à história d e vid a, esp e cia lm en te a d e term inado tipo de traum as que p o ssa m ter sid o v iv e n c ia d o s, pod e levar a co n ced er u m a e x c e ssiv a im portância ao fen ó m en o de escu ta d e v o z e s p rop riam ente dito. D uas razões sub jazem a esta atitude: - O s d ia g n ó stico s p siq u iátricos b a seia m -se, em grand e m ed id a, n os fen ó m en o s con statad os no m om en to da o b servação. - O s traum as d e in fân cia anteriores aos 6 ou 7 an os d e idade p od em estar co m p leta m en te apagados da m em ória, p elo que o in d ivíd u o n ão é cap az d e o s rem em orar esp on tan eam en te. N este ca so , o terapeuta d e v e ajudar cu id ad osam en te a rem em orá-los. S en d o assim , é m u ito p o ssív e l que o d ia g n ó stico p siq u iátrico se b a seie e x clu siv a m e n te n o s sin tom as do m om en to, sem tom ar em linha d e con ta n enh um a das ex p eriên cia s traum áticas que p o d em ser res p o n sáv eis por fen ó m en o s d isso cia tiv o s (ver C apítu lo 9).
Barreira 5: P ou ca atenção às relações entre as vozes e a vida
quotidiana
A s p esso a s q u e o u v em v o z e s n em sem pre têm c o n sc iê n c ia da estreita relação entre a atitude que têm para co m as v o z e s e a sua
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m aneira de lidar co m as p e sso a s e os p rob lem as da vid a quotidiana. E m v e z d isso exp erim en tam a escu ta de v o z e s c o m o um fen ó m en o iso la d o e co n so m em toda a sua en ergia n essa luta. N o en tanto, seria bem m ais p r o v eito so co m eça r por aprender a lidar m elh or co m as p e sso a s e co m o s p rob lem as q u e en contram na vid a diária e, d ep o is, ver o que as v o z e s têm ainda a dizer.
Disponibilizar a informação O n o sso quarto o b jectiv o era forn ecer aos terapeutas e às fam ília s d os p acien tes toda a in form ação qu e ajude as p e sso a s im p licad as no p ro cesso de aprender a lidar co m as v o z e s. O elem en to m ais im p or tante n este p r o c esso é m elhorar e organizar as rela çõ es entre as v o z e s, os ou v id o res de v o z e s e as p e sso a s qu e se d ão co m e le s. P od erem os, en tão, considerar três tip os d e relações: - a relação entre o ou vid or e as v o zes; - a relação entre as d iversas v o z e s, quando há m ais do qu e um a; - as rela çõ es entre o o u vid or d e v o zes e as p e sso a s qu e co m ele têm co n tacto diário. P assarem os em revista algu m as in form ações im portantes qu e p o dem ser particularm ente ú teis para a m elh oria d estas rela çõ es. Irem os analisar, em esp e c ia l, a a sso cia çã o entre as três fa ses d escritas no C apítulo 2, as estratégias d e lidar co m as v o z e s d escritas n os C ap í tulos 6 e 8 e as prop ostas d e in terven ção d escritas n o C ap ítu lo 10. A s três fa se s são: - F a s e 1, ou de Surpresa: o sú b ito despertar das v o zes. O sú b ito despertar das v o z e s é h ab itu alm en te d escrito co m o am ea çador ou , p e lo m en os, estran ho e gerador d e co n fu sã o. - F a s e 2, ou d e O rganização: é o p ro cesso d e com u n icar co m e acerca das v o z e s, d e estruturar o con tacto e d e tentar d iversas estra tégias de en ten d im en to co m ela s. - F ase 3, ou de E stabilização: é o p eríod o durante o qual se ch eg a a um certo tip o d e eq u ilíb rio e se co n so lid a e s s e eq u ilíb rio, tanto em relação às v o z e s c o m o em relação à so cied a d e. A s v o z e s adquirem um 387
D urante esta fa se, a terapêutica d everá cen trar-se prim ordialm ente nas técn icas de con trole da an sied ad e (v er C apítu lo 10), em bora a m ed ica çã o tam bém p o ssa ser m uito útil n o esb atim en to da ansiedad e e da p erp lexid ad e ou co n fu sã o in icia is (v er C apítu lo 10). Im porta porém assinalar q u e qualquer d essa s terap êuticas se d e v e basear na co m p leta aceitação e v a lo riza çã o da ex p e riê n cia real, ainda que p o s sam os qu estionar a ex ten sã o do pod erio das v o z e s. O p asso segu in te será procurar as p o ssív e is m aneiras d e m elhorar o con trole sobre as v o z e s. Para isso , é im portante que o s terapeutas e outras p esso a s adquiram um sen tim en to d e seguran ça (v er 12.° e 13.° C ontributos, C ap ítu lo 8), dem on strand o, entre outras co isa s, algu m en vo lv im en to em o cio n a l (ver C ap ítu lo 10) e tom and o d ev id a nota d os a co n tecim en tos da vid a e d os m o m en to s em qu e ocorrem . Para o con seg u ir, p o d erem os recorrer, entre outras, às T é cn ica s d e R eg isto S istem á tico e d e C on cen tração nas V o z e s (ver C ap ítu los 5 e 10). D urante esta fa se, o con tacto co m outros ou v id o res de v o z e s pode trazer um a v a lio sa segurança: rom per a so lid ã o . N a altura d evid a, ten tar-sè-á introduzir um a certa ordem d e fu nd o na rotina quotidiana, d e m aneira a arranjar tem p o para as v o z e s e para as outras co isa s do d ia-a-d ia. N o m eio d e tudo isto, é e ssen c ia l q u e a fa m ília se m antenha com p leta m en te inform ada (v er C apítu los 7 , 9 e 10), um a v e z que os fam iliares têm um im portante papel a d esem p en h ar, no sen tid o de dar a p o io em lugar d e crítica.
v o z e s e na rela çã o co m ela s. D urante esta fa se, d e v e prestar-se um a m in u cio sa aten ção a asp ectos com o: - an á lise d o p o ssív e l sig n ifica d o das v o z e s, ten d o em con ta o p a ssa d o e o presen te (ver C apítu lo 9); - an á lise da h istória da vid a (ver C ap ítu lo 9); - an álise d o sig n ifica d o das v o z e s na vid a d o d ia-a -d ia (ver C ap í tu los 9 e 10); - an á lise da in flu ên cia da atitude d os fam iliares perante as v o z e s (ver C ap ítu lo 9); - an á lise d e in d íc io s d e ten d ên cias p a ra p sico ló g ica s ou para e x p e riên cias extraordinárias (ver C apítu lo 7); - an á lise de sin tom as con com ita n tes d e d isso c ia ç ã o ou d e repres são em o cio n a l (ver C ap ítu lo 9 ) ou d e q u aisq u er sin tom as que sugiram um d e se n v o lv im en to retardado do E u (ver C apítu lo 7) ou um a m á d efin içã o das fronteiras entre o E u e o s O utros (ver C apítu lo 9). D ed icá m o s tam b ém m uito do n o sso tem p o a assu n to s com o: as circu n stân cias particulares em qu e as v o z e s sã o escu ta d a s, o qu e ela s têm para d izer, as q u alid ad es física s da ex p eriên cia , a natureza de quaisquer d esen cad ean tes e das p ercep çõ es co n com ita n tes. T od as estas q u estõ es são con tem p lad as na a p licação das técn ica s d e con cen tração nas v o z e s (ver C ap ítu lo 10). O p a sso seg u in te é tentar apresentar um a série d e p ersp ectivas sobre o fen ó m en o , n o sen tid o d e alargar o s lim ita d o s h orizon tes qu e cada um a das partes, terapeutas, o u vid ores d e v o z e s e seu s fam iliares, ten de a im por às outras (ver C ap ítu los 7 e 9). F in alm en te, p restar-se-á aten ção ao estatu to so c ia l da p e sso a qu e o u v e v o z e s, ao seu grau d e d ep en d ên cia, à n e cessid a d e d e p rov id ên cia s so cia is e às oportu n id ad es d isp o n ív eis para d e se n v o lv er e apre sentar um a iden tid ad e assu m id a de ou vid or d e v o z e s (ver C apítu lo 10).
F a se de organização
F ase de estabilização
L o g o qu e a an sied ad e e a p erp lexid ad e in icia is se tenham esbatid o claram en te, ou p elo m en os lo g o que ten ham sid o tem porariam ente con trolad as, to m a -se p o ssív e l con cen trarm o-n os na organ ização das
N esta fa se, a in terven ção con sistirá, prim ord ialm en te, em expan dir o co n h ecim en to e d e se n v o lv er a p erson alid ad e, através d e d iversos tipos de ajuda p sicoterap êu tica, qu e p od em in clu ir o D iá lo g o entre
lu gar próprio na v id a da p e sso a , a qu al, co m o se v ê n os ex em p lo s do C ap ítu lo 8, pod e encontrar um pap el so c ia l efe c tiv o .
F a se de surpresa
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V o z e s, O C am in ho, a P sicoterap ia E spiritu al ou aprender a lidar co m as e m o ç õ e s. P oderão surgir tam bém im portantes contrib utos por parte d o s serv iço s d e ap oio so cia l, nas áreas do em p reg o , da ed u cação e da p rom oção d e um a vid a ind epen dente. M a is um a v e z , o ap oio da fa m ília ou d o com p an h eiro ou com pan heira é e ssen c ia l para ajudar o o u v id o r d e v o z e s a d ese n v o lv er um sen tim en to d e con trole e assegurar um a p o siçã o digna na so cied a d e (ver C ap ítu lo 10).
Conclusão E ntretanto, já o leitor se deverá ter ap erceb id o de que as H istórias d e C a so, as T eorias e as T écn ica s T erap êu ticas d escritas n este livro foram cu id a d o sa e d elib erad am en te se le c c io n a d a s ten d o em vista o b je ctiv o s e sp e c ífic o s. A n o ssa selecçã o de teorias e p ersp ectivas ex p lica tiv a s fo i deter m inada, em parte, p elas esco lh a s ou preferências dos próprios ouvidores d e v o z e s e, em parte tam bém , p elo esp ectro das varian tes em v o g a no ca m p o da P siquiatria. E stávam os tam bém a n sio so s por dem onstrar q u e o fatalism o e a resig n a çã o estã o lo n g e d e ser as ún icas resp ostas à d isp o siçã o do o u vid or d e v o z e s. P or outro lad o, todas as técn ica s terapêuticas apre sentad as n este liv ro foram testadas por p e sso a s q u e ou viam v o zes. G ostaríam os d e term inar este livro co m as palavras do Senh or In sp ector Su perior d os S erv iço s de S aú d e M ental da H olanda. N o p rim eiro C on gresso jam ais realizad o para p e sso a s que o u v em v o zes (U treq u e, 1987 - ver C apítulo 2 ), disse:
“Arranjar formas adequadas de lidar com as alucinações pode constituir um importante instrumento de tratamento e de respostas por parte dos terapeutas.”
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Colaboradores: Paul BAKER Trabalhador na área de iniciativas comunitárias.
Alliance for Community Care
Manchester, Reino Unido
Richard BENTALL B Sc, M. Clin. Psychology, M. A., Ph. D. Membro da British Psychologic Sciences Society Assistente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Liverpool Liverpool, Reino Unido Han van BINSBERGEN
Médium
Roermond, Holanda Douwe BOSGA Mestre em Parapsicologia Director do Instituto de Parapsicologia de Utreque Utreque, Holanda
Gerda de BRUIJN Doutora em Psicologia Amesterdão, Holanda 400
401
Marga CROON Membro de O Caminho Amesterdão, Holanda José CUNHA-OLIVEIRA Coordenador da edição portuguesa Médico, Mestre em Psiquiatria Chefe de Serviço Hospitalar Hospital Psiquiátrico do Lorvão Coimbra, Portugal Brian DAVEY Trabalhador na área de iniciativas comunitárias Nottingham Advocacy Group Nottingham, Reino Unido Sandra ESCHER Jornalista para a área da Ciência Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht e Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda Ingrid ELFFERICH Mestre em Psicologia. Gerontologista Roterdão, Holanda Bemardine ENSINK Doutora em Psicologia Instituto de Psicologia da Universidade de Amesterdão Amesterdão, Holanda
Professor Onno van der HART Doutor em Psicologia Centro de Saúde Mental Comunitário de Amesterdão e Departamento de Psiquiatria da Universidade de Amesterdão Amesterdão, Holanda Myrtle HEERY Doutora em Psicologia Profissional Livre Petaluma, Califórnia (EUA) R. van HELSDINGER Médico, Doutor, Jubilado Hilversum, Holanda Adriaan HONIG Médico, Doutor, Membro do Colégio da Especialidade de Psiquiatria Consultor de Psiquiatria Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht e Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda Professor Frederick Alexander JENNER Médico, Doutor, Psiquiatra, FRC. Psych, Emeritus Head do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Sheffield Sheffield, Reino Unido Jack JENNER Médico. Doutor em Psiquiatria, Psiquiatra Assistente da Universidade de Groningen Director do Serviço de Consulta Externa do Hospital da Universidade de Groningen Groningen, Holanda
Gill HADDOCK Mestre em Psicologia Clínica Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Liverpool Liverpool, Reino Unido
Jurrien KOOLBERGEN Mestre em Psicologia Instituto de Psicologia Transpessoal de Amesterdão Amesterdão, Holanda
Patsy HAGE Ouvidora de vozes Goirle, Holanda
Jan van LAARHOVEN Médico, Consultor de Psiquiatria do Hospital da Rainha Isabel Tilburgo, Holanda
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403
Aad van MARRELO Doutor em Teologia Director do Serviço de Reabilitação Psiquiátrica do Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht Maastricht, Holanda
Novos RumoS
Resi MALECKI Ouvidora de vozes Líder de Grupos de Ajuda Mútua da Fundação Ressonância (Weerklank) Geleen, Holanda Monique PENNINGS Mestre em Educação para a Saúde Centro de Saúde Comunitário de Maastricht e Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda Professor Marius ROMME Médico, Doutor em Psiquiatria Consultor de Psiquiatria do Centro de Saúde Mental Comunitário de Maastricht e Professor de Psiquiatria Social do Departamento de Psiquiatria Social da Universidade de Limburgo Maastricht, Holanda Ton van der STAP Doutor em Teologia Maastricht, Holanda Professor Nick TARRIER Doutor em Psicologia Professor António ZAGALO-CARDOSO Coordenador da edição portuguesa Médico, Mestre em Psiquiatria, Doutor em Psicologia Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universi dade de Coimbra, Portugal E todos os ouvidores de vozes que não foram referidos aqui e que deram o seu inestimável contributo para os Capítulos 6 e 8. Respeitámos integralmente a sua vontade de manter o anonimato.
Volumes publicados: 1 - LEIS PLANETÁRIAS EM ELEIÇÕES GERAIS / Francisco Limpo de Faria Queiroz 2 - 0 JOGO DA ATENÇÃO / Marly Kuenerz 3 - OS EXTRATERRESTRES / Manfred Cassirer 4 - PROGRAMAÇÃO NEUROLINGUÍSTICA / Gustavo Bertolotto Vallés 5 - A TÉCNICA DO TAI-CHI / Ángel Femández de Castro 6 - 0 CARISMA / Stephanie Barrat-Godefroy 7 - VAMPIROS / Konstantinos 8 - NA COMPANHIA DAS VOZES / Marius Romme e Sandra Escher (organizadores); J. A. Zagalo-Cardoso e J. A. Cunha-Oliveira (coorde nadores da edição portuguesa) 9 - 0 INUMANO / Jean-François Lyotard